Marcia Neves Guelber Sales, Ricardo Bezerra Hoffmann, Rogério Durães de Oliveira e Eduardo Ferreira Sales
A criação de pequenos animais pelos agricultores familiares do estado do Espírito Santo é uma atividade tradicional. Eles a conduzem de forma a adaptá-la estrategicamente às flutuações inerentes aos ciclos da natureza e às diferenças entre os agroecossistemas. Um exemplo dessas práticas de ajuste do manejo às condições de conjuntura é a redução do número de animais e de espécies criadas nos períodos de escassez, principalmente em ciclos de anos secos, e a posterior recomposição dos plantéis nas épocas de abundância. A flexibilidade no sistema de criação de pequenos animais é o que o assegura como elemento estrutural permanente nos agroecossistemas, por ser capaz de cumprir diferenciadas funções em diferentes momentos. Em alguns locais ou em períodos de restrição, atende fundamentalmente às necessidades de autoconsumo das famílias. Já em épocas do ano mais favoráveis, constitui-se numa importante atividade geradora de renda monetária.
Para apresentar o contexto no qual a pequena criação se insere nos sistemas produtivos do estado, destacaremos dois momentos recentes na trajetória da agricultura familiar capixaba.
O primeiro compreende as décadas de 1980 e 1990. Foi caracterizado pelas intensas transformações dos sistemas produtivos familiares, orientadas segundo os moldes da lógica econômica empresarial, ou seja, pela tendência à especialização produtiva por meio de monocultivos, o que conduziu ao estreitamento da agrobiodiversidade, até então preservada e manejada nos agroecossistemas.
A criação de animais nos sistemas produtivos foi a atividade mais afetada nos períodos em que a monocultura do café, a principal cultura do estado, predominou mais fortemente, provocando uma redução das áreas de plantio de gêneros voltados para o autoconsumo das famílias, como o milho e a mandioca, que também têm grande importância na base alimentar das criações. Com esse processo, a manutenção de criações na propriedade foi comprometida, levando muitas famílias, sobretudo a dos meeiros, a adquirirem os produtos de origem animal no mercado.
Foi nesse contexto que os Centros Estaduais Integrados de Educação Rural (Ceier) e as Escolas Família Agrícola (EFA) se inseriram. Ambos correspondem a modelos de educação rural diferenciada, já que se orientam a partir das necessidades efetivas da agricultura familiar, tendo como referência o desenvolvimento de uma agricultura alternativa ao padrão agroquímico, monocultor e socialmente excludente.
Desde 1982, com a implantação do primeiro Ceier, a criação de pequenos animais mostrou ser uma prática essencial para a integração das atividades agrícolas desenvolvidas nos Centros. Consolidou-se também como importante estratégia para a apropriação de práticas agroecológicas pelos agricultores, como os quebra-ventos, emprego de leguminosas como adubos verdes e a compostagem, que são fundamentais na conservação e recuperação dos solos já depauperados da região. Muitas espécies empregadas como adubos verdes e quebra-ventos também fazem parte das opções para a alimentação animal, o que contribuiu bastante para a sua melhor aceitação. Além disso, a visibilidade dos efeitos dessas práticas se dá em prazo mais longo do que a criação de pequenos animais, que proporciona retornos mais imediatos e constantes para a alimentação da família e para a geração de renda.
Nas escolas, a criação de pequenos animais integra a experimentação de várias práticas agroecológicas, como o processamento de alimentos para a fabricação de rações caseiras, a zoofitoterapia e o uso da cerca elétrica no manejo dos animais em campo. Ao envolver a participação direta de alunos, professores, estagiários e pais, essas criações podem ser analisadas a partir das múltiplas funções que cumprem nos sistemas de produção, o que favorece o exercício da interdisciplinaridade e do enfoque sistêmico no processo educacional. Além da função que desempenha no processo de formação dos alunos, a manutenção desses criatórios vem se revelando como o meio mais econômico e saudável para fornecer carne, ovos, leite e mel para as cerca de 150 crianças que estudam em cada Centro anualmente.
