Paulo Petersen e Edinei de Almeida
“Sabemos mais sobre o movimento dos corpos celestes do que sobre o solo sob os nossos pés”.
Leonardo da Vinci
Diferentes sociedades no passado foram capazes de desenvolver sistemas de uso e manejo dos solos agrícolas que as sustentaram por várias e várias gerações mesmo sem possuírem conhecimentos sobre os complexos ciclos naturais que atuam na manutenção da fertilidade dos ecossistemas. Só mais recentemente é que a ecologia dos solos vem despontando como importante ramo das ciências agrárias, abrindo aos poucos a “tampa da caixa preta” representada pelas complexas interações solo-planta. Com isso, passamos a entender melhor como os organismos do solo atuam na sua estruturação e contribuem na ciclagem dos nutrientes, assim como descobrimos que as relações de simbiose entre plantas e microrganismos na natureza é uma regra e não uma exceção (Anderson, 2006).
À medida que a fronteira dos conhecimentos nesse campo avança, permitindo que os fundamentos ecológicos de práticas tradicionais de cultivo sejam melhor compreendidos, tornam-se mais evidentes as limitações do enfoque reducionista que domina as ciências do solo, em particular os estudos sobre fertilidade (de Jesus, 1996). Ao privilegiar as propriedades químicas dos solos em detrimento de um enfoque mais abrangente que contemple os fenômenos físico-químico-biológicos, o conceito de fertilidade largamente aceito orientou o desenvolvimento dos métodos de fertilização baseados nos adubos sintéticos. Segundo essa concepção, a fertilidade estaria diretamente relacionada às quantidades totais de nutrientes disponíveis para as plantas e, sendo assim, o solo agrícola funcionaria de forma análoga a uma conta bancária em que os nutrientes devem ser sistematicamente depositados para que a fertilidade seja mantida, apesar das seguidas retiradas por ocasião das colheitas.
Essa forma de compreender a fertilidade não corresponde aos fenômenos naturais observados por camponeses no mundo inteiro e que desde sempre foram fontes de inspiração para o aprimoramento contínuo dos métodos de manejo dos solos com base na experimentação local. Mas foi exatamente essa forma de conceber a fertilidade que orientou o desenvolvimento da ciência agrícola, em que pese o fato de sua limitação ter sido apontada já no final do século XIX pelo pai da química agrícola, o cientista alemão Justus von Liebig. Dessa forma, o desenvolvimento tecnológico nesse campo tomou o rumo da agroquímica, resultando na alta dependência da agricultura à indústria e à energia derivada do petróleo.
A atual crise global dos alimentos estampou a insustentabilidade do padrão produtivo da agricultura industrial, chamando a atenção para a convergência de três grandes dilemas com os quais a humanidade se depara: o primeiro se refere ao aumento exponencial dos preços do petróleo e suas implicações diretas sobre os custos dos agroquímicos ; o segundo está ligado aos impactos ainda imprevisíveis das mudanças climáticas sobre a produção alimentar; o terceiro é a degradação e a perda em ritmos acelerados da agrobiodiversidade, dos solos e dos recursos hídricos em função do emprego de métodos predatórios de produção agrícola que vêm sendo subsidiados há décadas pela energia barata do petróleo.
Diante da estreita relação entre esses três dilemas, qualquer estratégia para enfrentá-los de forma integrada deve passar necessariamente pelo desafio de superar a dependência estrutural da agricultura aos insumos industriais e à energia fóssil sem que com isso ela perca sua capacidade de responder às demandas alimentares da crescente população mundial. Essa estratégia deve se pautar por um conceito renovado de fertilidade que permita orientar o desenvolvimento de métodos produtivos que se reproduzam com base na energia solar (fotossíntese) e na reciclagem biológica de nutrientes e que ao mesmo tempo conservem os recursos naturais e reduzam drasticamente a emissão de gases de efeito estufa.
A experiência de conversão ecológica de sistemas de manejo de solos conduzida por grupos de agricultores familiares no Sul do Brasil descrita neste artigo é rica em ensinamentos úteis ao desenvolvimento dessa estratégia.
O CONTEXTO REGIONAL
O sistema de roça de toco alternado com períodos longos de pousio foi o método empregado por gerações de agricultores na região do Contestado, território que engloba municípios do Planalto Norte de Santa Catarina e do Centro-Sul do Paraná. Entretanto, nos dias de hoje, praticamente não se tem registro desse modelo de gestão da fertilidade na paisagem da região. Como em outras partes do mundo onde esse sistema tradicional predominou, ele se inviabilizou tecnicamente com o aumento da densidade demográfica e a partilha dos estabelecimentos familiares pelos processos sucessórios, verificando-se assim a intensificação do uso dos solos e a redução progressiva dos períodos de pousio.
