Aires Niedzielski, Anésio da Cunha Marques e Luis Cláudio Bona
Porto União (SC) e União da Vitória (PR) são municípios vizinhos situados na região do Contestado, território que compreende parte do Planalto Norte Catarinense e do Centro-Sul do Paraná. Suas sedes municipais são geminadas, tendo a linha férrea como divisa. Funcionam, portanto, como um único aglomerado urbano com uma população de cerca de 55 mil habitantes.
Em ambos os municípios, assim como em todo o Contestado, a presença da agricultura familiar é significativa nos meios rurais, sendo as principais atividades econômicas os cultivos de milho e feijão, bem como o extrativismo de erva-mate. A região se destaca por ser rica em iniciativas de produção de base agroecológica, fruto do empenho de centenas de famílias agricultoras e suas organizações, que também contam com a assessoria de ONGs e de técnicos do serviço oficial de extensão rural, além de apoios eventuais de alguns governos municipais.
Entretanto, o acesso a mercados seguros que absorvam a diversidade produtiva característica da agricultura familiar da região tem se revelado um dos principais desafios para o avanço e a consolidação dos processos de transição agroecológica. Como parte das estratégias para viabilizar a comercialização de alimentos ecológicos produzidos por um número crescente de famílias agricultoras de Porto União e União da Vitória, foram constituídas feiras livres descentralizadas nas sedes municipais – cujo histórico, importância e atual situação abordamos neste texto.
O EMBRIÃO DA EXPERIÊNCIA
As feiras livres coloniais, espaços tradicionais onde os agricultores vendem seus produtos diretamente aos consumidores, sempre alternaram períodos de altos e baixos em ambos os municípios. No final de 1995, havia em União da Vitória uma pequena feira junto ao terminal urbano de ônibus. Era composta por apenas cinco feirantes, sendo comum a comercialização de mercadorias adquiridas no Ceasa de Curitiba. Em Porto União, também junto ao terminal rodoviário, seis famílias compunham na mesma época uma feira. Mas, ao contrário da feira do município vizinho, os alimentos ali comercializados eram produzidos pelas próprias famílias feirantes. Uma delas – os Niedzielski – comercializava unicamente alimentos ecológicos produzidos em sua propriedade. A experiência e a ação dessa família foram determinantes no processo de construção das feiras agroecológicas em ambos os municípios.
A prática da família na produção ecológica e na comercialização em feiras se iniciou em 1983, após Aires Niedzielski ter concluído curso técnico na Fundação Mokiti Okada. Simultaneamente, Aires começou a desenvolver trabalhos de divulgação da Agroecologia na região e, para tanto, contou com o apoio da Igreja Católica e do Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores Rurais (Cepagri), ONG sediada no município de Caçador (SC). A partir dessas iniciativas e da frustração das experiências de plantio de pêssego pelo sistema técnico convencional vivenciada por agricultores da comunidade Km 13, em Porto União, várias famílias deram início a processos de conversão ecológica de suas propriedades. Já em 1996, 22 famílias fundaram a Associação dos Produtores Ecológicos de Porto União (Afruta).
Em 1993, a ONG AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa deu início a suas atividades na região, aportando desde então grande contribuição para o desenvolvimento da Agroecologia, por meio de processos continuados de formação e de experimentação técnica e sócio-organizativa. Entre 1997 e 2000, período em que a prefeitura de União da Vitória foi administrada pelo Partido do Trabalhadores, a Secretaria Municipal de Agricultura foi composta por profissionais oriundos justamente da AS-PTA e da Afruta. Ao assumir como prioridade a promoção da Agroecologia no município, a secretaria criou o Programa Municipal de Agricultura Ecológica (PMAE), que tinha como objetivo atuar tanto no campo da organização e da formação quanto no apoio a compras comunitárias e à comercialização da produção, com ênfase no desenvolvimento do mercado local. Nesse sentido, o PMAE apoiou a estruturação de feiras livres ecológicas e a organização de agricultores para a produção e venda de grãos e diversos produtos hortícolas em mercados de Curitiba e São Paulo.
Essas novas condições possibilitaram significativo avanço nos processos de transição agroecológica de muitas propriedades do município. Assim, foram organizados campos de sementes crioulas e as primeiras feiras de sementes, proporcionando o aumento local da escala de um trabalho que já vinha sendo realizado na região.
