Janneke Bruil entrevista Irene Cardoso
Se você tem um solo vivo, saudável, você tem plantas e pessoas saudáveis. Essas três coisas estão intimamente ligadas. Irene Cardoso, professora de Ciências do Solo da Universidade Federal de Viçosa (UFV), é apaixonada por solos e agricultura familiar. Como atual presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia), ela defende um maior apoio para que os agricultores familiares possam cuidar melhor de seus solos.
QUAL O VÍNCULO ENTRE AGRICULTORES FAMILIARES E OS SOLOS?
Isso depende do tipo de agricultura que você está enfocando. Na agricultura industrial, o solo é considerado pouco mais do que um mero substrato ao qual fertilizantes e sementes são adicionados. Nesse tipo de agricultura, que requer insumos caros e cria um ambiente insalubre, os agricultores familiares podem perder tudo.
No entanto, na agricultura sustentável ou na Agroecologia, o solo é muito importante. Boa qualidade do solo dá autonomia aos agricultores, além de resiliência e produtividade no longo prazo. É por isso que o solo saudável é importante para os agricultores familiares. Mas as famílias agricultoras também são importantes para os solos, porque a formação e a manutenção de solos saudáveis exigem dedicação e trabalho – exatamente o que os agricultores familiares fazem.
Muitos agricultores de todo o mundo dizem a terra tem que funcionar; e eles sabem que têm de fazê-la funcionar. Como eles trabalham com a natureza o tempo todo, eles veem a diferença entre um solo vivo e um solo degradado. Eles percebem que uma planta que cresce em um solo saudável não precisa de fertilizante. Mas muito poucos deles usam a palavra solo, eles costumam falar apenas sobre terra. Por quê? Solo é uma palavra mais científica. Já o termo terra implica uma abordagem mais integrada, atrelada a debates políticos e sociais em torno de questões como acesso, propriedade e controle. Por exemplo, os agricultores não clamam por uma reforma do solo, eles lutam por uma reforma agrária.
Os agricultores familiares vivem do solo, mas também vivem no solo. Seus filhos herdarão o solo com a qualidade que eles deixarem. O solo é quase parte da família. E você pode ouvir agricultores em todo o mundo dizendo que a terra é nossa mãe. Outro aspecto importante sobre a agricultura familiar é o papel desempenhado pelas mulheres. As agricultoras familiares tendem a ter uma conexão mais forte com a terra, assim como são mais conscientes sobre a importância da soberania e segurança alimentar do que os homens.
VOCÊ PODE DAR UM BOM EXEMPLO DE COMO OS AGRICULTORES MELHORARAM SEU SOLO?
Em 1993, eu e outras pessoas da Universidade Federal de Viçosa (UFV) trabalhamos com o Centro de Tecnologias Alternativas (CTA), uma ONG que atua na promoção da Agroecologia na Zona da Mata de Minas Gerais, em contato com o sindicato dos produtores de café na cidade vizinha de Araponga. Usando métodos de diagnóstico rural participativo, identificamos os principais problemas e necessidades. Os agricultores foram claros ao apontar que o seu maior problema estava ligado aos solos pobres: A terra é fraca, disseram. A equipe técnica já sabia disso, mas o importante foi que os agricultores também reconheceram isso explicitamente.
Montamos um comitê chamado Terra Forte, e os agricultores apresentaram algumas soluções muito eficazes para aumentar a matéria orgânica do solo, incluindo a adubação verde e a prática de cortar, em vez de arrancar, as plantas espontâneas. A equipe técnica propôs a implantação de sistemas agroflorestais (que consistem no plantio de árvores dentro e ao redor dos campos de cultivo). E funcionou. O solo, uma vez recuperado, tornou- se vivo novamente, e as práticas estão se disseminando.
Contribuiu para o sucesso da iniciativa o uso de métodos participativos, que permitiram a discussão dos problemas e o planejamento das ações em conjunto com os agricultores. O que também ajudou foi trabalhar com as ideias vindas das próprias famílias agricultoras. A única nova prática que propusemos foi a dos sistemas agroflorestais, o resto os agricultores já sabiam, ou pelo menos alguns deles se lembravam de como o trabalho era realizado no passado.
O QUE TORNA ESSA HISTÓRIA TÃO RELEVANTE?
