Elisabeth da Cruz Marins e Marcio Mattos de Mendonça
Presentes em 24 municípios de várias regiões do estado do Rio de Janeiro, 108 grupos de base comunitária se articulam entre si para manter e aprimorar práticas populares relacionadas aos cuidados com a saúde e ao uso de plantas medicinais. A maior parte desses grupos se organizou na década de 80, a partir da iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de promover, em 1981, a Campanha da Fraternidade com o lema Saúde para Todos.
As reflexões sobre as realidades locais realizadas durante a campanha fizeram com que as lideranças da igreja e das comunidades percebessem que já tinham em mãos um poderoso instrumento para promover a melhoria da qualidade de vida da população que sofria com as conseqüências dos precários serviços de saúde oferecidos pelo Estado. Práticas populares de tratamento de doenças e enfermidades baseadas no uso de remédios caseiros elaborados com plantas medicinais eram muito comuns nas comunidades, apresentavam grande eficiência e não vinham recebendo o seu devido valor e apoio.
O grande desafio que se apresentou após a tomada de consciência da importância dessas iniciativas autônomas de indivíduos e pequenos grupos foi o de desenvolver mecanismos para melhor organizá-las e disseminálas. Em sua maioria, os grupos tinham em sua composição forte presença de mulheres idosas e negras que migraram de outras regiões do país. Embora possuíssem pouco estudo, elas revelavam enorme sabedoria sobre o uso das plantas medicinais.
A ORGANIZAÇÃO DOS GRUPOS DE BASE
Em cada canto do estado do Rio de Janeiro, de forma espontânea e intuitiva e com a força da fé, os grupos foram se organizando com o objetivo de promover a melhoria das condições de saúde das populações desassistidas por meio do resgate dos conhecimentos sobre o uso das plantas medicinais.
Na Baixada Fluminense, pessoas oriundas da zona rural que já utilizavam as plantas medicinais, em forma de chás, xaropes, ungüentos, etc., passaram a se organizar em grupos, quando a Diocese de Nova Iguaçu convidou a Irmã Maria Zata, profunda conhecedora das estratégias populares de manutenção e restabelecimento da saúde, para ministrar um curso sobre manipulação e uso de plantas medicinais. Realizado no início da década de 1980, o curso abordou a necessidade do resgate e da valorização dos conhecimentos das pessoas mais velhas sobre as práticas de promoção da saúde. As pessoas que participaram saíram motivadas a se organizarem em grupos.
Já no município de Campos dos Goytacazes, região Norte do estado, a motivação para a formação dos grupos ocorreu a partir da ação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) junto aos assentamentos rurais. Com a presença marcante de famílias migrantes de outras regiões do país detentoras de conhecimentos significativos sobre as plantas medicinais, os assentamentos foram cenário da organização de grupos e coletivos de saúde que atuam com remédios caseiros, resgatando práticas antigas.
Assim como nas regiões da Baixada e do Norte Fluminense, em todo o estado do Rio de Janeiro havia diversas outras pessoas e grupos que já vinham realizando trabalhos similares. Embora alguns desses grupos já viessem trocando experiências entre si, a maio- ria deles não se conhecia mutuamente.
O SURGIMENTO DA REDE FITOVIDA
No final da década de 1990, três assessores de grupos populares de diferentes regiões do estado – uma educadora popular em saúde, voluntária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), uma educadora popular integrante da CPT e um agrônomo da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA) – se conheceram e passaram a intercambiar ensinamentos sobre as experiências dos grupos que acompanhavam. Logo identificaram algumas questões comuns entre as iniciativas de base e que mereceriam ser tratadas de forma mais articulada, entre elas, o fato de que as práticas de saúde alternativa eram consideradas clandestinas por não estarem institucionalizadas (com selos, registros, etc). Diante dessa situação, os grupos e pessoas que as exercia sentia forte receio de que suas práticas viessem a ser criminalizadas. Além disso, notavam que, embora seus trabalhos trouxessem grandes benefícios para suas comunidades, não vinham sendo devidamente reconhecidos. Percebiam também que os conhecimentos tradicionais vinham sendo objeto de estudo por agentes externos, sem que houvesse qualquer retorno para as comunidades detentoras dos conhecimentos.