Do ponto de vista dos agricultores, os maiores avanços foram percebidos na diversificação dos sistemas produtivos, com a inclusão de cultivos alimentícios, de espécies de adubação verde de inverno e verão, além da produção própria de sementes. Essas iniciativas tornaram os sistemas produtivos menos dependentes de insumos externos e levaram à redução dos custos de produção. Além disso, os agricultores reconheceram que a produção agroecológica trouxe benefícios com relação à conservação do meio ambiente e à saúde de suas famílias e dos consumidores.
O INÍCIO DAS FEIRAS E A CONQUISTA DE MERCADOS
A partir de 1997, o PMAE e a Afruta intensificaram o trabalho de divulgação da Agroecologia, por meio da realização de palestras em escolas, de matérias nas rádios e jornais locais e da promoção de eventos. Bons níveis de aceitação por parte das famílias agricultoras e consumidoras foram alcançados.
Porém, a demanda por hortaliças e frutas por parte da população urbana continuava sendo atendida sobretudo com produtos vindos do Ceasa. Diante disso, o PMAE e a Afruta deram grande incentivo ao aumento da produção hortícola que até então vinha sendo feita apenas para suprir as necessidades das próprias famílias produtoras.
No início de 1998, o PMAE estruturou a Feira Colonial em uma das praças locais. A iniciativa envolveu 12 famílias, algumas das quais ainda não produziam de forma exclusivamente ecológica. Para identificar as barracas dos feirantes ecológicos, foram afixados cartazes com os dizeres “Alimento Ecológico”. Na mesma época, seis famílias associadas da Afruta perceberam o potencial dessas feiras para a diversificação da produção e deram início a duas Feiras Ecológicas em dois bairros, além de continuarem com a barraca ecológica na feira do terminal urbano de Porto União.
A CRIAÇÃO DE UM SISTEMA DE GARANTIA DE QUALIDADE
O trabalho de difusão dos benefícios trazidos pela produção ecológica despertou nos consumidores maior interesse pela qualidade dos alimentos, o que resultou no aumento da demanda por esses produtos nos municípios. Ao mesmo tempo, esse maior interesse fez com que consumidores exigissem uma comprovação da qualidade ecológica dos alimentos que adquiriam nas feiras. Para dar resposta a essa questão, deu-se início a um sistema de garantia fundamentado no trabalho com grupos e inspirado na experiência anterior de agricultores gaúchos assessorados pelo Centro Ecológico de Ipê (RS). A partir desse momento foram constituídos cinco grupos de produtores ecológicos em União da Vitória e em Porto União, que vieram a se somar aos seis grupos de associados à Afruta já existentes.
Cada grupo manteve uma dinâmica própria de funcionamento que, em geral, consistia em pelo menos uma reunião mensal de planejamento da produção e da comercialização. As reuniões eram realizadas nas propriedades dos membros do grupo em sistema de rodízio, o que favorecia visitas a diferentes áreas de produção, contribuindo tanto para a capacitação do grupo, com base em intercâmbio de experiências, quanto para viabilizar a certificação participativa.
No segundo semestre de 1998, realizou-se em União da Vitória um seminário para que o tema do sistema de garantia – que nesse momento vinha sendo debatido por grande número de organizações no Sul do país – fosse aprofundado e aperfeiçoado. Um dos encaminhamentos do evento foi a criação de uma Rede Regional de Agroecologia, que foi finalmente homologada em um segundo seminário promovido alguns meses depois na cidade de Caçador (SC). Deu-se início assim à Rede Ecovida de Certificação Participativa e, desde então, os grupos do PMAE e da Afruta passaram a se identificar com o símbolo da Rede Ecovida.
NOVAS SOLUÇÕES, NOVOS DESAFIOS
Embora as feiras tenham se iniciado relativamente bem, conseguindo escoar a produção dos agricultores ecologistas pioneiros, a ampliação dos mercados mostrava-se como condição para permitir o aumento dos volumes comercializados e a adesão de novas famílias ao processo. As tentativas de colocar os produtos nos supermercados e no comércio local não prosperaram em função da baixa regularidade da oferta dos produtos e da limitada diversidade de gêneros produzidos localmente. As casas comerciais preferiam se abastecer no Ceasa de Curitiba onde, ademais, adquiriam produtos com preços muito baixos em épocas de safra.
Para enfrentar esse desafio, o PMAE e a Afruta firmaram no segundo semestre de 1998 uma parceria com a Associação de Agricultura Orgânica do Paraná (Aopa), organização que coordenava a comercialização de alimentos orgânicos em Curitiba. Frente às dificuldades na abertura de novos mercados locais, essa estratégia se mostrou mais viável nesse momento, apesar do custo de transporte dos produtos até Curitiba. Para viabilizar essa oportunidade àquelas famílias que em geral não têm acesso a programas governamentais, o PMAE subsidiou financeiramente a organização e o transporte da produção.
