Edivânia Maria G. Duarte, Irene Maria Cardoso e Claudenir Fávero
Há 14 anos, agricultores familiares da Zona da Mata de Minas Gerais vêm aprofundando seus conhecimentos sobre a gestão técnica dos seus sistemas de produção, dando ênfase ao manejo sadio dos solos. Seus cafezais, que são sua principal fonte de renda, são manejados com base em princípios agro-florestais, o que tem permitido a diversificação produtiva das propriedades, bem como o aumento da quantidade e da qualidade dos produtos colhidos. Além disso, as árvores incorporadas e manejadas nos sistemas produtivos têm prestado serviços ambientais essenciais, entre os quais a melhoria da saúde dos solos.
UM POUCO DE NOSSA HISTÓRIA
Para compreender melhor os problemas e as potencialidades da agricultura familiar do município de Araponga (MG), o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), professores e estudantes do Departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa (DPS/UFV) e o Sindicato de Trabalhadores Rurais do município (STR) realizaram, em 1993, o diagnóstico Rural Participativo.
O enfraquecimento dos solos foi identificado no diagnóstico como um dos principais problemas dos sistemas produtivos e, para que fosse melhor compreendido e enfrentado, foi criada a Comissão Terra Forte, com- posta por agricultores, pesquisadores e assessores técnicos (Cardoso et al., 2001).
Várias propostas técnicas já praticadas na região por alguns agricultores foram apontadas como alternativas para enfrentar o problema, dentre elas, o uso de cordões de contorno, curvas de nível e o manejo de leguminosas e/ou de plantas espontâneas como cobertura do solo. Os sistemas agroflorestais (SAFs), até então pouco conhecidos pelos agricultores, foram também sugeridos como prática a ser experimentada.
Nos anos subseqüentes, verificou-se um intenso processo de implantação e experimentação dos SAFs nas comunidades da região. Até 1997 foram implantadas 39 experiências, distribuídas em 25 comunidades de 11 municípios, sendo 37 delas em cafezais e duas em áreas de pastagens. A condução e o monitoramento das experiências ocorreram de forma participativa, criando as condições para que um aprendizado coletivo fosse construído pelo grupo de agricultores-experimentadores, técnicos e pesquisadores.
Entre 2004 e 2005, as organizações promotoras dessas experiências tomaram a iniciativa de sistematizá-las com o objetivo de reunir e analisar criticamente o conhecimento acumulado ao longo dos 10 anos de experimentação, em particular ao identificar as especificidades locais que influenciaram o manejo dos SAFs. Uma das conclusões dessa sistematização foi a necessidade de aprofundamento dos conhecimentos associa- dos aos processos ecológicos gerados com a introdução de diferentes espécies arbóreas, em especial a ciclagem e disponibilização de nutrientes em quantidades e momentos adequados para a cultura do café. Os agricultores-experimentadores manifestaram grande interesse em participar intensamente das pesquisas que foram desde então conduzidas em suas propriedades (Souza, 2006).
Procurando atender ao interesse dos agricultores e aproveitando a rica reflexão coletiva propiciada pela sistematização, encontros passaram a ser realizados para, em conjunto, planejar as pesquisas, coletar materiais nas propriedades para análise, apresentar os princípios dos métodos analíticos adotados, inclusive as análises laboratoriais, e discutir sobre os principais resultados encontrados. Reuniões mensais entre técnicos, pesquisadores e estudantes envolvidos são realizadas com o objetivo de aprofundar e aprimorar conteúdos e metodologias de forma a assegurar que os trabalhos sejam conduzidos em coerência com as demandas dos agricultores, das instituições parcerias e com a disponibilidade de recursos.
A seguir, são apresentados alguns resultados de pesquisas desenvolvidas com o intuito de responder às questões apontadas pelos(as) agricultores(as) durante a sistematização.
