Elena Pardo Castillo, Rocío Achahui Quenti
As comunidades rurais da região de Cuzco, nos Andes peruanos, têm uma percepção apurada da relação existente entre as pessoas e a natureza ao seu redor. A maior parte dessas comunidades é descendente dos quéchuas e dos aimaras, base étnica da sofisticada civilização inca, que prosperava na região antes da conquista espanhola. Sua língua e cultura revelam um enfoque de proteção e cuidado com a terra, a «pachamama», e com a vida dos animais e das plantas que ela comporta. Uma grande responsabilidade é outorgada ao ser humano na utilização e proteção dessa vasta diversidade biológica por meio de um trato carinhoso e cuida- doso. As práticas da agricultura local têm refletido, por séculos, esses princípios.
Infância e Biodiversidade nos Andes do Peru é um projeto que busca assegurar que esses valores não sejam perdidos, já que os pequenos agricultores se encontram sob crescente pressão para se modernizar e tentar trabalhar com a agricultura e a criação de gado dentro de um contexto econômico cada vez mais dominado pelo poder do mercado. O respeito e a compreensão dos valores, das habilidades e do conhecimento, desenvolvidos através de gerações, correm perigo de se perder, e essas pessoas estão sendo cada vez mais afastadas de sua cultura e valores tradicionais. Esse processo começa ainda na infância, quando as crianças entram no sistema de educação formal e ficam expostas aos conhecimentos e valores derivados de uma visão unidimensional, economicista e exploratória dos recursos naturais.
Como professores envolvidos com o projeto Infância e Biodiversidade nos Andes do Peru, temos alertado para a maneira como as idéias e as práticas ensinadas por nossos pais e avós freqüentemente entram em contradição com os objetivos e atitudes presentes no sistema escolar atual. Nesse, os livros descrevem a vida urbana, as atrações e os modelos que ignoram ou desvalorizam os princípios sobre os quais se fundamenta a agricultura familiar. Dessa forma, as crianças são privadas de uma importante parte de sua identidade. Além disso, a negligência em relação ao conhecimento local torna cada vez mais difícil manter o entendimento sobre a riqueza da biodiversidade, no qual estão baseados as práticas agrícolas e de pastoreio.
O Ministério de Educação do Peru detectou a importância de educar as crianças em suas línguas nativas e formou a Direção Nacional de Educação Bilíngüe Intercultural (Dinebi), que apóia o ensino em línguas indígenas nas escolas primárias. Não obstante, consideramos insuficiente a iniciativa, já que a cultura escolar e o conteúdo do currículo oficial oferecem muito pouco para superar a lacuna entre a realidade das crianças na escola e a vida cotidiana. Traduzir do espanhol para as línguas nativas os conteúdos dos textos utilizados pelas crianças não é suficiente para assegurar que o conhecimento coletivo seja transmitido de geração para geração e inserido nas práticas sociais, econômicas e culturais de nossas comunidades. Mas nem tudo está perdido, ainda é possível que esse conhecimento possa ser elaborado e integrado ao currículo oficial.
O conteúdo do sistema de educação formal distancia nossas comunidades das raízes culturais e compro- mete sua capacidade de reproduzir seus conhecimentos para o uso das futuras gerações. Nosso objetivo essencial no projeto Infância e Biodiversidade é criar um maior equilíbrio no currículo escolar e contestar a imagem dominante do agricultor como um analfabeto, que só sabe “coçar a terra” e que nunca será capaz de se incorporar ao mundo. A falta de respeito pelos valores ancestrais no sistema escolar faz com que o conhecimento adquirido pelas crianças desde muito cedo, ao participarem das atividades domésticas e comunitárias, seja praticamente ignorado. O que as crianças aprendem em casa, ao ajudar na horta familiar, é muito bem descrito pelo sr. Benigno Araos, membro da comunidade de Chachapoyas, distrito de Checacupe:
As crianças nos ajudam muito em casa e na horta, com carinho e respeito. Elas recolhem os grãos e as batatinhas que ficam na terra depois da colheita, assim como outras plantas e frutos que encontram em seu caminho. Ensinamos a elas o respeito ao alimento. Ensinamos a não jogar comida fora. À medida que nossas crianças vão crescendo, damos a elas pequenas ferra- mentas para que possam ajudar a cultivar a terra.
Quando nos damos conta que esse conheci- mento cultural, de grande sabedoria, riqueza espiritual e energia emocional, poderia se perder, o projeto Infância e Biodiversidade se dispôs a mantê-lo vivo e relevante para a comunidade e para cada um de seus membros. Queremos assegurar que seja fortalecido e se desenvolva em nossas escolas. Para conseguir isso, os professores comprometidos com o projeto estão trabalhando para ampliar e aprofundar o currículo oficial na escola. Isso só foi possível porque o Estado peruano, em sua tentativa de melhorar a qualidade da educação, formulou o currículo escolar oficial de maneira que possa ser adaptado aos contextos e demandas locais. No entanto, diversos fatores, como as atitudes e os preconceitos da grande maioria de docentes e os materiais por eles selecionados, levam-nos a crer que, na prática, pouco ou nada tem sido feito para diversificar e incorporar os saberes locais ao currículo oficial.
