Podemos dizer que existe um amplo consenso no movimento agroecológico sobre a necessidade da participação ativa de trabalhadores e trabalhadoras do campo nos processos de desenvolvimento local para que a sua sustentabilidade sociopolítica seja assegurada.
Mesmo não havendo tanto consenso assim sobre o significado de participação, é recorrente nos projetos de organizações da sociedade civil e, mais recentemente, em programas governamentais, o emprego de metodologias participativas de diagnóstico, planejamento, experimentação e monitoramento. Tem sido também muito comum assistirmos programas de desenvolvimento com iniciativas voltadas para organizar os trabalhadores e trabalhadoras, geralmente com vistas a cumprir metas a serem alcançadas nos seus projetos de financiamento. Esse tipo de enfoque, na maioria das vezes, tem resultado em organizações artificiais, constituídas de uma hora para outra, que se sustentam somente em função da execução do próprio programa. Assim criadas, essas organizações se limitam a operar como estruturas formais na gestão de projetos específicos, sem que consigam desenvolver vínculos orgânicos com processos sociais de base.
Já quando são criadas a partir de necessidades coletivamente vivenciadas em nível local, as organizações têm demonstrado maior capacidade de se renovar permanentemente em sintonia com os próprios processos sociais que as instituiram. A incorporação desse tipo de percepção pelos programas voltados à promoção do desenvolvimento local certamente contribuiria para que eles passassem a implementar estratégias direcionadas ao fortalecimento das organizações preexistentes ou à criação de condições necessárias para o surgimento de novas organizações que estejam afinadas com as dinâmicas sociais.
Porém, o que tem sido bem menos comum é justamente a reflexão sobre as formas e as razões pelas quais os trabalhadores e trabalhadoras se organizam por si sós, assim como sobre os papéis desempenhados por suas organizações nos processos de desenvolvimento local. Nos últimos tempos muitos estudos têm se dedicado à análise dos movimentos sociais no campo e de suas organizações, mas não temos tido muitas oportunidades de encontrar reflexões dos próprios atores envolvidos acerca de suas experiências organizativas ligadas à promoção do desenvolvimento local com base na Agroecologia.
Esse contexto talvez se deva ao fato de que, apesar da longa trajetória de constituição dos mais diversos movimentos sociais no campo, a apropriação do conceito da Agroecologia e sua transformação em bandeira de luta por parte de alguns desses movimentos seja ainda algo muito recente. Essa bandeira vem se expressando à medida que o modelo de desenvolvimento hegemônico é questionado e as alternativas construídas na prática pelas bases sociais desses movimentos são apresentadas como caminhos para que a produção de base familiar seja viabilizada nos planos social, cultural, ambiental e econômico.
Assim, por mais que os temas relacionados à promoção da Agroecologia figurem cada vez mais nas pautas de negociação dos movimentos, verifica-se ainda uma carência de reflexão sobre a necessidade de reformulação da atuação dos próprios movimentos e organizações de trabalhadores e trabalhadoras do campo para que eles levem à frente essa bandeira junto às comunidades rurais. Com efeito, a opção pela Agroecologia descortina novos desafios e oportunidades para as organizações e movimentos sociais já que chama a atenção para questões importantes relacionadas à construção do protagonismo dos trabalhadores e trabalhadoras. Entre elas, destacamos duas que nos parecem essenciais: a) o empoderamento das populações rurais como agentes na construção do conhecimento agroecológico, mediante a (re)valorização das sabedorias locais sobre o uso e manejo dos recursos naturais e a sua interação com os saberes de origem acadêmica e; b) a valorização das alternativas agroecológicas desenvolvidas em nível local nos espaços mais amplos, onde são formulados e debatidos os projetos coletivos, em particular aqueles vinculados a políticas de ocupação e uso dos territórios rurais.
