Michelle Jorge Pantaleão José Daniel de Freitas Sobrinho
Na velocidade da luz e com a força de um trator, a chamada Revolução Verde vem destruindo e lançando por terra milhares de anos de cultura camponesa, que tradicionalmente trabalha respeitando o meio ambiente e as formas de vida de cada comunidade. Com o objetivo de mudar essa conjuntura vivida pelas famílias camponesas e diante do desafio de enfrentamento do agronegócio, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) deu início ao trabalho de resgate, produção, multiplicação e distribuição de variedades crioulas, tendo como estratégia a organização dos grupos de base nas comunidades rurais.
A experiência aqui relatada se passa no estado de Goiás, onde o milho faz parte da cultura alimentar da população, sendo empregado na produção de farinha, fubá, pamonha, mingau de milho verde e bolinho. As plantas de milho são integralmente aproveitadas como forragem para a criação de gado de leite. Trata-se, portanto, de um cultivo central nas estratégias de reprodução técnica, econômica e cultural dos camponeses no estado.
Entretanto, a introdução das sementes híbridas, na década de 1980, pelos serviços de extensão e de crédito oficiais, forçou as famílias camponesas a aderirem aos pacotes tecnológicos que geram dependência econômica e cultural ao agronegócio. Muitos camponeses perderam a tradição de produzir a própria semente, obrigando-se a adquirir anualmente sementes híbridas nos mercados. Juntamente com as sementes, as famílias são levadas a comprar outros insumos industriais necessários para que as variedades comerciais produzam satisfatoriamente. A maior parte das áreas de produção camponesa no estado está cercada por latifúndios de cana, soja, algodão ou eucalipto. Como se não bastasse ocupar de forma voraz os territórios rurais, o agronegócio também contamina as pessoas e o meio ambiente com seus venenos. Há relatos de camponeses que foram contaminados no quintal de suas casas por agrotóxicos despejados por aviões nas lavouras de cana.
O INÍCIO DOS TRABALHOS
Companheiros do MPA e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Goiás participaram, em abril de 2004, da 3ª Festa Nacional das Sementes Crioulas em Anchieta, Santa Catarina. Nessa ocasião, tiveram a oportunidade de conhecer e trazer algumas variedades de milho para serem experimentadas em seu estado. Na safra 2004/2005, essas sementes foram cultivadas na cidade de Goiás, rendendo cerca de 14 mil kg de sementes que foram distribuídos para 100 famílias de outros 22 municípios do estado.
O plantio dessas sementes na safra seguinte gerou uma colheita de aproximadamente 139 mil kg de milho crioulo. Nessa safra, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) apoiou o trabalho por meio de um projeto voltado para a capacitação e o acompanhamento técnico das famílias camponesas nos temas de resgate, produção, multiplicação e distribuição de sementes crioulas. Esse projeto foi determinante para que o trabalho fosse disseminado pelo estado, com sustentabilidade e em condições adequadas, garantindo o acesso de 300 famílias às sementes crioulas.
Na safra 2006/2007, foram colhidos 140 mil kg de sementes de milho crioulo. As principais variedades de milho que vêm sendo cultivadas são o caiano, o pixurum 05, o língua de papagaio, o MPA 01 (variedade criada pelas famílias camponesas em Santa Catarina), o milho roxo e o milho branco. Em paralelo a esse trabalho com milho, iniciou-se recentemente o resgate de variedades de arroz crioulo, atividade que envolve cerca de 100 famílias. As variedades de arroz cultivadas são o arroz preto e o arroz agulhão. Atualmente, mais de 150 comunidades rurais no estado têm autonomia na produção de sementes.
A rápida irradiação do trabalho no estado contou também com a parceria realizada entre o MPA e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Por intermédio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Conab, toda a produção de sementes de milho crioulo das famílias foi comprada e doada para outras famílias que ainda não tinham acesso a essas sementes. Para os agricultores que produziram as sementes, esse mecanismo de compra pela Conab foi de grande importância, tanto pelo fato de ter proporcionado a melhoria das suas rendas quanto pelo reconhecimento oficial de suas sementes. Essa nova conjuntura vem sendo fundamental para estimular a continuidade do trabalho nas comunidades envolvidas.