Em contraposição, a agricultura da região assistiu nos últimos 40 anos à introdução dos fertilizantes industriais no bojo de um conjunto integrado de tecnologias agroquímicas, genéticas e mecânicas. Os chama- dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde foram incorporados inicialmente nas culturas da soja, do milho, da batata inglesa e do fumo, promovendo grandes mudanças estruturais e funcionais nos agroecossistemas regionais. Fomentadas por políticas públicas, essas alterações na base técnica conduziram as unidades familiares a níveis crescentes de especialização produtiva em substituição aos antigos sistemas agrosilvipastoris, que articulavam policulturas com criatório extensivo e extrativismo vegetal, sobretudo o da erva-mate (Ilex paraguariensis). Ao substituir os serviços ambientais da biodiversidade responsáveis pela regeneração da fertilidade pelos insumos sintéticos, essas mudanças induziram à progressiva subordinação das economias familiares aos mercados de insumos e às cadeias de processamento e distribuição de produtos (Petersen et al., 2002).
Com áreas de cultivo cada vez menores e de- gradadas pelo emprego de métodos de manejo insustentável e submetida ao fenômeno da “tesoura dos preços ” com o aumento exponencial dos custos dos insumos e a depreciação do valor dos seus produtos, a agricultura familiar da região ingressou na última década em processo acelerado de empobrecimento e perda de perspectivas. Como resultado, a migração para as cidades, principal- mente entre os jovens, tem se intensificado.
CONSTRUINDO ALTERNATIVAS
A busca por alternativas técnicas e econômicas para a agricultura familiar da região vem motivando desde o início da década de 1990 a configuração de redes de inovação agroecológica polarizadas em torno a alguns temas mobilizadores, entre eles, o manejo ecológico dos solos. Com assessoria da AS-PTA, atualmente essas redes articulam grupos de agricultores-experimentadores (A/ Es) presentes em 42 comunidades de 16 municípios.
Apesar dos bons resultados técnicos, econômicos e ambientais dos experimentos de manejo ecológico dos solos conduzidos pelos vários núcleos comunitários de A/Es, verifica-se ainda uma limitada irradiação regional dos métodos inovadores. A primeira e principal razão para esse fato é o papel que as políticas públicas continuam a exercer no sentido de induzir a agricultura familiar à intensificação produtiva pela via da agroquímica. Recente pesquisa sobre a alocação dos recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) no estado do Paraná, por exemplo, constatou que 88% dos recursos do crédito foram empregados no custeio da produção, sobretudo na aquisição de insumos industriais (Ibase, 2006).
Outro fator limitante para a disseminação dos métodos ecológicos está relacionado ao fato de que o sucesso dos mesmos depende da adoção de um conjunto integrado de mudanças nos sistemas de cultivo, e não na simples substituição dos insumos agroquímicos por outros de origem orgânica ou natural.
Frente ao aumento de custos de produção que vem progressivamente reduzindo a rentabilidade da agricultura, um número cada vez maior de famílias da região vem procurando alternativas técnicas para melhorar a eficiência econômica de suas lavouras. Um sintoma desse fenômeno é a crescente demanda por insumos alternativos por parte de agricultores que mantinham seus sistemas técnicos com base nos pacotes agroquímicos. Ocorre, porém, que a falta de um embasamento teórico que referencie o emprego dessas práticas faz com que elas tendam a ser incorporadas de forma pontual, na lógica da substituição de insumos, sendo por isso limitadas na promoção das interações ecológicas benéficas ao desempenho produtivo e à sanidade das culturas. O pó do basalto, por exemplo, é um insumo que tem sido utilizado por um número expressivo de famílias agricultoras. Entretanto, nas condições locais, sua efetividade agronômica é ampliada quando sua aplicação se dá de forma associada ao manejo de biomassa, sobretudo de adubos verdes, e ao preparo do solo com o mínimo revolvimento possível. Sua função no sistema é a de dinamizar processos biológicos nos solos, e não o de fornecer nutrientes diretamente para as plantas cultivadas (Almeida et al., 2006). O adubo da independência, uma adaptação do bokashi realizada por grupos de A/Es da região e a revalorização do uso das sementes de variedades crioulas são outros exemplos de práticas alternativas aos sistemas convencionais incorporadas aos sistemas de milhares de famílias agricultoras na região.
