Erika Styger
Desde 2000, quando os primeiros resultados de sucesso do Sistema de Intensificação do Arroz (SIA) fora de Madagascar foram registrados na Indonésia, na Índia e na China, podemos distinguir dois grandes períodos para o sistema. O primeiro período, conhecido como SIA 1.0, durou aproximadamente entre 2000 e 2008. Mas o segundo está demonstrado ser ainda mais interessante.
Extensionistas curiosos, pesquisadores e agricultores que souberam sobre a experiência do SAI decidiram verificar se esse método implementado em Madagascar teria resultados semelhantes em seus próprios ambientes. As comparações foram feitas principalmente nos campos dos agricultores e em alguns lotes de pesquisa, onde as práticas dos agricultores ou as melhores práticas de manejo dos pesquisadores foram comparadas com as práticas do SIA, conforme descrito nos materiais de extensão vindos de Madagascar. As práticas incluíam viveiros com canteiros elevados, o transplante de mudas jovens individualmente e plantio com grande espaçamento, a aplicação de matéria orgânica ao solo, a alternância do umedecimento e da secagem dos campos de cultivo e a capina mecanizada para incorporar as ervas daninhas e arejar o solo.
SIA 1.0: CURIOSIDADE, DESCOBERTA E CONTROVÉRSIAS
Com base nas suas primeiras experiências de campo, agricultores e técnicos de diferentes países começaram a adaptar as práticas de SIA a seus próprios climas e condições de cultivo de arroz: variando de climas úmidos a áridos, situados a nível do mar ou até em grandes altitudes e implementados em sistemas irrigados, de planície ou de terras altas.
Em muitos países, excelentes resultados foram documentados em relatórios de pesquisa e de campo, bem como em alguns artigos científicos. Isso levou a um período de controvérsias, quando um grupo limitado de cientistas de algumas universidades dos Estados Unidos e do Instituto Internacional de Pesquisa do Arroz (Irri, na sigla em inglês) questionou a veracidade dos rendimentos e benefícios divulgados e atribuídos ao SIA. Até que esses resultados fossem validados em revistas e jornais científicos, o sistema SIA não seria levado a sério.
Nesse período inicial, era correto e compreensível alegar a falta de artigos científicos reconhecidos por outros pesquisadores. Afinal, a pesquisa mais formal sobre o SIA tinha acabado de começar. Experimentos agrícolas formais normalmente levam de três a cinco anos desde sua concepção até terem seus resultados publicados em algum periódico de renome, enquanto relatórios técnicos podem ser disponibilizados assim que os testes de campo são encerrados. O número de artigos científicos referendados aumentou de forma constante a cada ano. Antes de 2002, menos de dez artigos sobre SIA foram publicados por ano. Esse número aumentou para 15-30 artigos por ano durante o período 2003-2008 e atingiu mais de 60 artigos por ano em 2011-2012. No início de 2013, contamos com um total de mais de 350 artigos científicos sobre o SIA publicados em revistas consagradas.
Apesar do número muito maior de artigos científicos produzidos e devidamente reconhecidos, alguns observa- dores, especialmente do meio científico, aferraram-se a suas objeções iniciais, parecendo ignorar a pesquisa e os resultados publicados na última década. De qualquer forma, essa controvérsia intelectual tem sido de pouco interesse para os agricultores, que continuaram a adotar o método em mais países, com o apoio de profissionais e cientistas pragmáticos.
SIA 2.0: DISSEMINAÇÃO E INOVAÇÃO SUPERAM A PESQUISA FORMAL
Em 2008, o método do SIA foi validado em 38 países, com base em sólidos trabalhos de campo e pesquisa. Resultados positivos foram obtidos em diferentes sistemas de cultivo de arroz, independente da variedade utilizada e em diferentes ambientes. No início de 2013, o sistema foi validado em 51 países. Relatórios citam consistente- mente o aumento da produtividade, a diminuição do uso de sementes, água e agroquímicos, assim como apontaram aumento da renda.