Infância e Biodiversidade enfatiza que somente incluir o ensino das línguas nativas no currículo não é suficiente. Temos que reconhecer também as realidades, os valores e a cultura expressados nessas línguas. Como professores, sentimos que estávamos oferecendo uma educação bilíngüe devido à pressão exercida pelas autoridades educacionais, e não por ver nela uma forma de transmitir a cultura andina – sua poesia, arte, música –, e as habilidades e sensibilidades de suas tradições agrícolas e medicinais.
Portanto propusemos uma escola com um modelo diferente, desenvolvida em concordância com nossa cultura e línguas e que incorporasse o conhecimento local no currículo. Uma escola que respeitasse o conhecimento das crianças e dos membros da comunidade, onde os professores fossem preparados para assumir o papel de mediadores culturais. Para concretizar isso, pensamos ser necessário envolver os pais e membros da comunidade no processo educativo, gerando também as oportunidades para reconectar as crianças com o conhecimento presente em suas comunidades. Assim, elas poderiam aprender muito sobre a agricultura local e a grande biodiversidade que as têm sustenta- do por gerações.
UMA ESCOLA DIFERENTE
Tratando de implementar nossa visão de escola diferente, propusemos uma escola aprazível, de acordo com a nossa cultura:
- que respeite a sabedoria das crianças e dos idosos da comunidade;
- que incorpore o saber local no currículo, representando 50%, sendo os outros 50% destinados ao ensino do conhecimento científico moderno;
- que o docente esteja receptivo ao saber dos meninos e meninas;
- que o docente assuma o papel de mediador cultural;
- que os pais participem nos processos de aprendizagem dos meninos e meninas;
- que as crianças e pais regenerem a diversidade;
- que sejam recuperados os espaços de re-aprendizagem entre as crianças, jovens, pais e mães sobre os aspectos da cultura andina, por meio do respeito à sabedoria da comunidade.
Nós, professores envolvidos com o projeto, acreditamos ser importante falar em sua língua materna com os meninos e meninas que iniciam a vida escolar, para garantir o processo de estruturação de seu pensamento, sua forma de ver o mundo, sua eficiência, sua auto-estima e capacidade de se expressar em sua própria língua. Durante nossa infância, éramos parte de uma comunidade em que nossos avós nos ensinaram a viver em concordância com seus valores. No entanto, o sistema educativo nos desarraigou pouco a pouco, foram introduzidos preconceitos e, paulatinamente, aprendemos a rechaçar nossa língua e nossa cultura. No programa Infância e Biodiversidade começamos a refletir sobre a nossa infância e a valorizar as experiências da mais tenra idade, não só para nós mesmos, como também para nossa sociedade. Sentimos que podemos contribuir para manter a riqueza de nossas tradições culturais, estimulando o respeito e a compreensão da biodiversidade que a sustenta.
Acreditamos que devemos continuar enfocando a educação de maneira estratégica. Queremos assegurar que as crianças dominem sua língua materna, assim como a cultura e o conhecimento indígena que ela expressa. Ao mesmo tempo, devem também ter um bom domínio do espanhol para que possam desempenhar um papel ativo na sociedade peruana atual. Cuidamos para garantir que a escola esteja sempre receptiva ao conhecimento local das crianças, e para que exista um equilíbrio entre o conhecimento tradicional e o moderno. Nesse processo, a criança está no centro de todas as atividades (ver figura).
O intercâmbio de experiências entre as famílias, as comunidades e as escolas é fundamental para a implementação do projeto. As visitas feitas às escolas de diferentes comunidades proporcionam às crianças a oportunidade de uma aprendizagem mútua e também a de reunir avós, pais, mães, jovens e professores. Durante a visita às hortas, escolas e sítios arqueológicos, as experiências são descritas e comparadas, havendo freqüentemente o intercâmbio de alimentos ou sementes. Reconhecemos que a horta é um lugar de encontro, onde o conhecimento é transmitido de geração para geração. Esse conhecimento faz parte das atividades associadas aos rituais religiosos, às práticas inovadoras, às tarefas tradicionalmente designadas às crianças e às feiras de diversidade de sementes e alimentos, assim como da reflexão e intercâmbio de experiências entre os membros da família.
CAPACITANDO OS PROFESSORES
As atitudes e os preconceitos dos professores são um sério obstáculo para estabelecer escolas aprazíveis que incorporem o saber local. Por isso, o projeto Infância e Biodiversidade tem um componente que propicia novas e criativas relações dentro da escola. Estamos trabalhando no sentido de dar apoio e abertura aos jovens, o que nos ajuda a planejar a educação pelos conhecimentos que as crianças trazem de seus lares. Isso pode ser difícil, pois muitos professores têm pouco respeito pelo conhecimento tradicional, vendo-o como menos importante que o “moderno”.