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO X TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIAS
A revisão da concepção convencional de gestão da fertilidade exige o emprego de enfoques metodológicos participativos que possibilitem a construção coletiva e a socialização de conhecimentos sobre os fenômenos naturais que fundamentam os métodos de manejo ecológico. Esse desafio implica necessariamente na superação das abordagens difusionistas direcionadas à mera transferência de tecnologias pontuais, ou seja, mais voltadas para a capacitação instrumental dos agricultores do que para a expansão de seus conhecimentos e de suas margens de liberdade para inovar.
As redes de agricultores-experimentadores têm criado ambientes de interação social fecundos para o aprendizado com base na experimentação prática e no intercâmbio de conhecimentos entre agricultores(as) e destes(as) com técnicos(as) assessores(as) e pesquisado- res(as). Além disso, a celebração de parcerias com universidades e centros de pesquisa tem permitido que a qualidade dos solos nas áreas de experimentação dos agricultores seja monitorada com base em indicadores só acessíveis por métodos analíticos dominados pela academia. Os resultados desses monitoramentos têm enriquecido as análises coletivas realizadas nas redes de A/Es sobre o manejo ecológico dos solos.
Assim, ao associar a experimentação individual ou de pequenos grupos comunitários com momentos coletivos para reflexão crítica sobre os resultados desses experimentos, as redes de A/Es vêm se apropriando de novos conhecimentos relacionados à ecologia dos solos. Por meio dessa permanente vinculação entre a prática e a teoria do manejo ecológico, aos poucos a noção convencional de fertilidade é superada e, com ela, a percepção do solo como um banco onde os nutrientes entram e saem de forma linear.
A TRANSIÇÃO NOS SISTEMAS DE MANEJO DOS SOLOS
Como vimos, os métodos ecológicos de gestão da fertilidade associam um conjunto de inovações de manejo. Na região do Contestado, as iniciativas mais avançadas nesse sentido são encontradas nas áreas de plantio direto ecológico. Ao suprimir o emprego de herbicidas e da aração – esta última uma estratégia importante dos agricultores para o controle das plantas espontâneas –, o plantio direto ecológico exige um conjunto de medidas de manejo prévias que assegurem condições ambientais propícias para que seja implantado com sucesso. As rotações de culturas, sobretudo com o pré-cultivo de coquetéis de adubos verdes, a manutenção do solo permanentemente coberto, a aplicação de pós de rocha (principalmente o basalto) e do adubo da independência e o emprego de sementes crioulas estão entre as práticas mais freqüentes nesse rol de inovações de manejo.
Mais do que o somatório de técnicas inovadoras, essas mudanças vêm sendo analisadas pelos grupos de A/Es como uma estratégia integrada de transição no manejo dos solos voltada para o restabelecimento de funções ecológicas essenciais à reprodução da fertilidade. Nesse caso, a fertilidade está associada ao suprimento constante e equilibrado de nutrientes, e não às altas concentrações nos solos de alguns poucos elementos minerais considerados essenciais para as plantas cultivadas. A mudança fundamental de uma concepção para outra está no fato de que se substitui a lógica linear de gestão da fertilidade, centrada nas entradas e saídas de nutrientes do sistema, por outra que valoriza a ciclagem permanente por meio do manejo da biodiversidade funcional.
A incorporação dessa nova concepção de fertilidade por parte dos A/Es tem sido essencial para que os mesmos estabeleçam suas próprias estratégias de conversão técnica dos sistemas de manejo, inclusive adotando novos indicadores para monitorar a evolução da qualidade dos solos. Aquelas famílias que possuem os terrenos mais degradados – em função dos seguidos anos de monoculturas manejadas com o revolvimento dos solos e a sua exposição às chuvas e ao sol e com o emprego intensivo de adubos sintéticos e agrotóxicos – têm procurado introduzir as práticas inovadoras paulatinamente, à medida que as funções ecológicas se restabelecem. Nas fases iniciais da transição predomina a lógica da substituição de insumos e não implica grandes alterações nas rotinas técnicas das famílias. Já as fases mais avançadas exigem que mudanças estruturais nos sistemas sejam implementadas, cobrando maiores níveis de reorganização do trabalho familiar.
