Gabriel Bianconi Fernandes
Enquanto a construção de políticas públicas favorecedoras da agroecologia em geral parte de lições apreendidas de experiências locais, a ação política contra o advento dos transgênicos se dá muito mais no plano do embate e da denúncia, numa disputa desigual entre organizações da sociedade civil e forças político-econômicas do setor do agronegócio. Assim, embora esses dois movimentos se processem com enfoques distintos – o primeiro é propositivo e o último é de natureza reativa –, eles são complementares e têm como objetivo a viabilização de propostas para o desenvolvimento sustentável do mundo rural.
Com efeito, o avanço da agricultura que utiliza sementes geneticamente modificadas ocorre em detrimento da agricultura ecológica e diversificada. Nos Estados Unidos, por exemplo, maior produtor mundial de transgênicos, os produtores orgânicos tiveram que concordar em reconhecer suas sementes como sendo orgânicas, mesmo cientes de que não eram 100% livres de transgênicos.
SÓ DERROTAS?
É difícil deixar de ter a impressão de que só as empresas de biotecnologia têm levado vantagem nesse embate, sobretudo depois que a lei de biossegurança foi aprovada pelo atual governo federal, que assumiu seu mandato prometendo moratória aos transgênicos enquanto não estivesse comprovada a sua inocuidade à saúde pública e ao meio ambiente.
Apesar disso, as companhias da área não poderiam imaginar que teriam tanta dificuldade para conquistar esse amplo mercado, que é a produção brasileira de commodities, e que enfrentariam tanta oposição da sociedade. A expectativa era a de que seus produtos adentrassem nossa cadeia alimentar sem maior debate público, permanecendo o assunto como “coisa para especialista”. Tanto foi outro o caminho, que as empresas tiveram que implementar novas estratégias para tentar convencer a população do benefício de seus produtos. Entre elas, destaca-se a fundação e o financiamento de “ONGs” voltadas para a promoção da biotecnologia.
A liberação da soja transgênica, em 1998, foi seguida por uma ação civil pública encaminhada à Justiça pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que embargou a soja da Monsanto e, na prática, proibiu novas liberações. Com essa ação, abriu-se espaço para o debate público sobre a tecnologia e seus impactos, assim como para uma atuação mais articulada de organizações de defesa do consumidor, do meio ambiente e da agricultura familiar. A popularização do tema é conquista não negligenciável, mas fica a pergunta: de que adianta massa crítica se os transgênicos se espalham pelo país?
ESTADO AUSENTE POR OPÇÃO
O caso da entrada e difusão ilegal das sementes de soja transgênica simboliza a omissão do Estado na fiscalização para o cumprimento da lei. Somado a isso, o boicote deliberado à proposta de rotulagem de produtos transgênicos passa então a conferir a essa conduta negligente do governo um caráter de estratégia para a difusão da tecnologia.
Por outro lado, desde que o Greenpeace deu início ao seu trabalho de informar consumidores sobre quais produtos no mercado poderiam conter transgênicos, tem-se obtido resultados consideráveis. Em 2002, quatorze empresas se comprometeram a não usar transgênicos em suas marcas. Já em 2005, na quarta edição do Guia do Consumidor, 65 empresas assumiram esse compromisso e entraram para a chamada lista verde.
Esses esforços não substituem o dever do Estado de garantir informação ao consumidor, mas, mesmo com seus alcances restritos, mostram como a sociedade, criticamente informada, desenvolve formas de resistência em defesa do interesse público. As pesquisas de opinião revelam que à medida que cresce o conhecimento da população sobre o tema, aumenta também sua rejeição a esses produtos. Jamais foi visto, em lugar algum do mundo, um movimento de consumidores exigindo a liberação de transgênicos por estarem ansiosos para desfrutar dos “avanços da moderna biotecnologia” e saborear a soja resistente a herbicida ou o milho inseticida.
AS MUDANÇAS DE PANORAMA COM A NOVA LEI
O projeto de lei apresentado pelo governo Lula tramitou durante dois anos no Congresso e, depois de aprovada, a lei levou mais oito meses para ser regulamentada. Nesses quase três anos, Brasília foi o principal centro de atuação da Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos, já que as decisões passavam necessariamente pelo eixo Congresso-Executivo.
O tempo levado para criar um novo marco legal para os transgênicos já é um indicativo de que esses processos não se desenrolaram sem muita resistência e polêmica. Afinal, há de se considerar toda a dedicação e truculência da bancada ruralista aliada ao poderoso lobby das empresas de biotecnologia – que opera dentro e fora do governo – e à benevolência do governo em relação aos interesses do agronegócio. Não menos importante é destacar a atuação quase panfletária da grande imprensa na promoção irresponsável dessa tecnologia, minimizando seus riscos, suas incertezas e a falta de conhecimento sobre seus impactos e taxando seus críticos – muitas vezes sem sequer ouvi-los – como pertencentes a um grupo de obtusos recém-egressos do período medieval.
Durante esse período de formulação da lei, além do acompanhamento in loco, inúmeras cartas abertas a parlamentares foram escritas e endossadas por entidades e movimentos sociais de todas as regiões do país. Todas as críticas às versões de projeto de lei foram feitas por escrito e apresentadas ao governo e parlamentares, assim como foram debatidas propostas de emendas à lei. O mesmo foi feito com o decreto que regulamentou a lei e, anteriormente, com as medidas provisórias que, apesar dos esforços em contrário, foram liberando aos poucos o cultivo da soja transgênica.
