Ciro Correa e Jean Marc von der Weid
Sementes crioulas ou locais são aquelas melhoradas e adaptadas por agricultores e agricultoras, por seus próprios métodos e sistemas de manejo, desde que a agricultura se iniciou há mais de dez mil anos. Existem centenas de variedades de cada uma das espécies cultivadas. Cada uma delas evoluiu sob condições ambientais, sistemas de cultivo e preferências culturais específicas.
Essas variedades exercem um papel fundamental no desenvolvimento de sistemas agroecológicos. Ao contrário das sementes comerciais, cujo potencial produtivo está diretamente ligado ao emprego de altas doses de insumos químicos, as variedades crioulas precisam de pouco ou nenhum aporte de insumos externos, já que são adaptadas aos estresses ambientais locais a que foram submetidas durante seus processos evolutivos. Nesse senti- do, mesmo em condições ambientais adversas, como as que freqüentemente são encontradas na realidade da agricultura familiar, as variedades crioulas são capazes de manter produções satisfatórias. Além de produtivas, se ajustam bem a sistemas de policultivo e são de livre acesso e multiplicação pelas famílias agricultoras, tornando desnecessária a sua aquisição no mercado a cada safra.
No entanto, ao longo da evolução do movi- mento agroecológico no Brasil, as famílias agricultoras enfrentaram a rejeição de suas variedades pelos sistemas oficiais de pesquisa agrícola, de extensão rural, de crédito e pelos programas públicos de distribuição de sementes. “Não são sementes; são grãos” foi o que sempre se escutou, com um tom de não disfarçado desprezo, dos técnicos desses sistemas.
Indiferentes a esse senso comum amplamente disseminado no meio científico-acadêmico, várias organizações de assessoria ao desenvolvimento da agricultura familiar e da agroecologia vêm, desde a década de 80, apoiando projetos de resgate, melhoramento e reintrodução de sementes de variedades crioulas nos sistemas produtivos. Por meio de processos participativos, centenas de variedades de várias espécies foram resgatadas. Grande ênfase foi dada às variedades de milho, assim como às de feijões, arroz, trigo, batata, mandioca e outras espécies. Raças animais também foram objetos de resgate e multiplicação nesses programas.
Já no final dos anos 80, com a evolução desses trabalhos, amplas articulações de entidades de produtores e de assessoria se dedicaram ao assunto. O exemplo de maior destaque foi a Rede Milho, na qual organizações da sociedade civil, juntamente com a Embrapa, promoveram os Ensaios Nacionais do Milho Crioulo. Essas experiências e articulações tiveram papel extremamente relevante na popularização e mobilização em torno ao debate das sementes crioulas.
Em meados da década de 90, as organizações envolvidas nesse debate e a agricultura familiar como um todo levaram um duro golpe com a aprovação das Leis de Cultivares e de Patentes. Essas legislações contrariaram frontalmente os princípios dos defensores da agrobiodiversidade e de seu papel no desenvolvimento da agricultura familiar. Isso porque, o marco regulatório foi concebido em coerência com a lógica produtiva de grandes corporações transnacionais, em especial no ramo da genética, que dominam a agricultura empresarial, mais recentemente auto-designada como agronegócio. A partir desse momento, uma série de novos obstáculos foi criada para impedir a promoção das sementes crioulas como alternativa técnica aos sistemas da agricultura familiar.
Como a agricultura familiar esteve virtualmente alijada dos sistemas governamentais de apoio ao desenvolvimento rural até 1996, quando surgiu o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), a rejeição oficial às variedades crioulas nunca chegou a causar maiores problemas às famílias produtoras. Até esse momento, as dificuldades surgiam sobretudo por ocasião das perdas ocorridas com as secas, quando os programas de distribuição de sementes eram organizados emergencialmente no semi-árido brasileiro. Nessas situações, não foram raras as vezes em que os agricultores eram levados a empregar uma tortuosa forma de driblar os programas de sementes. Recebiam as sementes, desenvolvi- das por empresas privadas ou públicas, e as vendiam nos mercados locais para levantar recursos financeiros para readquirir variedades locais perdidas com as estiagens.
Nos primeiros anos de execução do Pronaf, porém, apenas uma parcela das famílias de agricultores, a mais capitalizada e bem informada sobre os métodos “modernos” de plantio, se beneficiou com a oferta de crédito. Os empréstimos eram atrelados à obrigatoriedade do em- prego de pacotes tecnológicos compostos por variedades comerciais, adubos químicos e agrotóxicos. Assim, aprovar projetos com o Pronaf usando variedades crioulas era quase impossível.
O quadro começou a mudar desde o início desta década, quando foi promulgada a nova Lei de Sementes. Embora a versão original submetida ao Congresso Nacional não previsse nenhuma abertura legal para o em- prego das variedades crioulas nos programas governamentais, os movimentos sociais e as ONGs, mobilizadas em torno da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA) conseguiram influenciar o conteúdo da legislação, o que permitiu, pela primeira vez, o reconhecimento oficial dessas sementes. Segundo o texto da lei, essas variedades não podem ser discriminadas em quaisquer programas públicos.
Na regulamentação da lei, essas conquistas foram essencialmente reafirmadas, apesar da forte pressão contrária realizada pelas empresas sementeiras. A exceção foi a introdução no texto de um artigo que limita a venda de sementes crioulas por cooperativas ou associações de agricultores familiares apenas a seus associados.
Um conjunto de dificuldades foi identificado, em especial nos projetos de crédito, para fazer valer a nova lei. Apesar disso, nos últimos dois anos, milhares de famílias viabilizaram projetos com o uso de sementes crioulas por meio do Pronaf.