Embora as práticas variem de acordo com a especificidade dos sistemas de cultivo de arroz, os princípios fundamentais do SIA são os mesmos: (i) o estabelecimento precoce e rápido de plantas saudáveis ; (ii) a manutenção de baixa densidade de plantas para permitir o melhor desenvolvimento individual de cada planta; (iii) o enriquecimento dos solos com matéria orgânica para aumentar a oferta de nutrientes e a retenção de água, bem como para incrementar a vida microbiana no solo e obter um bom substrato para as raízes se desenvolverem; e (iv) reduzir e controlar a aplicação de água, fornecendo apenas a quantidade necessária para o desenvolvimento da planta e buscando favorecer as condições aeróbicas do solo.
Outro aspecto a ser destacado nessa disseminação do sistema é o fato de que os agricultores com menos recursos e que dependem integralmente da agricultura e da produção de arroz para alimentar suas famílias, são os mais avançados na compreensão do potencial do SIA. O incremento da produtividade agrícola com base em recursos e conhecimentos próprios tem empoderado agricultores e mudado sua perspectiva sobre o potencial da agricultura como meio de vida. Em contraste com o paradigma convencional de intensificação agrícola (mais insumos para produzir mais), os agricultores podem agora produzir mais com menos, condição que automaticamente se traduz em forte impulso para a inovação. Os agricultores começaram a experimentar em seus campos com uma mente aberta e arejada, sabendo que práticas simples de manejo podem fazer toda a diferença.
Desde 2005, técnicos e agricultores da Índia, do Mali, da Etiópia, do Nepal, do Paquistão, do Afeganistão e de Cuba, inspirados por suas experiências de sucesso com o SIA, deram início à experimentação dos mesmos princípios de manejo em outras culturas. De forma independente um do outro, verificaram aumentos nos rendimentos, plantas mais sadias e melhor qualidade dos produtos em culturas como milheto, trigo, cana-de-açúcar, mostarda, legumes e verduras. A aplicação dos princípios do SIA em outras culturas passou a ser conhecido como Sistema de Intensificação de Culturas (SIC).
Podemos observar que a trajetória do SIC apresenta tendência semelhante à do SIA. No início de 2013, ainda não havia sido publicado nenhum artigo científico reconhecido sobre o SIC, embora já existissem relatórios de campo dispo- níveis. A coleção mais completa de artigos e relatórios pode ser encontrada no site da Universidade de Cornell sobre o SIA, no link Other Crops (outras culturas, em português). Um exemplo de produção de trigo na Índia ilustra bem isso. Conhecemos experiências com o Sistema de Intensificação do Trigo (ou SWI, na sigla em inglês) conduzidas pelo Instituto Indiano de Pesquisa Agrícola (Iari), em Nova Déli, e pelo Conselho Indiano de Pesquisa Agrícola (Icar), em Patna, mas nenhum artigo foi publicado até o momento. Por outro lado, entre 2011 e 2012, mais de 183 mil hectares foram plantados com SWI no estado de Bihar, alcançando um rendimento médio de 4,5 t/ha, muito superior à média de 2,4 t/ha para essa temporada.
Pelo fato de a inovação partir do agricultor, o SIA e o SIC subvertem a lógica do sistema de pesquisa convencional, uma vez que contrariam o modelo ainda dominante no qual as inovações são desenvolvidas em estações de pesquisa e transferidas para os agricultores. Com o SIA e o SIC, os cientistas agrícolas precisam ir a campo para aprender com os agricultores sobre as inovações. Infelizmente, isso não está acontecendo com frequência. Por isso, a maioria dos pesquisadores, profissionais de desenvolvimento, formuladores de políticas e doadores continuam desconhecendo como são as inovações conduzidas pelos agricultores. Por isso, têm sido incapazes de apoiar inovações promissoras para a promoção da segurança alimentar e nutricional.
Coloca-se então as questões: como aprender com esses agricultores inovadores? Quem acompanha o que eles fazem e como isso é documentado? A imprensa muitas vezes é a primeira a divulgar os resultados dos agricultores, como podemos verificar em muitos artigos de jornais na Índia. Ainda assim, para muitas ONGs de base, não tem sido prioridade elaborar relatórios sobre os resultados dos agricultores que adotam o SIA e o SIC. Elas tendem a se concentrar em produzir indicadores de monitoramento e outros dados requisitados pelas instituições financiadoras e, se houver tempo, preferem dedicar-se ao trabalho em campo a escrever relatórios adicionais.