SAÚDE DOS SOLOS
Para os agricultores-experimentadores de SAFs, o manejo sadio do solo não se orienta pelo aporte de nutrientes em formas solúveis, de fácil e imediata absorção pelas raízes das plantas. Um solo sadio significa muitas coisas ao mesmo tempo: é a garantia de bom funcionamento do ecossistema com a manutenção da produtividade das culturas, da qualidade da água, da saúde de plantas e dos animais. Para isso, é necessário que os solos sejam manejados de forma a melhorar simultaneamente suas propriedades físicas, químicas e biológicas. A sistematização apontou que os SAFs contribuíram para melhorar a saúde dos solos, mas de que maneira e em que medida?
Matéria orgânica do solo e ciclagem de nutrientes
Os SAFs propiciam aporte de material orgânico ao solo de forma continuada e diversificada. Esse material orgânico, juntamente com a cobertura vegetal, exerce importante papel na proteção dos solos contra a erosão, na infiltração de água e na reposição dos nutrientes imobilizados na biomassa das plantas.
Para que os nutrientes contidos no material orgânico sejam liberados para as plantas cultivadas é necessário que ele seja decomposto. A decomposição é um processo biológico dependente de vários fatores ambientais que interferem na composição e na atividade da comunidade de organismos decompositores, dentre os quais se destacam as condições do solo (temperatura, umidade, pH, arejamento, disponibilidade de nutrientes, especialmente de nitrogênio) e a qualidade e quantidade do material orgânico a ser decomposto.
Diferentes espécies arbóreas produzem biomassa com distintas características químicas, exercendo, portanto, funções diversas no agroecossitema. Resíduos (folhas, galhos, frutos, flores) provenientes de algumas espécies se decompõem rapidamente, pois possuem menores teores de compostos recalcitrantes (lignina e polifenóis), que são de lenta decomposição pelos microrganismos. A decomposição mais rápida dos resíduos promove uma liberação igualmente rápida de nutrientes para as plantas. Já com a decomposição lenta, os resíduos ficam mais tempo sobre o solo, protegendo-os da ação direta das chuvas e do sol. O ideal então é ter uma mistura de tipos de resíduos, o que é garantido quando se tem um sistema biodiversificado.
Um estudo sobre o assunto procurou identificar como algumas espécies árboreas encontradas nos SAFs contribuíram no aporte de material orgânico e de nutrientes ao sistema. Espécies que se decompõem rápido, como o fedegoso (Senna macranthera), são mais eficientes em relação à ciclagem de nutrientes. Já o açoitacavalo (Luehea grandiflora), o ingá (Inga subnuda) e o abacate (Persea americana ) fornecem biomassa de decomposição mais lenta. Em um SAF misto em que se introduzam 100 árvores dessas espécies na mesma proporção, teríamos o aporte de nutrientes da ordem de 65 kg/ ha de nitrogênio (N), 3,3 kg/ha de fósforo (P), 23 kg/ha de potássio (K), 38 kg/ha de cálcio (Ca) e 5 kg/ha de magnésio (Mg), além de outros nutrientes importantes para as plantas (Duarte, 2007). Para efeito de comparação, seriam necessários cinco sacos de 60 quilos da fórmula 20-5-20 (NPK) para suprir a mesma quantidade de nitrogênio aportada pelas árvores, bem como um saco e meio para atingir a mesma quantidade de potássio e quase dois sacos para equivaler o fósforo obtido pela decomposição de matéria orgânica das árvores.
Estrutura dos solos nos SAFs
A proteção e o aporte contínuo de material orgânico promovidos pelos SAFs melhoram as características físicas dos solos. Um dos estudos realizados procurou avaliar essa questão ao comparar a estrutura física do solo sob SAFs com a de solos sob café cultivado a pleno sol (em monocultura) e sob matas secundárias. Os resultados demonstraram que os solos das áreas com SAFs eram mais porosos e mais macios do que os solos a pleno sol, características essas que se refletiram também na maior capacidade de retenção da umidade nas camadas superficiais, onde as raízes do café absorvem mais água e os organismos do solo estão mais presentes. Essa melhoria da umidade no solo dos SAFs se manifestou inclusive no período seco, aspecto fundamental para a redução do estresse hídrico das plantas cultivadas e para os organismos do solo (Aguiar, 2008).
