Miguel Ângelo Perondi
ESPECIALIZAÇÃO OU DIVERSIFICAÇÃO?
Durante muito tempo, técnicos e formuladores de políticas públicas acre- ditavam que o produtor rural deveria se especializar. Quanto mais se especializasse, melhor: deveria usar técnicas de última geração e se dedicar a poucas atividades produtivas, o que seria sinônimo de eficiência econômica, produtividade e ganhos de escala. O produtor diversificado – diziam – era como um pato, que voa, anda e nada, mas não executa bem nenhuma dessas três ações.
Embora essa crença na especialização ainda esteja presente em muitas instituições que atuam no meio rural, a realidade da agricultura familiar tem mostrado justamente o contrário. Um estudo feito com 100 famílias rurais do município de Itapejara d´Oeste, no Sudoeste do Paraná, apontou que a diversificação das atividades e a combinação de rendas agrícolas e não-agrícolas melhoram o desempenho econômico da agricultura familiar. Além disso, como na época em que foi conduzido houve uma seca muito forte, o estudo mostrou que produtores diversificados enfrentaram esse tipo de conjuntura com menos dificuldade, pois possuem alternativas frente às adversidades de clima e de mercado.
Nessa região, é possível encontrar sistemas leiteiros que promovem a inclusão de novos produtores ao mercado sem necessariamente sujeitá-los a uma situação de desvantagem. Na produção de leite a pasto, por exemplo, parte do insumo é gerada pelo trabalho do produtor. Cada ciclo de produção é alimentado por recursos produzidos, reproduzidos ou transformados em insumos pelos ciclos anteriores. Assim, entram no processo como valores-de-uso, instrumentos, insumos e objetos de trabalho que não são convertidos diretamente em mercadorias, mas que fortalecem a reprodução do sistema como um todo.
Nessa mesma região, observamos também uma forte presença de sistemas especializados em mercadorias agrícolas – as commodities, como o mercado gosta de batizá-las –, caso da soja e do milho. Esses produtos participam de um ciclo produtivo cada vez mais voltado para agências externas e que, com exceção da mão-de-obra, mercantiliza todos os recursos materiais e sociais envolvidos no processo.
Apesar das diferenças, ambos os exemplos são expressões de uma mesma tendência por meio da qual o mercado assume uma crescente importância na agricultura.
Entretanto, muitas famílias rurais produzem articulando vários aspectos técnicos e sociais, procurando construir níveis crescentes de autonomia frente aos mercados. Essa postura, na verdade, reflete os próprios fundamentos do modo de produção camponês, que é estruturado sobre uma reprodução relativamente autônoma e historicamente garantida.
O EXEMPLO PESQUISADO COM AGRICULTORES FAMILIARES DE ITAPEJARA D’OESTE (PR)
Procurar-se-á, a seguir, descrever um estudo sobre a estratégia de diversificação dos agricultores de um município na região Sudoeste do Paraná, localizado na fronteira do Brasil com a Argentina, limitado pelo rio Iguaçu de um lado e Santa Catarina do outro. É uma das regiões menos urbanizadas do estado, com predominância da agricultura familiar, elevado índice de ocupação e com a menor taxa de desemprego do estado. Entretanto, apresenta uma renda per capita abaixo da média e apresenta uma perda constante de população.
Quando se analisa a economia do conjunto dos núcleos familiares da região, constata-se que uma parcela menor deles concentra a maior parte dos recursos produtivos e é responsável pelo maior consumo de insumos agrícolas e de crédito. Em Itapejara d’Oeste, por exemplo, 86% dos estabelecimentos têm menos de 50 hectares, abrangem 52% da área do município e ocupam 92% do pessoal que trabalha no campo. Porém, somente 42% das famílias rurais do município consomem mais de 82% dos insumos gastos na agricultura, ocupam quase 80% da área agrícola, detêm mais de 84% do patrimônio e respondem por quase 90% do valor financiado.
Apesar do grande movimento financeiro, esses agricultores não obtêm uma renda agrícola elevada. Ao contrário: a pesquisa mostrou que somente 16% dos recursos que entram na unida- de familiar ficam com eles. Quase 70% do que recebem é gasto com aquilo que os técnicos denominam “consumo intermediário”, ou seja, despesas com adubos, sementes, combustíveis. Isso revela que grande parte dos insumos empregados é externa, ou seja, vem de fora da unidade familiar, o que torna seus sistemas altamente dependentes do mercado. De acordo com o estudioso holandês Jan Douwe van der Ploeg, caracterizam uma situação em que as atividades de agricultores familiares transferem valor agregado para as organizações externas: grandes corporações do agronegócio que produzem adubos, venenos, sementes e maquinário.