O papel dos Centros no estímulo à criação de pequenos animais talvez tenha sido mais efetivo quando as comunidades do entorno eram diretamente envolvidas. As principais ações desenvolvidas para esse fim foram os repasses de matrizes e reprodutores, de ovos galados e pintos de um dia mediante a venda a preços acessíveis ou à base de troca com as famílias interessadas. Outro importante meio adotado foi a formação dos agricultores – homens, mulheres e jovens – por meio de palestras, oficinas, cartilhas, cursos e mutirões. Esses processos de capacitação forneceram informações fundamentais que, junto com os repasses de animais, se constituíram em um grande apoio às famílias na condução da criação de forma sustentável e econômica.
PÓLOS DE REPRODUÇÃO DA RAÇA SOROCABA
Desde o princípio de seus trabalhos nesse campo, as escolas tinham claro que a estratégia, orientada para a revalorização da criação de pequenos animais pelas famílias agricultoras, deveria ir além da disseminação de práticas inovadoras de manejo alimentar e sanitário. A adoção de raças puras, rústicas e produtivas seria também um componente essencial para que as famílias obtivessem maior autonomia tecnológica, com a possibilidade de reproduzirem seus próprios animais e de aproveitarem resíduos de outros subsistemas para o suprimento alimentar dos plantéis.
Introduzido pelos Centros em 1987, o porco sorocaba vem sendo mantido e repassado aos agricultores e a outras instituições, que vêem em suas características de rusticidade, prolificidade, qualidade de carne e facilidade de manejo as condições ideais para a criação de suínos com base nos recursos da propriedade.
O interesse dos agricultores pela raça motivou a Associação Escola Comunidade do Ceier de Boa Esperança a desenvolver, em 1993, o projeto “Pólos de Reprodução da Raça Sorocaba”. Os Pólos, que a princípio foram três, eram constituídos por grupos de seis a dez famílias. Para cada uma delas era repassada uma matriz. O reprodutor atendia ao grupo de matrizes e as despesas com sua manutenção eram divididas pelas famílias. Os plantéis dos Pólos eram formados evitando-se relações de parentesco entre as matrizes e o reprodutor. Para tanto, os descendentes eram marcados de forma a orientar o monitoramento dos futuros acasalamentos.
Os Pólos permitiram que as famílias que deles participavam iniciassem a criação de suínos ou aperfeiçoassem o sistema de produção já existente. Além da melhoria da qualidade da alimentação das próprias famílias, essa estratégia contribuiu para o repasse de leitões para a formação de novos Pólos, já que cada beneficiário inicial assumia o compromisso de devolver ao projeto quatro leitões, sendo dois em cada cria. Com a qualidade genética garantida, as famílias aumentaram a rentabilidade da criação de suínos, na medida em que reprodutores e matrizes puros alcançam preços bastante superiores aos dos leitões destinados ao abate. Com o passar do tempo, esse processo favoreceu a disseminação da raça em outros municípios do estado. No final de 1996, havia seis pólos implantados e 52 famílias participando, cada qual com uma matriz. Destas, 36 já haviam reproduzido e desmamado 668 leitões (Guelber Sales, 1996).
AVICULTURA AGROECOLÓGICA: REDESCOBRINDO FUNÇÕES
No final da década de 1990, verificou-se um processo de revalorização da agricultura familiar e do seu modo de produção. Com isso, houve um despertar para a necessidade de alteração nos rumos da condução dos sistemas agrícolas e da concepção das políticas voltadas para esse setor. A partir daí, torna-se crescente o número de agricultores que promovem a transição de seus agroecossistemas para padrões da agricultura de base ecológica. A diversificação de atividades para a geração de renda passa a ser uma busca contínua, sobretudo como forma de garantir rendimentos mais distribuídos ao longo do ano. Exemplo disso, é a produção orgânica, mais valorizada pela sociedade.