Esse novo sistema de comercialização permitiu inclusão de um maior número de agricultores ecológicos em ambos os municípios. Além dos associados da Afruta, 61 famílias de União da Vitória comercializaram alimentos ecológicos através da Aopa em 1999. No pique da safra (entre novembro e março), o volume semanal de comercialização variou entre 6 e 10 toneladas dos mais diversos produtos, tais como cebola, tomate, cenoura, batata-salsa, beterraba, batata-doce e feijão adzuki. Naquele ano, o município de União da Vitória foi considera- do o maior produtor de cebola orgânica do Paraná.
Não obstante os bons resultados iniciais das vendas em mercados de Curitiba, esse canal de comercialização mostrava-se vulnerável, já que dependia da continuidade dos subsídios financeiros e da assessoria técnica do PMAE. Além disso, tratava-se de um mecanismo comercial que exigia padrões rígidos de qualidade, o que implicava em constantes perdas de produtos. De fato, a vulnerabilidade do sistema se tornou evidente no final de 2000, quando as fortes geadas ocorridas na região de Curitiba praticamente destruíram as plantações dos agricultores associados à Aopa e inviabilizaram a manutenção dos canais comerciais abertos pela associação.
Felizmente, o sucesso inicial alcançado com a abertura da frente de comercialização em Curitiba não significou o abandono da estratégia original voltada para os mercados locais. Muito pelo contrário. Estimulados pelo aumento dos volumes de venda, os agricultores intensificaram sua presença nas feiras locais. Com isso, elas se multiplicaram, criando um grande número de pontos descentralizados nas cidades, a maior parte deles constituída por associados da Afruta. A Feira Colonial da Praça Alvir Riesemberg, de União da Vitória, por sua vez, transformou-se na Feira Ecológica, espaço para a comercialização exclusiva de alimentos ecológicos. Portanto, o período em que os mercados de Curitiba operaram possibilitou que os mercados locais se consolidassem. Prova disso são os dados da comercialização do tomate ecológico: em 1999, foram vendidas 40 toneladas do produto em mercados de Curitiba e de São Paulo e apenas 4 nos mercados locais. Já em 2000, apenas 2 toneladas foram escoadas para Curitiba, enquanto os mercados locais, principalmente as feiras, absorveram 50 toneladas.
A partir de 2001, o PMAE foi praticamente desestruturado com a perda das eleições por parte do grupo político que vinha administrando a prefeitura. Com isso, os serviços de assessoria e os subsídios foram descontinuados, e as reuniões de planejamento e organização da produção praticamente cessaram. A partir desse momento, o apoio da prefeitura às feiras limitou-se ao transporte dos produtos de um número reduzido de famílias.
Ao final de 2003, a Emater de União da Vitória, juntamente com a Prefeitura de Porto União, criou a Feira Colonial na estação ferroviária que separa as duas cidades. Vinte famílias agricultoras de ambos os municípios passaram a comercializar seus produtos nesse espaço. Entretanto, como os produtos ali comercializados não eram exclusivamente ecológicos, criou-se um dilema, que persiste até hoje, na medida em que a população das cidades já associava as feiras de agricultores a pontos de venda de alimentos ecológicos. Afinal, quase todos os pontos de feira abertos nos cinco anos anteriores foram iniciativas de agricultores ecológicos.
De forma autônoma, a Afruta deu seguimento ao seu processo de organização para assegurar e ampliar os mercados locais, centrando sua estratégia comercial nas feiras e investindo em processos de agroindustrialização. Em 2004, após a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), agricultores vinculados à Afruta fundaram a Cooperativa dos Agricultores Ecológicos do Vale do Iguaçu (Coavi), com o objetivo de apoiar as feiras e de organizar a comercialização via PAA.
A SITUAÇÃO ATUAL DAS FEIRAS
De acordo com dados da Afruta e da prefeitura de União da Vitória, assim como de estimativas dos auto- res, existem hoje 43 pontos de feira mantidos por 98 famílias agricultoras, 39 das quais (40% do total) dedicadas exclusivamente à produção agroecológica (ver Tabela 1).