Nesse sentido, as inúmeras experiências de inovação e de promoção da Agroecologia empreendidas por organizações locais de trabalhadores e trabalhadoras do campo nas diversas regiões do país são a principal fonte inspiradora para o avanço da reflexão sobre o tema. Associações e cooperativas de produtores, sindicatos de trabalhadores rurais, movimentos de mulheres e jovens, pastorais religiosas e uma grande multiplicidade de grupos informais nas comunidades e municípios têm desempenhado um papel de importância crescente na construção da alternativa agroecológica no Brasil.
Este número da Revista Agriculturas: experiências em agroecologia se inicia com artigos que analisam como alguns sindicatos de trabalhadores rurais (STRs) vêm atuando sob essa perspectiva inovadora. Na experiência de Medina, no Vale do Jequitinhonha (MG), percebe-se como, a partir de um trabalho em torno da conservação de nascentes no município, o sindicato ampliou o conhecimento sobre a realidade vivida pelas famílias de agricultores e conseguiu mobilizar diferentes atores para uma ação conjunta nas comunidades, na região e mesmo fora dela. O STR alargou sua agenda de ação política, agregando outras temáticas, e passou a exercer um papel de reconhecida importância no questionamento da exploração predatória dos recursos naturais pelas mineradoras que atuam na região e no debate sobre políticas públicas que visam atender os anseios das famílias e garantir a preservação do meio ambiente.
No artigo sobre a trajetória do Pólo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema, no agreste paraibano, são apresentados e analisados alguns dos desafios enfrentados por organizações de cunho sindical em suas ações voltadas para a promoção de um modelo de desenvolvimento local fundado em princípios agroecológicos. A necessidade de superação desses desafios na região levou as direções sindicais a se lançarem num esforço para aprofundar seus conhecimentos sobre a realidade local, o que lhes permitiu a identificação dos sistemas produtivos tradicionais como expressões de estratégias técnicas e econômicas que devem ser fortalecidas com o emprego do enfoque agroecológico. Essa iniciativa foi responsável por orientar a ação das organizações vinculadas ao Pólo, que se dedicaram a favorecer o resgate e a valorização de conhecimentos locais. No dizer de uma das lideranças, passaram a descobrir os tesouros que estão escondidos na comunidade, permitindo a identificação de experiências isoladas promovidas por famílias ou grupos comunitários, que acabaram se tornando referências coletivas.
A experiência de implementação de sistemas agroflorestais no Alto Jequitinhonha, também em Minas Gerais, focaliza igualmente o papel das organizações locais na condução de programas de desenvolvimento que incorporam as especificidades e culturas locais e que mobilizam a participação ativa da agricultura familiar. O artigo demonstra que, quando se parte de um enfoque holístico da agricultura, identificada com as práticas tradicionais de manejo de recursos naturais, com uma identidade que associa a agricultura aos sujeitos que a praticam, permite-se que tradição e inovação se alimentem mutuamente em processos que levam à promoção de sistemas produtivos mais sustentáveis. E “esse encontro acontece numa direção inversa àquela valorizada pelo modelo consagrado pela chamada Revolução Verde, que se limita ao aspecto produtivo e acredita que a agricultura não mais depende da natureza”.
No mesmo sentido aponta o artigo sobre os agentes agroflorestais indígenas do Acre. Partindo da constatação de que os povos indígenas detêm um amplo e complexo corpo de conhecimentos sobre os recursos naturais e seus usos, é descrita a metodologia de formação desses novos atores sociais que têm a responsabilidade de realizar um trabalho junto às suas próprias comunidades e às comunidades do entorno para garantir que a gestão dos territórios indígenas propicie qualidade de vida a essas populações.