A prioridade para a pesquisa deveria ser, portanto, desenvolver e implementar metodologias de monitoramento dos esforços dos agricultores que ajudem a aperfeiçoar suas práticas e inovações no SIA. Isso pode ser feito (i) por meio de uma abordagem de pesquisa-ação; (ii) pela concepção de experimentos naturais ou estudos observacionais, em que os tratamentos não se sobrepõem, mas os dados são coletados diretamente nos campos dos agricultores em uma amostra grande o suficiente para permitir o acompanhamento das práticas agrícolas específicas dos agricultores; e (iii) por meio da formação de agricultores e extensionistas na coleta e análise de dados, permitindo-lhes participar ativamente de pesquisas e compartilhar diretamente seus resultados.
A EVOLUÇÃO DA PESQUISA EXPERIMENTAL SOBRE O SIA
Inicialmente, as pesquisas eram focadas em testes que comparavam as práticas do SIA com as práticas de manejo conduzidas por agricultores ou com as melhores práticas elaboradas por pesquisadores. Recentemente, porém, temos observado mais pesquisas voltadas para a compreensão dos fatores que contribuem para um melhor desempenho agronômico, tais como estudos das raízes, da fisiologia vegetal e da influência de microrganismos sobre o rendimento das plantas. Sabemos, no entanto, que muito mais pesquisas são necessárias para entender melhor o que faz o SIA funcionar.
Até hoje, a maioria das pesquisas sobre o SIA tem sido feita por programas financiados em escala nacional, especialmente na Índia, na China, na Tailândia, no Japão e na Indonésia. As organizações internacionais de pesquisa, incluindo as do sistema do Grupo Consultivo de Pesquisa Agrícola Inter- nacional (CGIAR, sigla em inglês), fizeram muito pouco.
O fato de as instituições em diversos países realizarem pesquisas in- dependentes com o sistema é mais um ponto positivo. Entretanto, o cenário não é tão favorável porque os membros dessa comunidade de pesquisadores tendem a trabalhar em relativo isolamento, já que não é fácil para eles trabalhar em regime de colaboração. Dessa forma, valiosas oportunidades de sinergia são perdidas. Para fazer frente a essas limitações, o Centro Internacional de Redes e Recursos SIA (SRI-Rice, em inglês) está desenvolvendo uma rede internacional de pesquisa sobre o sistema, na qual os pesquisadores podem se conectar e colaborar facilmente uns com os outros por meio de uma plataforma de internet de livre acesso.
INTEGRAÇÃO DE ABORDAGENS AGROECOLÓGICAS
Repensar a maneira de produzir culturas agrícolas é mais urgente do que nunca, dada a fragilidade da base finita de recursos naturais e as ameaças impostas pelas mudanças climáticas. O (novo) paradigma da Revolução Verde, produzir mais com mais insumos, não é mais uma opção.
Abordagens ecológicas voltadas para a intensificação agrícola sustentável ainda oferecem um grande potencial de desenvolvimento. As evidências acumuladas comprovando que os princípios fundamentais do SIA melhoram a produtividade não só do arroz, mas também de outras culturas, contribuem para a ampla disseminação da metodologia.
Há ainda uma tremenda oportunidade de integrar mais o método do SIA com outras abordagens ecológicas, tais como a agricultura de conservação, o manejo integrado de pragas e os sistemas agroflorestais, apenas para citar alguns. Cada uma dessas abordagens concentra-se em um componente diferente dentro do sistema agrícola. Essa integração ajudará a criar sistemas diversificados, saudáveis e produtivos, com maiores capacidades de resistência às variações no clima.
Erika Styger
diretora de Programas, Centro Internacional de Redes e Recursos SRI (SRI-Rice), Universidade de Cornell, Ithaca, Nova York.
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Revista V10N1 – SIA 2.0: avanços e lições