OS FUNDAMENTOS DO MANEJO ECOLÓGICO
A superação da visão dominante que sustenta que a fertilidade é o reflexo da quantidade total ou da concentração dos nutrientes no solo se fundamenta em alguns princípios ecológicos estreitamente relacionados à dinâmica biológica dos solos. O primeiro deles, já citado, refere-se ao suprimento constante e equilibrado dos elementos nutritivos proporcionado pela decomposição da biomassa do sistema. Atuando como reservatórios temporários, a matéria orgânica e os organismos do solo liberam os nutrientes aos poucos e em proporções balanceadas para as culturas.
O segundo está relacionado à função desempenhada pelos organismos do solo e pelas raízes de espécies espontâneas e de adubos verdes na estruturação dos solos em profundidade, com isso rompendo camadas compactadas, favorecendo a penetração de raízes dos cultivos e a infiltração da água das chuvas no perfil.
Agricultores da região que já atingiram estágios mais avançados de transição têm alcançado produções mais regula- res do que as lavouras convencionais pelo fato de seus cultivos sofrerem menos com o estresse hídrico provocado pelos cada vez mais freqüentes e prolongados veranicos. No contexto de aumento dos riscos climáticos associados ao aquecimento global, nos parece irracional a continuidade do estímulo ao uso intensivo de adubos industriais sabendo-se que as plantas necessitam de água para a absorção de nutrientes do solo.
O terceiro princípio está ligado ao emprego de variedades crioulas nos sistemas de manejo ecológico. Resultantes de processos co-evolutivos locais, alguns deles iniciados há séculos por povos indígenas, os genótipos dessas variedades são mais adaptados às condições ambientais da região. Ao contrário das variedades e híbridos comerciais, desenvolvidos segundo pressões de seleção voltadas para a maximização da produtividade física mediante o emprego de altas doses de fertilizantes sintéticos, as variedades crioulas possuem pelo menos duas estratégias importantes para a adaptação às condições ambientais locais. A primeira delas é o investimento de energia para o desenvolvimento do sistema radicular em profundidade de forma a explorar maior volume de solo na busca de nutrientes e água. Condicionadas a absorver os nutrientes próximos ao local de germinação de suas sementes, as variedades e híbridos comerciais não alocam a mesma energia nesse processo, carreando-a primordialmente para a formação do produto de interesse econômico. A segunda estratégia é a associação com os organismos do solo para que a capacidade de absorção de nutrientes se amplie. Um exemplo, infelizmente ainda pouco estudado, são as associações entre variedades crioulas de milho e fungos micorrízicos: os fungos aumentam significativamente o volume de solo explorado pelas raízes do milho que, em contrapartida, fornece carboidratos para os fungos simbiontes. Por serem desenvolvidas em solos adubados quimicamente, as variedades e híbridos comerciais não foram condicionados geneticamente a se associar com organismos dos solos.
Este último princípio destaca o fato de que, sob o enfoque agroecológico, o conceito de fertilidade deve ser apreendido por uma perspectiva sistêmica que abranja o solo e a sua vegetação (seja ela espontânea ou introduzida), na medida em que ambos interagem dinamicamente entre si realimentando ciclos de vida por meio da constante troca de nutrientes e energia. Essa perspectiva coloca em xeque a noção amplamente aceita no meio científico de que a região do Contestado possui solos de baixa aptidão agrícola, já que suas análises químicas revelam a existência de limitadas quantidades de nutrientes disponíveis para as culturas, além de apresentarem elevada acidez e baixa capacidade de troca catiônica (CTC), fatores limitantes ao desempenho dos fertilizantes industriais.
Realizada pelo prisma reducionista da agroquímica, essa avaliação deixa à sombra os potenciais ecológicos dos ecossistemas locais que podem ser valoriza- dos na gestão da fertilidade dos agroecossistemas. Onde há oferta de água o ano inteiro, como nessa região, pode-se compensar a baixa disponibilidade de nutrientes por volume de solo por uma eficiente ciclagem mediada pela biodiversidade. Com efeito, tanto as práticas tradicionais de uso dos solos no passado quanto as iniciativas atuais de manejo agroecológico questionam a alegada baixa aptidão dos solos, ao evidenciarem, cada uma a seu tempo, o enorme potencial agrícola existente na região.
DESFAZENDO MITOS E APONTANDO CAMINHOS
Experimentos de manejo ecológico dos solos conduzidos por agricultores da região vêm ano após ano apresentando resultados positivos e motivando um crescente número de famílias a se engajarem nas redes de agricultores-experimentadores. Quando comparados com os sistemas convencionais de manejo da fertilidade, revelam que o emprego dos fertilizantes químicos é tecnicamente desnecessário, ambientalmente danoso e economicamente extravagante.