Interações planta-microrganismos
O material orgânico produzido pelos SAFs cria um ambiente adequado para a preservação dos organismos do solo e para o desenvolvimento de raízes em diferentes profundidades. Dessa forma, são estimuladas as interações entre organismos benéficos, como, por exemplo, a associação entre os fungos micorrízicos e as raízes. Dentre os efeitos benéficos das micorrizas, o mais conhecido é o aumento do volume de solo explorado pelas plantas na absorção de nutrientes, em especial o fósforo. A quantidade de esporos de micorriza encontrada até os 10 primeiros centímetros do solo foi maior nos cafezais agroflorestais do que nos cafezais cultivados a pleno sol (Cardoso et al., 2003). Esse dado foi atribuído ao maior número de raízes encontradas nos SAFs e indica um maior aproveitamento dos nutrientes em profundidade.
Mais biodiversidade, mais serviços ambientais
A manutenção de vegetação diversificada nos SAFs com espécies arbóreas, arbustivas e herbáceas contribui para a recomposição da Mata Atlântica, inclusive para a proteção de espécies sob risco de extinção, como, por exemplo, o jacarandá caviúna (Dalbergia nigra). Em sete SAFs foram identificadas 61 espécies leguminosas arbóreas e arbustos, enquanto que em dois fragmentos florestais avaliados foram identificadas 67 espécies, sendo que 54 delas estavam presentes tanto nas áreas manejadas como nas áreas naturais (Fernandes, 2007). Dentre as leguminosas encontradas, muitas se associam com bactérias fixadoras do nitrogênio atmosférico, sendo por essa razão importantes na incorporação desse nutriente aos agroecossistemas.
A biodiversidade planejada (por exemplo, por meio do plantio de árvores) produz bens, como frutas e madeira, mas também estimula a biodiversidade associada (por exemplo, maior presença de abelhas), que é responsável por vários serviços ambientais, como polinização, melhoria da qualidade do solo e controle de insetos indesejáveis. Ela regula processos-chave no funciona- mento dos agroecossistemas, tais como a decomposição da matéria orgânica, o controle natural de insetos-praga e patógenos e a ciclagem de nutrientes, contribuindo em grande parte para a resiliência (capacidade de suportar estresses ambientais) do sistema. Um exemplo de serviço ambiental em sistemas agroflorestais em Araponga foi o efeito positivo da ação das 9 espécies polinizadoras identificadas, aumentando em 5% a produtividade dos cafezais (Ferreira, 2008).
Avaliando a sustentabilidade
As mudanças promovidas pela introdução dos SAFs podem ser avaliadas com base em indicadores de sustentabilidade dos agroecossistemas. Juntamente com os(as) agricultores(as) participantes do Programa de Formação de Agricultores em Sistemas Agroecológicos, conduzido pelo CTA-ZM, foi desenvolvida uma metodologia para a construção coletiva desses indicadores. Para tanto, foi encaminhado um processo em quatro etapas. Inicialmente, foram propostos indicadores e estabelecidos os referenciais para a comparação. Em seguida, foram se- lecionados os indicadores e definidas as técnicas de observação/medição e, a partir disso, foi realizada a coleta de dados. Por último, os dados foram avaliados. Todas essas etapas foram realizadas por meio de atividades envolvendo de forma ativa as famílias agricultoras, utilizando metodologias participativas, como entrevistas semi-estruturadas, a confecção de mapas, caminhadas pelas propriedades, reuniões comunitárias e encontros.
