Luciano Silveira, Roselita Victor e Nelson Anacleto
Ao longo dos últimos treze anos, constituiu-se no agreste do estado da Paraíba uma experiência singular de gestão do desenvolvimento local conduzida pelas organizações de trabalhadores e trabalhadoras rurais.
A progressiva consolidação dessa experiência se fundamenta no que é também seu grande ensinamento: uma estratégia política e metodológica voltada para reorientar a própria vocação dessas organizações para a promoção do desenvolvimento, ao mesmo tempo em que atribui ao conhecimento local papel central nos processos de mobilização social para a inovação agroecológica.
No início dos anos 1990, três sindicatos de trabalhadores rurais (STRs) dos municípios de Solânea, Remígio e Lagoa Seca se colocaram o desafio de buscar estratégias inovadoras de intervenção, capazes de gerar dinâmicas sócio-organizativas que atuassem sobre a essência da problemática da agricultura familiar da região. Tratava-se, para esses sindicatos, de reverter uma conjuntura de descenso do movimento sindical e de conectar suas pautas de luta, até então muito genéricas, à realidade e às motivações concretas da numerosa e diversificada agricultura familiar do agreste.
Com essa iniciativa, cumpria então seus primeiros passos a trajetória do Pólo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema: uma rede constituída atualmente por 16 sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais, aproximadamente 150 associações de base comunitária e uma organização regional de agricultores ecologistas, que vêm galvanizando regionalmente processos sociais massivos de inovação agroecológica voltados para o desenvolvimento sustentado da agricultura familiar e que envolvem atualmente um número superior a cinco mil famílias.
A CONSTRUÇÃO ASSOCIADA DO CONHECIMENTO E DAS ORGANIZAÇÕES
Ao estabelecer, em 1993, uma parceria com a AS-PTA, os três sindicatos se lançaram num esforço combinado de produção de conhecimentos sobre a realidade da agricultura familiar e de mobilização de suas bases sociais, por meio de processos coletivos de experimentação de inovações técnicas e político-organizativas, com vistas à promoção do desenvolvimento local em bases agroecológicas.
A realização dos primeiros diagnósticos rápidos e participativos dos agroecossitemas nos municípios fez emergir novas percepções sobre os distintos ambientes, sobre a diversidade dos sistemas produtivos e sobre os condicionantes ecológicos, econômicos e socioculturais da vida das famílias produtoras, que passaram a compartilhar esses conhecimentos em nível comunitário.
Estimulados pelos diagnósticos e pelo contato com novas experiências, por meio de visitas de intercâmbio, um número crescente de agricultores e agricultoras se envolveu em processos de experimentação promovidos em suas propriedades e comunidades. Os fluxos interativos e as iniciativas que daí se desdobraram suscitaram novas perguntas e demandas por conhecimentos que refletiam a amplitude das motivações e dos problemas a enfrentar. As questões assim postuladas desencadearam a realização de sucessivos estudos e diagnósticos sobre aspectos específicos sugeridos pelas dinâmicas sociais de inovação. Esses exercícios compartilhados de conhecimento focaram tanto temas relacionados às estratégias produtivas – como a diversidade de feijões cultivados, os sistemas de criação, o manejo dos recursos hídricos, o uso de frutas nativas e das plantas medicinais, a gestão dos arredores de casa –quanto aspectos de corte metodológico e político, como a participação das famílias mais pobres nas redes de inovação e o impacto das políticas públicas sobre a sustentabilidade da agricultura familiar regional.
A evolução dos processos de experimentação e de conhecimento da realidade resultou na configuração de um ciclo integrado de ações irradiadoras e mutuamente fecundantes. A realização dos diagnósticos permitiu que as direções sindicais não apenas entendessem melhor a estrutura e o funcionamento dos agroecossitemas, mas sobretudo que os visualizassem em sua diversidade como expressão de estratégias técnicas e econômicas peculiares das famílias. Essas iniciativas favoreceram também a identificação e a valorização do conhecimento local, ampliando e qualificando o diálogo com as famílias agricultoras. Na expressão de uma liderança local, os sindicatos descobriram os tesouros escondidos nas comunidades, ao se referir ao patrimônio de conhecimento acumulado pela agricultura familiar do agreste e às respostas criativas que tem dado ao longo do tempo a muitos dos problemas por ela enfrentados.