Com a grande imprensa cada vez mais fechada aos posicionamentos críticos à transgenia, a Campanha informou consumidores e agricultores, por meio de folhetos, cartilhas, palestras e debates. Informações foram divulgadas, também, pela internet e por canais alternativos de comunicação, como rádios comunitárias. Na comunicação eletrônica, vale destacar o Boletim por um Brasil Livre de Transgênicos, produzido semanalmente pela AS-PTA desde novembro de 1999. Hoje são quase 300 edições do Boletim e uma lista de mais de 8.500 leitores.
É evidente que em uma disputa tão desigual o setor pró-transgênico vem levando a melhor. A despeito disso, os resultados obtidos pela sociedade civil vão além de ter evitado que esse quadro desfavorável tomasse uma dimensão muito maior, o que, por si, não deixa de ser uma conquista.
Logrou-se que tanto a lei como o decreto incluíssem mecanismos de participação da sociedade civil e de transparência nos processos de tomadas de decisão, além de regras para evitar a continuidade dos casos de conflito de interesse. Esses novos dispositivos começarão a fazer diferença desde já, à medida que a nova Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) retoma suas atividades. Nesse novo cenário, uma coisa é certa: esses instrumentos de participação e transparência só serão implementados com muita pressão da sociedade civil e com um monitoramento constante dos atos da CTNBio. Portanto, no plano nacional, pode-se dizer que está definido o novo eixo de campanha e mobilização contra os transgênicos.
QUAL CIÊNCIA E QUAIS CIENTISTAS?
Após ter sido reformulada pela nova lei de biossegurança, a Comissão passou a ter 27 membros mais seus respectivos suplentes. Desses, seis são representantes da sociedade civil (sendo um da área biotecnológica). Contudo, mais do que uma correlação de forças mais equilibrada, duas outras grandes questões estão em jogo com essa nova composição.
A primeira tem a ver com o fato de que, desde sua criação em 1996, pela primeira vez a CTNBio não será um bloco formado majoritariamente por pesquisadores que desenvolvem transgênicos ou que não apresentem maiores preocupações com relação à biossegurança desses produtos. Esse quadro ajudará a quebrar, perante o grande público, a falsa idéia de que os cientistas são unanimemente favoráveis à transgenia. Segundo, a partir de agora, os representantes da sociedade civil, somados a membros de alguns ministérios e possivelmente a outros cientistas da Comissão, poderão trazer uma grande e necessária novidade, ao darem visibilidade pública ao debate sobre o papel da ciência para o desenvolvimento da sociedade.
A inovação está na possibilidade desse debate permitir o confronto de dois enfoques distintos sobre a prática científica. O primeiro, no caso específico, manipula genes, pedaços de bactérias e partes de vírus como se estivesse simplesmente mudando tijolos de lugar, seguindo a orientação, ainda hoje hegemônica nas ciências agrárias, de controlar a natureza por meio de pacotes tecnológicos. O outro, ao contrário, valoriza os fluxos e ciclos presentes nos ecossistemas em benefício da produção agrícola, permitindo o desenvolvimento de sistemas agrícola produtivos, ambientalmente sustentáveis e pouco ou nada dependentes de insumos externos.
Seja pela viabilização financeira de suas pesquisas, seja pela crença de fato em uma ciência reducionista, os pesquisadores da primeira corrente ocuparam o espaço que lhes foi aberto no debate público sobre os transgênicos e assumiram uma postura de falar em nome da ciência. Isso foi resumido pela imprensa com o chavão “a ciência é a favor dos transgênicos e os ambientalistas são contra”. Representantes de uma ciência mais integradora, comprometidos com o interesse público, devem agora ocupar seu espaço nessa arena de debate, assumindo perante a sociedade uma postura mais afirmativa, de forma a contribuir para a formulação de políticas que favoreçam o desenvolvimento sustentável.
CONTRA A MARÉ
Existem hoje, no Brasil, cultivos transgênicos de soja, algodão e milho. Todos se iniciaram de forma ilegal. Os dois primeiros já foram legalizados pela via do fato consumado. Diante disso, surge a seguinte pergunta: por que os promotores da biotecnologia recorrem repetidas vezes à clandestinidade se eles controlam o setor de sementes e insumos, exercem forte influência sobre governos, legisladores e mídia, têm grande capacidade de direcionar pesquisas e pesquisadores e sempre tiveram uma CTNBio favorável?
Basicamente por dois motivos. Primeiro, porque os produtos da biotecnologia mostram-se incapazes de resistir a avaliações de risco adequadas. Nesse sentido, a experiência brasileira talvez seja a mais emblemática, ao mostrar o empenho das empresas de biotecnologia e de seus partidários para retirar a obrigatoriedade do licencia- mento ambiental prévio do processo de aprovação de organismos geneticamente modificados. E, segundo, porque um ativo movimento de resistência vem cobrando imparcialidade e transparência e logrando impedir a desregulamentação do uso da biotecnologia no país. Não fosse a massa crítica construída ao longo dos anos de existência da Campanha, tudo correria de forma mais imprudente e na mais pura legalidade.
Já vimos que a mudança do grupo mandatário no plano federal não alterou as tendências favoráveis à liberação dos transgênicos na agricultura brasileira, que já haviam sido explicitadas pelos governo passado. Será que a entrada em vigor da nova lei trará mais rigor e isenção às decisões a esse respeito? Seja como for, que o bem-vindo debate científico com a sociedade seja mais uma pedra lançada à água para fazer repercutir suas ondas contra a maré transgênica.
Gabriel Bianconi Fernandes:
assessor técnico da AS-PTA
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Revista V3N1 – Remando contra a maré transgênica