Estudo realizado junto a famílias de diferentes municípios do Centro-Sul do Paraná que atingiram estágios avançados da transição nos sistemas de manejo dos solos revelou que as lavouras conduzidas em sistema de plantio direto ecológico superaram as médias regionais de produtividade de feijão e de milho da agricultura familiar, apesar de eliminarem por completo o emprego de insumos agroquímicos. Se esses resultados fossem generalizados para o conjunto das famílias agricultoras da região, assistiríamos a um aumento da produção regional de, pelo menos, 63.180 toneladas de feijão preto e de 108.000 toneladas de milho (Petersen et al., 1999). Esses resultados produtivos tendem com o tempo a se incrementar, à medida que os solos melhorem sua qualidade com a sucessão de anos sob manejo ecológico. Além disso, as quebras de safra pelas flutuações climáticas tendem a ser mitigadas em função da criação de ambientes agrícolas mais resilientes. Finalmente, os solos, a água e a agrobiodiversidade são conservados. Também do ponto de vis- ta global, teríamos sistemas técnicos ambientalmente mais sustentáveis. Além de reter maiores quantidades de carbono e de diminuir as emissões de gases de efeito estufa, são sistemas menos dependentes de insumos externos derivados do petróleo e de outros recursos naturais finitos.
Para além dos efeitos ambientais benéficos nas escalas local e global, essa menor dependência de insumos industriais implica em significativa melhoria na rentabilidade das lavouras. Esse aspecto foi recentemente verificado em avaliações comparativas entre os desempenhos econômicos de lavouras de milho em fases iniciais de transição agroecológica e de lavouras convencionais. Essas avaliações foram conduzidas pela AS-PTA e pela Epagri, juntamente com o grupo de A/Es da comunidade Colônia Escada, município de Irineópolis (SC), que conta atualmente com 54 membros, a sua maioria constituída por agricultores que vinham até recentemente manejando seus sistemas produtivos pelos métodos convencionais.
As lavouras de milho monitoradas encontravam-se em diferentes estágios de transição mas, de forma geral, empregaram sementes de variedades crioulas, o pré-cultivo de adubos verdes, fontes de biomassa produzidas na propriedade, principalmente esterco, e o pó de basalto, este último distribuído à lanço antes do semeio dos adubos verdes de inverno ou na linha dos cultivos de verão. A produtividade média dessas lavouras foi de 5.550 kg/ha e os seus custos de produção foram, em média, de R$ 278,00 por hectare (equivalente a 834 quilos de milho). Já os sistemas convencionais alcançaram uma produtividade média de 10.000 kg/ha e seus custos médios de produção foram de R$ 2.479,00 por hectare (correspondente a 7.438 quilos de milho).
Os dados colhidos nessas avaliações realçam o fato de que a rentabilidade das lavouras em transição ecológica é imensamente superior a dos sistemas convencionais. Para cada real investido nos sistemas em transição, os agricultores recuperaram R$ 7,40, ao passo que os sistemas convencionais remuneram os agricultores com apenas 13 centavos para cada real investido (ver Gráfico 1). Analisando sob outro prisma, esses dados revelam que as maiores produtividades alcançadas nas lavouras convencionais não são revertidas em renda para as famílias. Pelo contrário, apesar dos imensos riscos econômicos a que estão submetidas, a riqueza gerada pelo trabalho dessas famílias é, em sua maior parte, apropriada pela cadeia agroindustrial e financeira do agronegócio.
Ainda há duas considerações conjunturais a serem feitas sobre os resultados dessas avaliações: a primeira refere-se ao fato de que o preço do milho praticado neste ano – R$ 20,00/saco – foi relativamente alto em face das médias históricas. Isso significa que o desempenho econômico dos sistemas convencionais tende a piorar com a estabilização desse valor em um patamar abaixo do praticado na presente safra. A segunda consideração é que o desempenho econômico das lavouras implantadas nas áreas em transição tende a crescer progressivamente com o aumento paulatino das produtividades dos cultivos resultante da recuperação da fertilidade do ambiente.
Esse tipo de análise conduzida com a rede local de A/Es tem favorecido reflexões que vinculam o desempenho econômico das lavouras aos serviços ambientais promovidos pela biodiversidade associada aos cultivos. Realça-se assim a relação direta entre a economia e a ecologia dos agroecossistemas, permitindo que os agricultores e agricultoras diretamente envolvidos na inovação agroecológica compreendam e questionem a lógica econômica insustentável do agronegócio, bem como os subsídios públicos que sustentam artificialmente a vigência do modelo técnico hegemônico.