Os intercâmbios intensificaram as interações de agricultor para agricultor, constituindo-se um importante mecanismo de projeção das capacidades técnicas, sócio-organizativas e políticas das famílias agricultoras e se conformando, finalmente, como momentos fecundos geradores de conhecimentos e principal instrumento da disseminação de inovações e da irradiação do próprio processo de experimentação.
Da mesma forma, a participação direta de agricultoras e agricultores conferiu um novo significado à construção coletiva de conhecimentos, alterando a natureza de sua contribuição às ações para o desenvolvimento local. Simultaneamente, gerou uma identidade própria associada a sua inserção social e política nos espaços organizativos comunitários e na vida sindical, ao passarem a ser conhecidos e a se reconhecerem como agricultoras e agricultores experimentadores, integrados ao movimento emergente de inovação agroecológica.
Coordenadas pelos próprios STRs e animadas pelos agricultores-experimentadores, uma grande multiplicidade de práticas agroecológicas se disseminaram nos sistemas produtivos da região. Ao mesmo tempo, vão se estruturando diversas expressões coletivas de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar nas comunidades. Inovações sócio-organizativas de gestão de recursos, como os Bancos de Sementes e os Fundos Rotativos Solidários, dão suporte aos processos comunitários de inovação, viabilizando o acesso a sementes, mudas, esterco, cercas de tela, cisternas de placa e outras infra-estruturas hídricas. Agricultores e agricultoras passaram também a ter uma participação mais ativa na vida das comunidades, discutindo e refletindo sobre a realidade da agricultura familiar, as formas de superação de seus problemas, assim como participando da gestão de recursos coletivos.
Com a dinamização dos espaços de interação e de organização comunitárias, a estrutura vertical e presidencialista dos sindicatos, bem como as tradicionais formas associativas de subordinação clientelista ao poder local, foi progressivamente dando lugar a processos político-organizativos autodeterminados pelas famílias nas comunidades. As ações de desenvolvimento estimuladas pelos STRs passaram a ser crescentemente compartilhadas e conduzidas em parceria com as associações locais, estreitando as relações em torno a objetivos comuns. No dizer de lideranças envolvidas, os sindicatos começaram a sair de trás do birô, onde se ocupavam essencialmente dos trâmites formais da previdência social, e passaram a se empenhar em iniciativas de desenvolvimento das comunidades de seus municípios.
Na medida em que se reconhecem como produtores e gestores de conhecimento e que incorporam a identidade de promotores do desenvolvimento local, dirigentes sindicais e lideranças comunitárias passaram também a perceber, de forma diferente e mais apropriada, o papel das entidades assessoras, ao assumirem de forma autônoma parte significativa das atribuições anteriormente por elas desempenhadas. Os sindicatos, por exemplo, constituíram comissões compostas por agricultores-experimentadores para encaminhar os processos de inovação agroecológica em torno a alguns temas mobilizadores da experimentação. Essas comissões passaram a atuar como espaços de planejamento, monitoramento e avaliação do trabalho junto aos grupos de experimentação nos seus respectivos municípios, deixando de contar integralmente com a iniciativa da assessoria para que essas atividades fossem realizadas.
Dessa forma, a ação da organização sindical deixou de estar limitada aos membros das direções que dão expediente e atuam mais regularmente na grande maioria dos STRs –presidente, secretário(a) e tesoureiro(a) –, abrindo-se a uma participação orgânica e mais ampla de outros dirigentes identificados com a nova forma de atuar e, sobretudo, de agricultoras e agricultores experimentadores que se incorporam às ações de promoção da Agro- ecologia como novos sujeitos políticos da vida sindical. Essa evolução contribuiu de forma decisiva para a democratização da esfera sindical, atenuando as relações centralizadoras exacerbadas, tradicionalmente presentes, nas direções sindicais. Prova disso é que, nas sucessivas eleições ocorridas nos últimos anos nos três sindicatos, assistiu-se a uma clara renovação da composição das direções em favor desses sujeitos sociais emergentes.
Nessa evolução, cabe destacar a participação das mulheres, tanto nos processos locais de experimentação, ao incorporarem temas de trabalho de interesse específico – como plantas medicinais ou ainda a água para o consumo da casa –, quanto na construção de um novo sujeito político. A valorização da presença feminina nas redes de inovação e de sua contribuição à economia familiar, bem como sua inserção nos espaços públicos (nos STRs, na catequese familiar, nas associações, etc.), vem favorecendo um maior equilíbrio do poder decisório entre gêneros, seja no âmbito do núcleo familiar ou na esfera pública, contribuindo para uma maior eqüidade e sustentação sociopolítica do processo de construção e promoção de um modelo de desenvolvimento para a região.