Os serviços de extensão e universidades costumam dizer aos agricultores para adotar as novas técnicas modernas. O que vemos em nossa região, porém, é que os agricultores que querem seguir outro caminho podem fazê-lo se tiverem a oportunidade. Percebemos que a participação é importante: os agricultores mais experientes compartilham seus conhecimentos com os outros e tomam decisões em conjunto. Esse foi o aspecto significativo no contexto dessa experiência. Os agricultores queriam usar melhores práticas agrícolas para recuperar sua terra envenenada após décadas de aplicação de fertilizantes e agrotóxicos. O uso de insumos químicos fazia parte dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde, que foram disseminados no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1984. O governo apoiou a adoção dessas tecnologias com a criação de políticas, mudando currículos universitários da área agrícola e por meio da reorganização dos serviços de extensão. Como consequência, a pesquisa universitária e os programas de extensão baseados em pesquisa promoveram o uso de agrotóxicos, fertilizantes, motomecanização, irrigação, sementes híbridas e, mais recentemente organismos geneticamente modificados (OGMs). Tudo isso serviu de apoio à produção em monoculturas, que também recebeu incentivos dos bancos que ofereceram aos agricultores crédito a juros baixos para investir nessas tecnologias.
HOUVE MOVIMENTOS DE REAÇÃO AOS PACOTES DA REVOLUÇÃO VERDE?
Com a Revolução Verde, a produção aumentou em alguns lugares, mas não em outros. E a taxa de crescimento também diminuiu, à medida que o solo tornou-se degradado. Nossos agrônomos disseram: Se você trocar a produção de culturas alimentares pela monocultura de café, você vai ganhar mais dinheiro para comprar a sua comida. Mas o que aconteceu é que os agricultores se endividaram e faliram. A produção de apenas uma cultura torna os agricultores totalmente dependentes dos mercados internacionais de commodities. Os agricultores que optaram por mudar não podiam mais comprar alimentos quando o preço do café caiu, e eles deixaram de ser produtores de sua própria comida. Os agricultores familiares não podiam pagar as suas dívidas, e muitos abandonaram suas propriedades e foram para as cidades. E houve outras consequências: a terra se tornou envenenada, os solos morreram e a qualidade dos alimentos e da água se deteriorou.
Então, essas abordagens da Revolução Verde acabaram sendo contrárias à segurança e soberania alimentar. Alguns agricultores, no entanto, resistiram e continuaram a cultivar à sua maneira – pelo menos em parte de suas terras. Isso se tornou uma forma de resistência cultural, porque envolvia o modo de vida das pessoas e expressava o res- peito pelos esforços e investimentos de seus pais e avós. Esses agricultores mantiveram vivo o conhecimento tradicional sobre a saúde do solo, e isso depois alimentou uma nova forma de pensar. Com a redemocratização do Brasil, buscamos as melhores práticas e nos voltamos a esses agricultores, junto com os sindicatos, as organizações de base ligadas a igrejas e outros grupos, e vimos o início do movi- mento de Agroecologia no Brasil.
A POLÍTICA NACIONAL DE AGROECOLOGIA E PRODUÇÃO ORGÂNICA NO BRASIL ENFOCA A PROBLEMÁTICA DOS SOLOS?
Nosso Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), lançado em 2012, apoia a agricultura familiar e a biodiversidade. Mas a ligação com os solos é apenas indireta, o que, na minha opinião, é um erro.
Estamos agora discutindo o segundo Planapo, e é bom que isso esteja acontecendo no Ano Internacional dos Solos, uma vez que o papel dos solos na Agroecologia deve ser destacado, com referência explícita às medidas necessárias para obtermos solos de boa qualidade. Dessa forma, o Planapo pode sensibilizar e apoiar as melhores práticas. Por exemplo, nós não precisamos de máquinas pesadas que danificam a estrutura do solo, mas máquinas mais leves. O II Planapo poderia apoiar o desenvolvimento desse tipo de tecnologia, bem como lançar um programa de crédito para a conservação do solo.
COMO O SISTEMA ALIMENTAR GLOBAL IMPACTA OS SOLOS EM TODO O MUNDO?