O PESO DAS RENDAS NÃO-AGRÍCOLAS
Para analisar os efeitos da produção sobre a renda é preciso pensar em todo o universo agrícola e ir além dele, contabilizando todas as possibilidades de ingressos não-agrícolas que surgem da diversificação do trabalho familiar. A renda familiar reflete os resultados da ocupação produtiva do trabalho, ou seja, na unidade familiar e fora dela. Além disso, incorpora rendimentos obtidos com aposentado- ria, pensão, juros, arrendamentos, doações e aluguéis. Assim, conforme ilustrado no Gráfico 1 a seguir, a renda total resulta do somatório de cinco diferentes fontes: agrícola (vem do trabalho na agricultura na unidade familiar); transferências sociais (aposentadorias, pensões e bolsa-família); outras rendas (transferências, aluguéis e juros); prestação de serviços agrícolas (trabalho fora da unidade de produção familiar) e pluriatividade (trabalho não-agrícola).
Também se pode ver que a renda agrícola na região equivalia a apenas 38% da renda total, sendo inferior à soma das rendas externas à unidade de produção (62% do total).
Essas diferentes combinações de fontes de ingresso refletem estratégias econômicas que associam as rendas externas àquelas oriundas da unidade de produção familiar. Segundo os dados levantados na região: 68% das famílias combinam renda agrícola e não-agrícola, enquanto 51% delas diversificam a própria renda agrícola. Mas, mesmo entre aquelas que não diversificam a renda agrícola (49%), 75% ainda recorrem a rendas não-agrícolas.
Mas, o mais interessante é perceber que os grupos que agregam valor à produção (por meio do beneficiamento) apresentaram uma renda agrícola e total três vezes maior que a média do grupo que diversifica apenas com commodities agrícolas. Verifica-se ainda que as maiores rendas agrícolas e totais são obtidas pelos que diversificam via a indústria doméstica. Pode-se, portanto dizer que essa é a revelação mais interessante do estudo e significa dizer que os sistemas de produção que agregam valor conseguem se distanciar estrategicamente dos mercados de insumos sem abrir mão de uma participação mais vantajosa na comercialização. Tal observação coincide com a afirmação de Jan van der Ploeg sobre a necessidade de desatrelar a fonte dos insumos produtivos dos mercados para permitir o surgimento de uma agricultura mais autônoma.
Percebe-se, assim, que é essencial que a qualidade do processo de diversificação seja considerada, para que as famílias possam construir um leque de possibilidades alternativas de renda agrícola e não-agrícola compatível com o seu meio de vida rural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observou-se que os sistemas não-especializados geram uma renda maior do que aqueles que se dedicam a commodities agrícolas, ainda que de diferentes tipos. Isso demonstra que os efeitos benéficos da diversificação são menores quando a produção é direcionada para atender a um único segmento de mercado. Existem, portanto, formas diferentes de diversificar, sendo fundamental que se discuta a qualidade da diversificação agrícola.
Verificou-se também que as famílias que diversificam intersetorialmente e que beneficiam suas produções alcançaram rendas totais maiores que as demais. Isso significa que as vantagens da diversificação são menores quando a produção se concentra apenas em atividades agrícolas dentro da unidade familiar, sendo também premente que ocorra a diversificação intersetorial, compreendendo a pluriatividade e a integração com novas e oportunas fontes de renda.
Por fim, pensar em desenvolvimento rural é pensar na necessidade de fazer com que as novas gerações estejam dispostas a assumir as unidades de produção rural, sendo a elevação da renda per capita um efetivo caminho para realização desse objetivo. Portanto, é preponderante pensar em políticas de incentivo à diversificação dos meios de vida nessas áreas, visando, justamente, aumentar a renda das famílias do campo. Entretanto, sabemos que essa visão contrasta com o senso comum, o qual se apega à ideia de que a renda rural somente poderá se elevar quando o agricultor estiver focado num único negócio. A realidade dos sistemas de Itapejara d’Oeste comprova, pelo contrário, que quanto maior a diversificação maior a autonomia e as perspectivas das famílias agricultoras.
Miguel Ângelo Perondi
professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), agrônomo e doutor em Desenvolvimento Rural.
[email protected]
Referências Bibliográficas:
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MIOR, L. C. Agricultores familiares, agroindústrias e redes de desenvolvimento rural. Chapecó: Argos, 2005.
PERONDI, Miguel Angelo. Diversificação dos meios de vida e mercantilização da agricultura familiar. 2007. Tese (Doutorado) – Programa de Desenvolvimento Rural, UFRGS, Porto Alegre.
VAN DER PLOEG, Jan D. El proceso de trabajo agrícola y la mercantilización. In: GUZMAN, E. S.; MOLINA, M. G. de. (Ed.). Ecología, campesinado e historia. Madrid: La Piqueta, 1993. p. 153-195.
_________. O modo de produção camponês revisitado. In: SCHNEIDER, Sérgio. A diversidade da agricultura familiar. Porto Alegre: UFGRS, 2006. p. 13-54.
Baixe o artigo completo:
Revista V6N3 – Repensando a especialização agrícola