A EMERGÊNCIA DO PÓLO SINDICAL E O AUMENTO DE ESCALA
O avanço da proposta de desenvolvimento local e da constituição das redes de inovação nos municípios de Solânea, Remígio e Lagoa Seca foi aos poucos se irradiando e despertando o interesse de sindicatos e de outras organizações de agricultores dos demais municípios do agreste paraibano. As experiências bem-sucedidas no campo da gestão dos recursos hídricos e do manejo de estoques coletivos de sementes realizadas, nesses municípios, ganharam particular visibilidade após a seca do biênio 1998-1999, ao garantirem, nessa conjuntura adversa, maior estabilidade e capacidade de resistência aos sistemas produtivos familiares.
Esse fato motivou os sindicatos da região, então associados ao espaço de articulação preexistente – o Pólo Sindical da Borborema –, a mobilizarem suas bases nas comunidades para divulgar as experiências em Agroecologia desenvolvidas pelos sindicatos de Lagoa Seca e Remígio, ambos já integrados ao Pólo.
Essa ação pró-ativa das organizações no sentido de irradiar e dar maior alcance às redes de agricultores-experimentadores recolocou na ordem do dia a idéia já em maturação de ampliar a escala dos processos sociais de inovação ao conjunto do agreste paraibano. Para tanto, a constituição de um ator regional capaz de assumir a coordenação política e metodológica desses processos se colocou como condição fundamental para que o aumento de escala fosse efetivamente assumido como um projeto das organizações da agricultura familiar da região. A aposta recaiu sobre o Pólo Sindical da Borborema como espaço político-organizativo unificador do conjunto das organizações da agricultura familiar em torno à construção de um projeto comum de desenvolvimento local e de promoção da Agroecologia.
As bases desse projeto foram estabelecidas por ocasião do I Seminário da Agricultura Familiar do Compartimento da Borborema, realizado em 2001, com a participação de representações de 14 municípios da região. Foi então tomada a decisão de que o Pólo, com a assessoria da AS-PTA, formularia e implementaria uma estratégia de promoção de desenvolvimento regional assentada em um programa de formação estruturado em dois eixos: o primeiro tendo como objeto os temas relacionados à inovação agroecológica, e o segundo com foco nas políticas públicas, orientando-se para extrair ensinamentos das experiências inovadoras em curso na região e gerar subsídios para formular e defender propostas de políticas voltadas à generalização da Agroecologia.
Ao mesmo tempo em que as redes de inovação e os intercâmbios de experiências se intensificaram nos municípios, o Pólo, em aproximações sucessivas, empenhou-se em criar capacidades próprias para a gestão do processo.
A partir da necessidade de aprimoramento de suas formas de organização interna, foi incorporada à sua estrutura a experiência exitosa das comissões temáticas, ficando cada uma responsável por conceber, executar e monitorar o avanço dos trabalhos de experimentação, sistematização e intercâmbio, segundo seus recortes específicos. Vigoram atualmente cinco comissões: recursos genéticos, recursos hídricos, saúde e alimentação, criação animal e cultivos ecológicos.
Assim como na experiência anterior, além das lideranças sindicais, as comissões contam com a participação ativa de agricultoras e agricultores-experimentadores com acúmulos nos seus respectivos temas. Prevaleceu também, na dimensão de atuação do Pólo, o princípio da descoberta dos tesouros escondidos, o que permitiu a identificação de um conjunto significativo de práticas inovadoras promovidas por famílias ou grupos comunitários de municípios ainda não inseridos em um trabalho mais estruturado de experimentação agroecológica. Muitas dessas experiências socialmente ocultas se tornaram referências para as atividades das comissões. Entre elas, o banco de sementes comunitário existente desde 1974, na comunidade São Tomé, em Alagoa Nova; a prática do semeio em Massaranduba, semelhante ao sistema tradicional do frijol tapado adotado na América Central; e os fundos rotativos solidários de cisternas, no município de Soledade.
Os temas relacionados a políticas públicas também passaram a ser tratados no âmbito das comissões. Por exemplo, a política estadual de sementes é discutida pela comissão de recursos genéticos, enquanto a gestão do programa de cisternas corresponde à comissão de recursos hídricos.