Foi nesse contexto que um projeto voltado para o desenvolvimento da criação de galinhas em sistemas sus- tentáveis foi implementado pelo Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), pelos Ceier e pela Associação de Programas em Tecnologias Alternativas (APTA).
O município de Vila Pavão foi onde as ações do projeto tiveram maior visibilidade. O Grupo Cocoricó, formado por nove famílias assessoradas pela Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente, em parceria com entidades governamentais e da sociedade civil, se organizou e se capacitou, em 2003, para a implantação de sistemas de produção comercial de ovos do tipo caipira. Atual- mente, cada família cria em média mil galinhas da linhagem Isa Brown.
Desde então, a avicultura de base ecológica passou a ser percebida como opção viável para a diversificação da renda na agricultura familiar. Além da demanda crescente por frangos e ovos do tipo caipira ou orgânico nos mercados, a atividade é facilmente assimilada pela maioria das famílias agricultoras, inclusive por aquelas que têm restrições em termos de área ou de oferta alimentar para sustentar criações de espécies de maior porte, como, por exemplo, de suínos.
A atividade proporcionou melhoria efetiva na qualidade de vida e na renda das famílias envolvidas. Segundo a agricultora Neuvina Tressmann Ramlow, “o trabalho com galinhas está sendo bom porque a gente pode trabalhar na sombra”. Ela, o esposo Lourival e boa parte dos moradores de Vila Pavão são descendentes de pomeranos, um grupo altamente suscetível ao câncer de pele devido aos efeitos do sol inclemente na região.
O bem-sucedido trabalho dessas famílias de Vila Pavão vem estimulando em todo o estado o desenvolvi- mento da atividade por outras famílias, individualmente ou reunidas em grupos.
Outro fator favorável à criação de aves tem sido o reconhecimento das múltiplas funções que a galinha desempenha nos sistemas em processo de reconversão agroecológica. A avicultura caipira e orgânica se integra bastante bem a outras importantes atividades produtivas nas propriedades da agricultura familiar no Espírito Santo, tais como a fruticultura, a olericultura e a cafeicultura. Além de fornecer esterco aos cultivos, a avicultura é subsidiada pelo aproveitamento dos restos de plantios e dos refugos de frutas e hortaliças comercializadas. Assim, a atividade que tradicionalmente é administrada pelas mulheres e jovens agricultores passa a ter o seu papel reconhecido na geração de renda e valorizada como forma de ocupação.
Há ainda outras vantagens da associação de galinhas com lavouras que têm despertado o interesse dos agricultores. Ao adotarem o sistema “trator de galinhas”, as famílias tiram partido dos “serviços” ecológicos presta- dos pelas aves, seja por “capinarem” as roças ou por controlarem brocas, lesmas e outros insetos nas lavouras (Guelber Sales, 2005).
O “trator de galinhas” e sua grande aliada, a cerca elétrica, empregados em cafezais, são práticas que vêm sendo apresentadas por meio de capacitações e oficinas realizadas em todo o estado pelo Incaper, em parceria com prefeituras e organizações ligadas aos movimentos sociais. Para o agricultor Ailton Manzolli, do Grupo de Agricultura Familiar Orgânica “Koomaya”, do município de Jaguaré, “se os frangos fizerem a capina do café, eu já fico satisfeito”. Ailton reservou em sua propriedade um hectare de café para conduzir, juntamente com outros companheiros e companheiras, uma Unidade de Experimentação Participativa desse sistema. No momento, a área abriga o segundo lote de criação de frangos de corte.