Há muitas políticas e práticas pelo mundo afora que influenciam os solos, tanto positiva quanto negativamente. No Brasil, os solos são vermelhos e amarelos pelo óxido de ferro que contêm. Como o óxido de ferro retém o fósforo, sobra menos desse elemento nutritivo para as plantas. Então acabamos tendo que importar milhares de toneladas de fósforo da África, por exemplo, que é adicionado aos nossos solos de cerrado para a produção de grãos de soja. A soja é então exportada para a Europa para a alimentação animal. Mas os solos europeus não contêm altos níveis de óxido de ferro, de modo que o excesso de fósforo que originalmente importamos da África é lixiviado e acaba poluindo a água e os solos europeus. Esse é um exemplo singelo de como o ciclo de nutrientes não é fechado no sistema alimentar global, gerando impactos severos sobre os solos em todo o mundo.
Em outro exemplo perverso, o Brasil importa 92% do potássio utilizado na sua agricultura, inclusive para a produção de café. Mas a casca do grão de café contém uma grande quantidade de potássio e, portanto, poderia ser um ótimo fertilizante ecológico se devolvida ao solo. O que estava acontecendo nos últimos anos foi que empresas estrangeiras estavam comprando cascas de café para produzir energia limpa na Europa. O argumento era que os agricultores brasileiros estavam poluindo o meio ambiente ao empilharem e deixarem apodrecer as cascas. Isso é verdade, mas haveria outra solução: processar o café local- mente e deixar as cascas sobre a terra, para que as cascas do café brasileiro fertilizassem os solos brasileiros.
COMO PODEMOS MUDAR O QUADRO DE DESEQUILÍBRIOS DE PODER ENTRE OS AGRICULTORES E AS GRANDES EMPRESAS?
Em nome da produtividade, os formuladores de políticas estão protegendo os setores que mais produzem. Existem algumas poucas possibilidades de questionar esse quadro. Isso mudará, mas apenas com o tempo. As empresas privadas não são mais importantes do que os cidadãos. Temos que começar um novo ciclo de desenvolvimento, baseado no aprofundamento da democracia e da participação, que olhe para além das eleições a cada quatro anos. É um processo longo, mas não há outro caminho. E nós já estamos vendo algumas mudanças, no empoderamento de agricultores, na abertura de algumas empresas ao diálogo e na presença de indivíduos progressistas dentro de algumas empresas.
QUAL É A SUA MENSAGEM PARA O ANO INTERNACIONAL DOS SOLOS?
Todo mundo quer ver solos saudáveis, mas poucos querem falar sobre o que degrada o solo em primeiro lugar. E nós temos que fazê-lo, a fim de mudar as coisas. A verdadeira causa do problema é a forma como temos tratado o solo, como um mero recipiente para adicionar fertilizantes, agrotóxicos e sementes de organismos geneticamente modificados.
Devemos entender que o solo tem de ser mantido vivo, ao passo que os agrotóxicos matam a vida do solo. Quando você pensa sobre isso, a vida do solo precisa do mesmo que um ser humano: uma casa (uma boa estrutura do solo, para que os organismos possam viver lá), um ambiente limpo (sem produtos químicos), água (mas não muita), ar e alimentos. Para obter essas condições, os agricultores têm que trabalhar com a biodiversidade, não há outro caminho. E um solo saudável tem muita vida, cada organismo fazendo seu próprio trabalho. Alguns deles fixam nitrogênio, outros se decompõem no solo, alguns o aeram, e assim por diante. Portanto, temos de cuidar de nossas redes, acima do solo e abaixo do solo.
Por exemplo, eu chamo as micorrizas, que são fungos do solo, de Facebook do solo. Elas detêm as informações sobre o solo e estão constantemente envolvidas em trocas com as raízes das plantas. Precisamos dar apoio a essas redes e usar matéria orgânica, sem veneno, e fazer pouca ou nenhuma aração. O preparo excessivo do solo e o emprego de maquinário pesado destroem a estrutura do solo, destroem a casa dos organismos do solo. E, mesmo se fertilizantes químicos são utilizados, a matéria orgânica é necessária. Mas com boa qualidade do solo e matéria orgânica suficiente, você pode diminuir ou abolir o uso de fertilizantes químicos. Se alimentarmos o solo, podemos alimentar o mundo.
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Revista V12N1 – Solos saudáveis geram autonomia, resiliência e produtividade no longo prazo