Já a experiência dos piquizeiros, na Chapada do Araripe (CE), revela a profunda incompatibilidade entre as formas de vida e organização produtiva dessa população tradicional e as orientações das políticas públicas para o desenvolvimento implementadas na região. Levanta-se a necessidade de os programas de desenvolvimento compreenderem e valorizarem as estratégias de produção econômica e de reprodução social dos piquizeiros, que dependem essencialmente da conservação da diversidade biológica na caatinga e de sua integração com os sistemas de produção agrícola. “É na diversidade de atividades produtivas no tempo e no espaço que eles constroem seus meios de vida e suas formas de organização. ”
Abordando a problemática sob o ponto de vista de uma entidade de assessoria que busca fortalecer as organizações de agricultores e agricultoras para que exerçam o papel de protagonistas na promoção do desenvolvimento local, o artigo do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA), que atua junto aos STRs dessa região mineira, identifica uma série de lições aprendidas a partir de sistematizações de experiências realizadas em quatro municípios. Essas lições se relacionam ao alinhamento inicial de expectativas dos atores envolvidos, à importância da construção compartilhada do conhecimento da realidade e ao processo participativo de planejamento e execução das ações. Sempre refletindo sobre seu papel de organização assessora que detém poder de intervir e que procura investi-lo na democratização das relações sociais nos processos de desenvolvimento local, o CTA chama a atenção para condições necessárias para que esse fim seja atingido. Entre elas a garantia da participação efetiva de mulheres e jovens, assumindo que esses grupos sociais têm acesso limitado a recursos e tradicionalmente exercem pouca influência na tomada de decisões, seja no âmbito familiar ou das organizações.
A questão envolvendo gênero e gerações, aliás, é tratada em vários dos artigos aqui apresentados, mas é no artigo sobre a experiência das mulheres cisterneiras, do Rio Grande do Norte, que são aprofundados os muitos desafios enfrentados na organização das trabalhadoras rurais, em função da invisibilidade social das mulheres, da divisão sexual do trabalho e da dificuldade de imprimir mudanças na estrutura política e social nesse campo das relações sociais. Ao mesmo tempo em que se afirma no movimento agroecológico a importância da revalorização das tradições e das culturas locais, o artigo explicita a necessidade de desnaturalizar certos mitos sexistas enraizados nas comunidades rurais, nas organizações, nos movimentos e nas próprias entidades de assessoria. O artigo descreve como essas mulheres enfrentaram o preconceito, o descrédito e a desconfiança para conquistarem um novo espaço na comunidade, abrindo caminho para a geração de renda com o aprendizado de um novo ofício.
Esse conjunto de artigos nos dá uma pequena mostra do quão ricas em ensinamentos são as experiências organizativas de trabalhadoras e trabalhadores do campo, assim como aponta para a necessidade da realização de reflexões a partir dessas práticas sociais concretas para que possamos avançar na promoção da Agroecologia no país. É preciso, sobretudo, ter um olhar atento para a diversidade dessas experiências, para identificar as formas de organização muitas vezes peculiares, autônomas, pouco formalizadas ou institucionalizadas. Sem esse cuidado no olhar, as múltiplas e variadas estratégias de luta e resistência adotadas pelos trabalhadores e trabalhadoras permanecerão invisíveis nos debates e nos processos mais amplos de construção social da Agroecologia.
Muitos consideram que essas formas de organização camponesas são coisas do passado, pré-modernas, sem lugar no mundo contemporâneo. No entanto, elas estão aí, muito presentes e carregadas de sentido no contexto atual. Como nos ensina Boaventura de Souza Santos, “a visão reduzida do simultâneo e achatada do presente impede que se considerem contemporâneas as experiências e práticas que ocorrem simultaneamente ainda que cada uma à sua maneira”. Ele propõe combater o que chama de desperdício da experiência. Para isso, defende a necessidade de tornar visível a diversidade de estratégias organizativas e suas iniciativas concretas. Sob essa lógica, os movimentos que buscam recuperar as experiências desperdiçadas e a inclusão das realidades tidas como inexistentes não representam uma volta ao passado, mas uma invenção e reinvenção da sociedade.
Eugênio Ferrari
engenheiro agrônomo, membro da equipe técnica do CTA
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Revista V4N2 – Um novo olhar sobre a diversidade das estratégias organizativas locais