DESAFIOS POLÍTICOS E CIENTÍFICOS
Diante da inflação dos preços dos alimentos nos mercados internacionais, o governo brasileiro tomou recentemente a iniciativa de lançar o programa Mais Alimentos, com o objetivo de aumentar a produção nacional de gêneros alimentícios em 18 milhões de toneladas até 2010. Para alcançar essa meta, suas ações se orientam ao incremento da produtividade da agricultura familiar pela via da disseminação de tecnologias químico-mecânicas. Repetindo erros do passado, esse programa é falho tanto no diagnóstico do problema quanto no remédio proposto para enfrentá-lo.
Pelo lado do diagnóstico, se equivoca porque os principais limitantes ao aumento da produção alimentar no Brasil não são de natureza tecnológica. Eles estão primordialmente relacionados a fatores políticos e estruturais que restringem a produção rural de base familiar, entre os quais destacamos a liberalização do mercado internacional de alimentos e seus efeitos perversos sobre as economias de base familiar e a grande concentração fundiária que impede o avanço e a consolidação do campesinato, o principal produtor de alimentos no país. Além disso, um dos fatores que contribuem para a disparada dos preços dos alimentos é a inflação dos custos da produção agrícola resultante dos aumentos vertiginosos e irreversíveis dos preços do petróleo.
Pelo lado da receita adotada pelo programa, nos parece um contra-senso a insistência do uso de recursos públicos para viabilizar a disseminação de um modelo tecnológico estruturalmente dependente do petróleo exatamente no momento em que a humanidade se dá conta dos dilemas ambientais e energéticos que colocam em risco a civilização.
Iniciativas como as que vêm sendo levadas à frente pela rede de A/Es da região do Contestado apontam caminhos inspiradores para a superação do modelo técnico hegemônico por meio da adoção de padrões sus- tentáveis de uso dos solos norteados por um conceito de fertilidade diretamente relacionado aos ciclos naturais. Em grande medida, esses caminhos implicam a revalorização de práticas tradicionais de uso e manejo dos solos agrícolas que foram sumariamente desqualificadas e ignoradas pela ciência do solo a partir do momento em que passou a se orientar seu desenvolvimento pelo reducionismo agroquímico.
Só mais recentemente, ao colocar em xeque o dogma positivista que domina as ciências agrárias, é que a Agroecologia vem se afirmando como enfoque científico aberto ao diálogo de saberes, criando assim condições para que as capacidades de observação e de inovação de agricultores e agricultoras sejam valorizadas e desenvolvidas. Quiçá, no futuro, possamos melhor compreender e tirar partido prático de sofisticadas observações empíricas que inspiram desde um passado remoto o desenvolvimento de métodos agrícolas como, por exemplo, o fato de que muito do que ocorre no solo sob os nossos pés está direta- mente relacionado com o movimento dos corpos celestes.
Paulo Petersen
Diretor-executivo da AS-PTA
[email protected]
Edinei de Almeida
Assessor técnico da AS-PTA
[email protected]
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Edinei; SILVA, F.J.P.; RALICSH, R. Revitalização do solo em processos de transição
agroecológica no sul do Brasil. Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de Janeiro, v. 4, n.1, março de 2007.
ANDERSON, Bart. Soil food web: opening the lid of the black box. In: Energy Bulletin, 2006. Disponível em: <http://www.energybulletin.net/node/23428>
de JESUS, Eli Lino. Histórico e filosofia da ciência do solo: longa caminhada do reducionismo à abordagem holística. In: Alternativas: cadernos de agroecologia. Rio de Janeiro: AS-PTA, 1996.
IBASE. Relatório Pronaf: resultados da etapa Paraná. Rio de Janeiro, 2006.
PETERSEN, P.; TARDIN, J.M.; MAROCHI, F.M. Tradição (agri)cultural e inovação agroecológica: facetas complementares do desenvolvimento agrícola socialmente sustentado na região centro-sul do Paraná. União da Vitória: AS-PTA, 2002.
PETERSEN, P.; TARDIN, J.M.; MAROCHI, F.M. Participatory development of no-tillage systems without herbicides for family farming: the experience of Center South Region of Paraná. In: Environment Development and Sustainability, The Netherlands, v.1, n. 3-4, 1999.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N3 – Revendo o conceito de fertilidade: conversão ecológica do sistema de manejo dos solos na região do Contestado