Os indicadores ambientais referiram-se, direta ou indiretamente, aos atributos do solo (Tabela 1). A observação das plantas espontâneas como indicadoras da qualidade dos solos foi considerada pelos(as) agricultores(as) uma estratégia prática e de fácil utilização. As técnicas para verificar a matéria orgânica serviram para quantificar mais precisamente as mudanças que os(as) agricultores(as) já percebiam em seus sistemas de produção. Tais técnicas também são simples e fáceis de serem empregadas. Entretanto, a percepção geral é de que elas precisam ser aprimoradas. Os(as) agricultores(as) consideraram necessário aprender a interpretar as análises de solos feitas em laboratório para que elas possam ser úteis como indicadoras. Mesmo assim, construiu-se a compreensão de que as análises laboratoriais não devem ser considera- das mais valiosas do que as demais para indicar as mudanças que vinham ocorrendo.
PRODUÇÃO DOS CAFEZAIS
Uma dúvida freqüente no grupo refere-se à produtividade dos cafezais em sistemas agroflorestais. De forma geral, segundo a percepção de muitos agricultores, a produção de seus cafezais com ou sem sombra não é alterada. Entretanto, essa é uma avaliação muito complexa de ser realizada, uma vez que a produtividade dos cafezais depende de vários fatores como, por exemplo, a idade, a bianualidade do café (um ano produz mais e outro menos), o número de plantas por hectare, bem como o tipo e a quantidade de adubo utilizado. Por outro lado, o sistema agroflorestal depende da quantidade de árvores presentes no sistema, das espécies arbóreas utilizadas e do manejo.
Consideramos, ainda, que do ponto de vista da lógica econômica dos agricultores familiares agroecológicos, o enfoque sobre a produtividade deve ser alterado: em vez de procurarmos saber quanto produz o café sombreado em comparação com o café solteiro, devemos verificar quanto produz o conjunto do sistema agroflorestal e qual o gasto para a sua manutenção. Veja o exemplo na Tabela 2, quando foram comparados dois sistemas agroflorestais e dois sistemas convencionais (Alvori dos Santos, informações pessoais). O café agroflorestal produziu um pouco menos, mas o gasto foi menor e a produção da área foi diversificada. Conclusão: mesmo sem considerar os produtos consumidos pelas famílias, animais domésticos e silvestres, o rendimento econômico foi maior no sistema agroflorestal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O manejo da biodiversidade é importante não só para se ter um solo sadio, mas para obter um agroecossistema saudável e produtivo. Por isso, os SAFs diversificados apresentam inúmeras vantagens e vêm sendo cada vez mais reconhecidos como método importante no manejo sustentável do solo, levando ao reencontro do equilíbrio dos agroecossistemas e amenizando as adversidades ambientais e econômicas.
Edivânia Maria G. Duarte
Doutoranda no Departamento de Solos da UFV
[email protected]
Irene Maria Cardoso
Professora do Departamento de Solos da UFV
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Claudenir Fávero
Professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
[email protected]
Referências Bibliográficas:
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CARDOSO, I.M.; GUIJT, I.; FRANCO, F.S.; CAR- VALHO, A.F.; FERREIRA-NETO, P.S. Continual Learning for Agroforestry System Design: university, NGO and farmer partnership in Minas Gerais. Agricultural Systems, v. 69, p. 235–257, 2001.
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FERNANDES, J. M. Taxonomia e etnobotânica de Leguminosae Adans em fragmentos florestais e sistemas agroflorestais na Zona da Mata Mineira. 2007. 223 f. Dissertação de Mestrado (Pós-Graduação em Botânica) – Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.
SOUZA, H. N. Sistematização da experiência participativa com sistemas agroflorestais: rumo à sustentabilidade da agricultura familiar na Zona da Mata mineira. 2006. 127 f. Dissertação de Mestrado (Solos e Nutrição de Plantas/Departamento de Solos) – Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N3 – Terra Forte