Nesse quadro geral, destaca-se o grande número de feiras descentralizadas mantidas por uma ou duas famílias agricultoras. Esse formato tem se mostrado interessante, pois não depende de grandes estruturas ou de- moradas negociações com o poder público. Além disso, proporciona uma relação de proximidade com os consumidores, que passam a estabelecer laços mais fortes com as famílias produtoras de seus alimentos. Uma das dificuldades desse sistema tem sido manter a variedade de produtos procurada pelos consumidores. Alguns feirantes têm minimizado essa questão ao comercializar produtos de outras famílias agricultoras de suas comunidades.
Outro aspecto a ser destacado é o fato de que os feirantes não identificados como ecológicos também não são necessariamente convencionais. Acredita-se que por meio de processos simples de adequação, esses produtores-feirantes poderiam ser classificados como ecológicos. Esse fato, associado à tendência de a população relacionar as feiras à produção agroecológica, revela a importância da continuidade dos trabalhos de esclarecimento dos consumidores e do apoio aos processos de conversão técnica dos sistemas de produção.
De forma geral, as feiras mais bem estruturadas são aquelas mantidas pela Afruta, já que a associação cultivou um processo autônomo e permanente de planejamento, inclusive com a manutenção de um sistema de redistribuição de produtos (rodízio) entre os pontos de feira (ver Quadro 1). A Afruta conta atualmente com 23 pontos de feira distribuídos nos centros e nos bairros dos dois municípios, todos identificados com banners da Rede Ecovida de Agroecologia. A comercialização do conjunto desses pontos chega a 100 toneladas mensais, variando entre 0,8 e 4 toneladas mensais por ponto. A diversidade de produtos envolvidos também é grande. Qualquer um dos pontos de venda apresenta cerca de 40 a 60 itens diferentes, entre eles, 10 tipos de folhosas e outros 15 tipos de olerícolas, além de grãos, frutas, pães, geléias, sucos, conservas e derivados do leite.
A renda obtida nesses espaços tem deixado satisfeita a maioria dos feirantes. Em 1999, a renda bruta mensal obtida por cada feirante ligado à Afruta girava em torno de 1 a 2,5 salários mínimos. Atualmente, situa-se entre 2 e 8 salários. Esses resultados são bastante positivos, sobretudo considerando que essa não é a única fonte de renda das famílias feirantes. Além disso, com a adoção do sistema de produção ecológica, os custos de produção e de comercialização tornaram-se bastante baixos. Outro aspecto a ser ressaltado é que o aumento da diversidade de cultivos e a maior conscientização sobre a qualidade dos alimentos consumidos pelas famílias feirantes aprimoraram muito o padrão nutricional e a segurança alimentar das mesmas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitos foram os aprendizados nessa trajetória. De um sistema que começou com grande dependência do poder público municipal, originou-se um processo autônomo que hoje se autoregula a partir da intervenção direta das famílias agricultoras e suas organizações. Trata-se de um sistema de gestão simplificado e dinâmico, garantindo tomadas de decisão com ampla participação de todos – homens, mulheres, jovens e adultos – e atuando por meio de redes locais, sem depender de grandes estruturas, apenas do exercício de aprendizados coletivos.
Por sua vez, o PMAE demonstrou que é possível estruturar políticas públicas de inclusão social fundamentadas na troca de experiências, na valorização do conhecimento dos agricultores, na simplificação de práticas de gestão econômica, viabilizando a geração de renda ou novas expectativas para as famílias por meio da utilização de recursos públicos com economia e de forma transparente.
Mesmo com um número significativo de feiras descentralizadas, distribuídas em diversos pontos do núcleo urbano de Porto União e de União da Vitória, existe ainda um grande potencial para ampliação da comercialização local de produtos ecológicos, principalmente se mantida a proximidade e a relação direta entre produtores e consumidores, servindo de estímulo à transição agroecológica dos sistemas de produção por parte de outras famílias.
Por fim, vale ressaltar que a experiência bem-sucedida de feiras ecológicas nos dois municípios inspirou a criação de iniciativas semelhantes em outros municípios da região, como Canoinhas (SC), Mafra (SC) e São Mateus do Sul (PR).
Aires Niedzielski
agricultor ecológico, técnico agrícola, coordenador da Afruta e presidente da Comsol
[email protected]
Anésio da Cunha Marques
engenheiro agrônomo, professor de Agroecologia da Uniguaçu e analista ambiental do ICMbio.
[email protected]
Luis Cláudio Bona
engenheiro agrônomo e coordenador do Programa de Desenvolvimento Local da Região do Contestado da AS-PTA
[email protected]
Baixe o artigo completo:
Revista V5N2 – Trajetória e desafios da construção de mercados locais para a agricultura ecológica em Porto União (SC) e União da Vitória (PR)