Outro grupo que vem desenvolvendo experiências com a criação de galinhas é o dos agricultores orgânicos de Santa Maria de Jetibá, na região serrana. O agricultor Admir Rossmann, membro da Associação de Certificação de Produtos Orgânicos Chão Vivo, mais uma parceira do Incaper na realização desse trabalho, utiliza a cerca elétrica e outras práticas agroecológicas voltadas para a alimentação de 250 aves de postura em conversão para o sistema orgânico. Admir já obteve a certificação orgânica da cultura do café, atividade que também desenvolve em sua propriedade de 17,1 hectares. Agora, busca a certificação da criação animal, atividade de grande importância para sua estratégia de diversificação da renda e de sustentabilidade econômica da propriedade.
CUMPRINDO ETAPAS E SUPERANDO DESAFIOS
A cada etapa cumprida, são novos os desafios colocados para o alcance de maiores níveis de sustentabilidade dos sistemas de criação da agricultura familiar capixaba. A alimentação apresenta-se como um dos principais desafios para a criação de pequenos animais. No caso das aves e dos suínos, a questão é particularmente difícil nas regiões do estado que enfrentam adversidades climáticas mais agudas. Para lidar com o problema, o tamanho dos plantéis é um dos fatores a ser considerado. Embora a atividade seja lucrativa, ela não deve permanecer dependente de insumos externos. Portanto, o (re)dimensionamento da criação deve levar em conta a capacidade dos sistemas produtivos de proporcionar a alimentação necessária, se quisermos caminhar na direção da sustentabilidade.
Outro desafio a ser enfrentado está relacionado ao acesso das famílias a recursos genéticos de animais adaptados, produtivos e de baixo custo. Apesar dos esforços que vêm sendo realizados pelos Ceier e outras instituições, como o Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Espírito Santo (CAA-UFES) e o Grupo de Agricultura Ecológica Kapi’xawa, e do crescente interesse dos agricultores, expresso nas listas de espera por leitões nos Ceier, perdura o risco de desaparição da raça sorocaba em razão das limitadas taxas de renovação de reprodutores e matrizes (Siqueira, 2005).
No caso da avicultura, tanto de corte como de postura, a questão é mais complexa. As linhagens adotadas nos sistemas agroecológicos, embora adaptadas a esse enfoque de produção, são híbridas e, como tal, devem ser adquiridas a cada renovação de plantel. Esse fato gera total dependência dos agricultores, que atualmente pagam entre R$ 1,50 a R$ 2,00 pelo pinto de um dia.
Como podemos observar, as experiências ora apresentadas não são estanques, mas seguem uma dinâmica própria. Os diferentes níveis dessa transição exigem reflexão e avaliação contínuas dos agricultores e das instituições que os acompanham nessa caminhada. De certo modo, esta reflexão tem sido feita e conduz a novos passos, mesmo que sejam para a correção de rumos.
A despeito da importante contribuição que as instituições aqui referenciadas vêm dando para o desenvolvimento sustentável da criação de pequenos animais no estado, acreditamos que a existência de uma educação rural diferenciada e de qualidade foi e será decisiva para que as pequenas criações estejam sempre presentes na trajetória dos agricultores familiares.
Marcia Neves Guelber Sales :
pesquisadora do Incaper
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Ricardo Bezerra Hoffmann:
professor de zootecnia do Ceier de Boa Esperança
[email protected]
Rogério Durães de Oliveira:
extensionista do Incaper
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Eduardo Ferreira Sales:
pesquisador do Incaper
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Referências
GUELBER SALES, M.N. Sistematização das experiências dos PRRS – Pólos de reprodução da raça Sorocaba. Vitória: Incaper, 1996. 18 p. Mimeografado
_______________. Criação de galinhas em sistemas agroecológicos. Vitória: Incaper, 2005. 287 p.
SIQUEIRA, H.M. et al. Sustentabilidade da agricultura familiar e formação profissional no CCAUFES. In: III CONGRESSO BRASILEIRO DE AGROECOLOGIA, 2005, Florianópolis, SC.
Baixe o artigo completo:
Revista V2N4 – Revalorizando as pequenas criações na agricultura familiar capixaba