Nós tentamos fazer com que os professores entendam e apóiem o conhecimento agrícola das comunidades, para que se estabeleça um ambiente intercultural na escola. Essa capacitação oferece oportunidades para a reflexão e a aprendizagem. Trabalhamos juntos para encontrar a melhor forma de facilitar o intercâmbio de conhecimentos entre as crianças e seus pais, desenvolver um currículo para o ensino do conhecimento local nas aulas, assim como preparar material didático, como calendários de rituais agro-astronômicos e folhetos baseados no conhecimento das crianças. Realizamos também visitas a centros de rituais e aprendemos sobre a estrutura tradicional da autoridade e de práticas como o ayni (ajuda recíproca). Tratamos também de assegurar que os professores entendam sua própria cultura e que se disponham a convidar as pessoas da comunidade a compartilhar seus conhecimentos. Uma vez ao mês, há oficinas para discutir e refletir sobre nosso trabalho.
Na escola, fazemos com que as crianças participem das atividades práticas. Cada escola tem sua própria horta, onde os jovens cultivam grande diversidade de espécies. Eles também realizam pequenos projetos culturais e trabalham com tecidos, cerâmica, música, dança e preparação de comidas. Durante essas atividades, os avós e os pais assumem com freqüência o papel de professor oficial da escola. Já o professor inverte seu papel, participando como mais um aluno.
Regularmente, fazemos visitas às famílias de nossos alunos e participamos das atividades agrícolas de suas comunidades. Organizamos reuniões mensais para elaborar o material de ensino e avaliar as atividades da escola. Analisamos também nossas ações, para comprovar se estas realmente apóiam a cultura local e contribuem para seu desenvolvimento, reconhecendo a pluralidade de tradições e propiciando uma aproximação equilibrada entre a “modernidade” e as tradições andinas. Chegamos à conclusão de que nossas atividades têm mu- dado as atitudes dos professores. Durante as visitas locais de intercâmbio, todos os participantes se comunicam, fazem amizades e trocam conhecimentos, enquanto redescobrimos, aprendemos e lembramos o que nossos avós faziam.
RESULTADOS
Até agora, os resultados têm sido promissores. O papel das crianças na recuperação da biodiversidade é bem visível, tanto nos cultivos da escola quanto na horta familiar. Os pais estão orgulhosos por terem sido convidados a participar como professores pelas escolas, e cada vez mais nos pedem para realizar cursos sobre a vida rural e a urbana. Eles concordam com o nosso enfoque, porque estimula em seus filhos o respeito ao conhecimento tradicional, à cultura e à maneira de viver dos pais. Os professores – tanto homens quanto mulheres – têm reorientado sua prática profissional. Muitos deles tinham cortado seus laços com a própria cultura e agora percebem que este projeto lhes permitiu redescobrir e dar valor às suas raízes.
As crianças andinas têm uma visão própria do mundo e do cosmos, e esta percepção faz parte de sua identidade. Nossa próxima meta como professores será obter uma melhor compreensão do processo de aprendizagem que melhor se adequa a uma criança criada na cultura andina, no qual o conhecimento é transmitido pela tradição oral e não pela palavra escrita.
A Direção Nacional de Educação Bilíngüe Intercultural (Dinebi), do Ministério de Educação, tem demonstrado interesse em nosso projeto. Algumas de nossas atividades, como o intercâmbio de experiências e de sementes entre as crianças e seus pais, têm sido promovidas por essa direção. Os resultados da pesquisa “O ciclo produtivo ritual andino e sua relação com o período escolar nas comunidades de K’arhui e Wit’u” e o texto “Os saberes de nossa comunidade” foram publicados com o apoio financeiro da Dinebi.
Muitas pessoas, interessadas em nosso projeto, também têm nos visitado. Dizem que nosso projeto é importante, pois propicia um entendimento mais amplo do fato da diversidade biológica ser a base da vitalidade cultural das comunidades andinas. Isso possibilita uma visão do mundo e do cosmos que enfatiza a criação da vida através do cuidado, do afeto e do respeito à natureza. Outros explicam que este projeto tem mostrado que a verdadeira interculturalidade no sistema de educação peruana só poderá ser bem-sucedida se a identidade e a cultura indígenas forem fortalecidas. Para isso, temos de nos assegurar que as crianças tenham não só o direito de aprender em sua língua materna, como também possam conservar e desenvolver sua própria cultura e diversidade.
Elena Pardo Castillo e Rocío Achahui Quenti
Centro de Promoção e Serviços Integrais (Ceprosi)
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Revista V2N1 – Redescobrindo as raízes culturais: as crianças e a biodiversidade nos Andes