Participando ativamente das dinâmicas dos grupos comunitários, preocupados com a proteção dos conhecimentos e com o fortalecimento de seus trabalhos, os três assessores tomaram a iniciativa de mapear as experiências existentes no estado. Esse esforço foi realizado durante o ano de 1999 por meio de contatos, visitas e participações em atividades de diversos grupos. Em função desse processo, outras pessoas e grupos foram motivados a trocar experiências entre si.
Em 2000, foi organizado um encontro com representantes dos grupos mapeados. O evento foi realiza- do no Colégio Santa Catarina, em Petrópolis, e teve por objetivo principal proporcionar a oportunidade para o mútuo conhecimento entre os grupos para, a partir daí, articular atividades orientadas ao aprimoramento dos trabalhos. Contrariando a expectativa dos organizadores e das irmãs responsáveis pela acolhida, que esperavam a chegada de 60 pessoas, o evento contou com a participação de mais de 120 representantes de grupos vindos de todas as regiões do estado. Com o espírito de partilha de conhecimentos e de solidariedade, o encontro transcorreu perfeitamente, sem a necessidade de mobilização de infra-estruturas sofisticadas nem de financiamento externo. A partir desse evento (posteriormente denominado de 1º Encontrão da Rede Fitovida), foi debatida a importância da continuidade da articulação estadual entre os grupos.
Assim nasceu a Rede Fitovida: Movimento Popular de Saúde Alternativa. Para facilitar a integração entre os grupos, a rede se organizou em cinco regiões: sul; norte; São Gonçalo e Niterói; metropolitana; Baixada e Serrana. Nas regiões metropolitana, sul e de São Gonçalo, os grupos se encontram em áreas urbanas, sendo alguns na cidade e outros na periferia. Na região norte, os grupos estão nas áreas de assentamentos rurais e de comunidades quilombolas. Na Baixada Fluminense e Serrana, há grupos urbanos e rurais.
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA REDE
Após o 1º Encontrão, as visitas de intercâmbio entre os grupos se tornaram mais freqüentes. Por meio delas foram sendo tecidos os elos da rede, em um processo horizontal de trocas que se deu independente de afiliações religiosas ou partidárias. Dessa forma, a identidade da rede foi aos poucos sendo construída em torno a princípios tácitos que orientam as práticas dos grupos. Dois deles se destacam: 1) a solidariedade (os grupos desenvolvem suas atividades sem fins lucrativos); 2) a aproximação com a natureza como meio de promoção da saúde integral (alimentação saudável e o emprego da medicina natural, à base de plantas e outros elementos da natureza).
Ao interagirem entre si, os grupos se fortalecem mutuamente, ao mesmo tempo em que alimentam o movimento de organização estadual, sempre respeitando as diversidades e a autonomia de cada iniciativa local.
ENCONTROS DA PARTILHA
Além dos intercâmbios realizados a partir da iniciativa dos grupos envolvidos, a rede estimula a organização de encontros, cada encontro acontecendo em uma região do estado, a cada semestre com a finalidade de valorizar as diversas práticas dos grupos, facilitando a troca de saberes. Esses encontros, denominados Encontros da Partilha, têm a duração de um dia e são pautados por temas específicos. No período da manhã, ocorrem trocas de experiências e a apresentação de receitas (parte teórica). À tarde, são elaborados remédios caseiros ou realizadas práticas relacionadas ao tema do dia, como, por exemplo, o preparo de xaropes caseiros, tinturas e garrafadas.
Os Encontros da Partilha são sistematizados para a produção dos Boletins Fitoteia. Por meio desse veículo, informações sobre as receitas e as experiências apresentadas nos eventos são divulgadas, assim como as conclusões dos debates relacionados a questões sociais, políticas e culturais que interferem nas ações dos grupos. Assim, ao mesmo tempo em que esses pequenos encontros regionais proporcionam ambientes para o intercâmbio, eles atualizam e fortalecem a articulação entre os grupos.