O RESGATE DE VARIEDADES LOCAIS
A introdução das variedades trazidas da Feira de Anchieta (SC) foi essencial para dar início e motivar o trabalho em Goiás. No entanto, estava claro que não poderíamos limitar o universo da agrobiodiversidade manejada pelos grupos a apenas essas variedades. A estratégia seguinte foi a de dar início a ações de resgate das variedades ainda presentes nas comunidades rurais do estado. Foi por meio dessas ações que foram resgatadas algumas variedades de arroz (agulhinha, agulhão, cateto e preto) e de milho (pintado, secretário, marrocão, anã e milho pipoca). Esses materiais serão avaliados na próxima safra em ensaios de competição.
Outra estratégia importante para a consolidação desse trabalho é a organização de bancos comunitários de sementes. São neles que as famílias camponesas armazenam, trocam e adquirem sementes para o seu uso. O primeiro banco foi implantado no município de Goiás e atualmente já são 40 bancos comunitários distribuídos nos municípios por onde o trabalho vem se disseminando, cada qual associando, em média, 25 famílias. Nosso objetivo é que cada comunidade camponesa no estado possua e faça a gestão de seu próprio banco de sementes.
Além de expandirmos as ações de resgate das sementes como estratégia de promoção da soberania alimentar e de preservação da agrobiodiversidade, temos a perspectiva de darmos início a ações de melhoramento participativo dessas variedades.
ALGUNS RESULTADOS ALCANÇADOS
Com base em suas vivências nesse trabalho, os camponeses afirmam categoricamente a superioridade das variedades crioulas em relação às híbridas. Em primeiro lugar, porque rendem mais na hora de fazer o fubá e a pamonha, além de serem mais saborosas. A cultura da pamonhada vem sendo resgatada em algumas comunidades envolvidas. Até o momento já foram feitas mais de 4 mil pamonhas em nossos encontros. Os camponeses chegam de manhã na casa em que ocorrerá o encontro, quebram o milho e fazem a pamonha. Esses são momentos ricos nos quais se conversa sobre as tradições culturais que estão se perdendo e sobre a importância da alimentação saborosa e de qualidade feita em casa.
Outro indicador da superioridade das variedades crioulas sobre as comerciais é a produtividade, seja em termos de grãos, seja no que se refere ao volume da palhada para a alimentação do gado de leite. Segundo avaliação do senhor Custódio José do Nascimento, do município de Catalão (GO), o cultivo de sua área com variedades crioulas rende 30% a mais de silagem e 35% a mais de grãos do que quando cultivava a mesma área com sementes híbridas. Esse tipo de avaliação é recorrente entre os camponeses envolvidos no processo.
Outras iniciativas vêm sendo desenvolvidas com o objetivo de recuperar a rica cultura local de cultivo e uso do milho, entre elas, o artesanato (bonecas e flores) com a palhada de milho, atividade praticada sobretudo pelas mulheres.
As vantagens das variedades crioulas também são notadas no cultivo do arroz. Além de serem mais rústicas e melhor adaptadas ao clima local, possuem melhores propriedades no uso culinário.
A I Festa das Sementes Crioulas de Goiás, realizada em agosto de 2007, na cidade de Goiás, com a presença de 600 camponeses, foi um momento organizado para reforçar esse trabalho – ao articular os grupos envolvidos e debater os resultados que vêm sendo alcançados –, bem como para estimular outras comunidades a se integrarem.
A recuperação das sementes crioulas vem trazendo a idéia de resgatar a cultura camponesa que valoriza a alimentação saudável, a roça, as pamonhadas e os monjolos. E é esse o sentido do lema que orienta as ações da Via Campesina: Sementes patrimônio dos povos a ser- viço da Humanidade.
Michelle Jorge Pantaleão
engenheira agrônoma do MPA
[email protected]
José Daniel de Freitas Sobrinho
técnico em Agropecuária do MPA
[email protected]
Referência Bibliográfica
CARVALHO, Horácio M. Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. Expressão Popular, 2003. 352 p.
Baixe o artigo completo:
Revista V4N3 – Sementes da vida: camponeses resgatando as sementes crioulas em Goiás