As experiências bem-sucedidas realizadas na região e monitoradas por essas comissões temáticas são analisadas e contrastadas com as propostas para o desenvolvimento da agricultura propugnadas pelos diferentes instrumentos e operadores de políticas públicas, como as de extensão rural, de crédito, de pesquisa agrícola, e os programas de distribuição de sementes, dentre outros. Com base nesse enfoque comparativo, o debate sobre modelos de desenvolvimento ganhou maior nitidez. Dessa forma, pouco a pouco, as redes de agricultores- experimentadores articuladas pelo Pólo se constituíram também como espaços de debate e ação política em defesa de um projeto próprio para o desenvolvimento do território.
Além disso, um programa de formação em políticas públicas é direcionado à coordenação do Pólo e enfoca o conjunto das ações a partir de uma perspectiva mais abrangente, integrando os debates feitos nas comissões temáticas. A coordenação do Pólo é composta majoritariamente por lideranças também inseridas nas comissões temáticas, assegurando assim permanentes vínculos entre seus membros e as redes de experimentação agroecológica que se capilarizam na região.
NOVOS DESAFIOS
A gestão do programa de desenvolvimento local numa escala territorialmente mais ampla e mais complexa do ponto de vista sociopolítico tem colocado ao Pólo a necessidade de equacionar e enfrentar diferentes e novos desafios.
Em primeiro lugar, constatou-se a necessidade de construir uma melhor compreensão sobre as principais características dos agroecossistemas da região, de forma a otimizar e a articular o planejamento e a implementação do programa no conjunto altamente diverso de situações existentes nos 16 municípios integrados ao Pólo. Essa foi a razão que justificou a realização de um diagnóstico de agroecossistemas de abrangência regional.
A primeira etapa, que compreendeu o estudo dos diferentes ambientes e suas principais implicações sobre os agroecossistemas, já forneceu importantes subsídios para as comissões temáticas planejarem suas estratégias. Entre outros aspectos, o conhecimento produzido e traduzido em mapas de molduras ambientais permitiu a visualização das homogeneidades e das heterogeneidades inter e intramunicipais. Isso significa que, em termos regionais, as comissões temáticas devem considerar as continuidades e descontinuidades geográficas no planejamento da experimentação, uma vez que um mesmo tipo de ambiente pode atravessar vários municípios. Em contrapartida, no âmbito dos municípios, os sindicatos também devem levar em conta a existência de diferentes situações socioambientais, não podendo, portanto, organizar suas estratégias para a transição agroecológica como se o município fosse um todo homogêneo.
Tendo exercitado sua estrutura funcional e suas estratégias de atuação durante três anos, o Pólo entendeu também que precisava se institucionalizar juridicamente de maneira a assumir formal e autonomamente a gestão de seus próprios projetos de financiamento. Assim, constituído como pessoa jurídica desde 2004, o Pólo conta atualmente com sede própria, serviços de secretaria e administração financeira, além de equipe técnica composta por dois profissionais. Ao mesmo tempo, projetos em parceria com organismos estatais de fomento abriram a possibilidade de sua viabilização do ponto de vista financeiro, em que pese a contrapartida de experiências burocráticas desproporcionais à capacidade administrativa instalada.
De toda forma, para além dos enormes avanços acumulados, grande investimento na criação e desenvolvimento de capacidades próprias permanecerá sendo demandado para que o Pólo mantenha as condições institucionais, políticas e administrativo-financeiras adequadas para assegurar sua vocação tanto como agente estimulador de dinâmicas sociais de inovação agroecológica, quanto como ator político capaz de promover, em articulação com as organizações da sociedade civil e nas esferas estatais, as proposições da agricultura familiar para o desenvolvimento do agreste paraibano.
Luciano Silveira
eng. agrônomo, coordenador do Programa Local da AS-PTA no agreste da Paraíba
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Roselita Victor
agricultora, integrante da direção do STR de Remígio e da Coordenação do Pólo
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Nelson Anacleto
agricultor, integrante da direção do STR de Lagoa Seca e da Coordenação do Pólo
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Referências Bibliográficas
PETERSEN, P. e SILVEIRA, L. Construção do conhecimento agroecológico em redes de agricultores-experimentadores: a experiência de assessoria ao Pólo Sindical da Borborema. In: Construção do conhecimento agroecológico: novos papéis, novas identidades. Rio de Janeiro, ANA, 2007.
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Revista V4N2 – Saindo de trás do birô: a reconstrução do movimento sindical no agreste da Paraíba