ASSUMINDO NOVOS DESAFIOS
Em sua caminhada, sobretudo a partir dos debates ocorridos nos encontros estaduais (Encontrões), a rede procurou amadurecer suas estratégias para manter viva a cultura do uso tradicional de plantas medicinais. Para tanto, tinha claro que era necessária a obtenção do reconhecimento das práticas alternativas de promoção da saúde por parte da população e do Estado. Duas linhas estratégicas foram traçadas: a primeira, e mais importante, relacionava-se ao fortalecimento dos grupos de base por meio de sua participação na rede. A segunda está orientada para influenciar as legislações que incidem sobre a temática, visando ao reconhecimento oficial das práticas adotadas pelos grupos da rede.
Com o firme propósito de fortalecer o trabalho nas comunidades, a rede procurou respaldo junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão vinculado ao Ministério da Cultura, para ter suas práticas reconhecidas como patrimônio imaterial da população brasileira, tal como rege o Decreto 3551/00. Por meio dessa frente de ação, procura proteger esses conhecimentos culturais, assegurar seu desenvolvimento e garantir a continuidade das práticas populares de uso das plantas medicinais.
Entretanto, essa iniciativa da rede contraria os interesses dos grandes laboratórios farmacêuticos, que saqueiam a biodiversidade e se valem da privatização dos conhecimentos a ela associados por meio de registros de patentes para obter seus altos e crescentes lucros. Esses poderosos grupos econômicos são os primeiros a desqualificar as práticas populares com acusações de curandeirismo. As agências oficiais de saúde, por sua vez, operam a partir de uma perspectiva reducionista. Admitem o uso das plantas medicinais sob condições muito restritivas, em geral atendo-se à identificação de princípios ativos específicos existentes em determinadas plantas.
Esse enfoque se choca frontalmente com as práticas comunitárias, na medida em que o desenvolvi- mento da farmacopéia popular se faz com base na experiência empírica e não no olhar analítico adotado nos procedimentos das ciências. Além disso, o uso popular das plantas medicinais se funda- menta em uma abordagem ampla sobre a promoção da saúde, que considera, entre outros aspectos, os hábitos alimentares e o meio de vida das pessoas.
Em novembro de 2004, a rede assinou um termo de compromisso com o Iphan para a utilização do método do Inventário Nacional de Referências Culturais
(INRC). Essa metodologia de pesquisa cria condições para que as próprias comunidades realizem um diagnóstico a respeito do tema em questão, na medida em que as envolve e mobiliza no processo de levantamento de suas referências culturais. Além de identificar os portadores dos saberes e suas referências culturais, a metodologia situa o bem cultural no contexto social específico em que foi identificado, para que dessa forma sejam elaboradas políticas públicas pertinentes e eficazes.
Para a Rede Fitovida, o inventário tem sido um importante instrumento para permitir a continuidade e o reconhecimento público das práticas de uso e manejo das plantas medicinais adotadas por seus grupos. Ele tem também apoiado a articulação e organização dos grupos, que se fortalecem por meio da informação gerada e da formação que recebem.
A cada dia que passa a pesquisa do inventário nos dá mais certeza da importância desse bem cultural, do seu valor e da necessidade de medidas para preservá-lo. O principal objetivo desse esforço coletivo é que esses conhecimentos e práticas sejam consagrados como patrimônio imaterial, resguardando os direitos das comunidades de seguirem adotando suas práticas relacionadas ao cuidado com a saúde.
Elisabeth da Cruz Marins
agente comunitária de saúde, agente de pastoral da saúde e integrante da Rede Fitovida.
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Marcio Mattos de Mendonça
engenheiro agrônomo, coordenador do programa de agricultura urbana da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa e integrante da Rede Fitovida.
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Revista V4N4 – Rede Fitovida: revalorizando os remedinhos da vovó