A CONTRADIÇÃO ENTRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A LEGISLAÇÃO
Historicamente a agricultura familiar lutou pela criação de um programa de crédito que estivesse amparado por um mecanismo de seguro. Em 2005, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) implantou o benefício do seguro agrícola, tornando-o compulsório para todas as famílias que obtêm crédito.
Naquele mesmo ano, a região Sul foi fortemente afetada por uma das mais duras estiagens em cinqüenta anos. Após constatarem perdas consideráveis em cultivos de milho, feijão e soja, muitas famílias tomadoras de crédito recorreram aos bancos para receber o seguro a que tinham direito. Tiveram uma desagradável surpresa quando receberam dos bancos uma negativa de ressarcimento do prejuízo fundamentada na alegação de que tinham “utilizado tecnologias inadequadas”. Segundo as regras do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro), as variedades e as técnicas de cultivo aceitas devem ser definidas pelo Ministério da Agricultura (Mapa), que as condicionam a regiões ecológicas identificadas no zoneamento agrícola. Como essas regras foram concebidas conforme a lógica dos pacotes tecnológicos do agronegócio, apenas sementes comerciais e manejos agroquímicos são prescritos. Assim, os que utilizaram sementes crioulas foram prejudicados.
Evidencia-se, nesse exemplo, a contradição entre política pública e legislação. A não cobertura das sementes crioulas pelo seguro agrícola é ilegal, pois desrespeita o artigo 48 da Lei de Sementes. Além disso, o Mapa exige que as variedades passíveis de indicação no zoneamento estejam cadastradas no Registro Nacional de Cultivares (RNC), contrariando o que reza a lei no seu artigo 11, § 6, que desobriga o registro das variedades locais, tradicionais ou crioulas no RNC.
Para lidar com essa contradição no curto prazo, o MDA apresentou uma proposta de medida provisória que abria a possibilidade temporária para concessão do seguro às famílias que empregaram variedades crioulas na safra 2004/2005. Uma das grandes limitações para o trâmite dessa medida foi a ausência de uma definição formal do que é uma variedade crioula, o que impede a separação entre estas e outras sementes próprias, também excluídas do zoneamento, inclusive as variedades “maradona ”, transgênicas, reproduzidas ilegalmente no Rio Grande do Sul. Para a safra 2005/2006, o MDA negociou com o Conselho Monetário Nacional uma permissão, em caráter excepcional, para que variedades crioulas fossem incluídas nas regras do seguro, muito embora permaneçam não indicadas no zoneamento. No longo prazo, o problema continua sem solução.
O Grupo de Trabalho sobre Biodiversidade da ANA vem acompanhando de perto a questão, procurando influenciar as decisões oficiais de forma a resguardar os direitos dos agricultores de usarem suas variedades tradicionais. Foi nesse sentido que tentou negociar com o governo federal alternativas que permitissem a admissão das variedades crioulas nas regras do RNC, abrindo caminho para que as mesmas pudessem ser incluídas no zoneamento agrícola e, em função disso, pudessem ser cobertas pelo seguro.
Um dos principais obstáculos para que essa opção se viabilize é de natureza técnica. Como as variedades crioulas possuem alta variabilidade genética, sendo essa uma de suas virtudes para a agricultura de base ecológica, elas não são passíveis de serem caracterizadas com base no uso dos descritores empregados pelo RNC. O sistema foi elaborado para registrar variedades com características genéticas homogêneas e estáveis, como as comerciais melhoradas para responder produtivamente ao emprego de insumos químicos. Um exemplo: o primeiro dos descritores de variedades de milho no RNC é o ângulo entre a primeira folha e o colmo. Em variedades convencionais, esse ângulo é constante nas diferentes plantas de uma lavoura e em plantas de diferentes gerações. Já nas variedades crioulas, é possível encontrarmos grandes variações nesse descritor.
Outra dificuldade colocada pela lógica desse sistema oficial é a necessidade da caracterização das variedades locais segundo suas adaptabilidades às condições ambientais específicas da zona ecológica na qual deverá ser indicada no zoneamento agrícola. Embora não sejam difíceis de serem executados, os procedimentos para caracterização das variedades exigem grande dedicação. Apenas poucas entidades que desenvolvem atividades de resgate e revalorização da agrobiodiversidade possuem fichas de caracterização das variedades existentes nas regiões em que atuam. Na prática, é impossível efetuar a tempo, a caracterização das variedades crioulas no âmbito nacional para que elas sejam cadastradas no registro nacional e liberadas para cobertura do seguro na safra 2006/2007.
Mesmo na hipótese de superação dos dois obstáculos técnicos mencionados (inadequação dos descritores e necessidade de caracterização), há ainda um difícil problema de natureza política. Quem deveria se responsabilizar pelo registro de uma variedade? Mesmo que o registro não implique em direito à propriedade, como alegam técnicos do governo, há questões de fundo, de ordem simbólica e ética, que fazem parte do contexto. Imaginemos que uma entidade de assessoria se encarregue de registrar as variedades dos agricultores com os quais interage. Como irá identificá-las? Com seu próprio nome ou com os nomes designados pelos agricultores? Que agricultores? Afinal, fora eventuais exceções, uma variedade crioula não é plantada por apenas uma família. Como justificar o registro de uma variedade em nome de um desses utilizadores? Como os outros iriam reagir?
O GT Biodiversidade da ANA refletiu sobre esse tema e, pelas razões expostas, concluiu que o registro das variedades não é o caminho mais adequado para solucionar as contradições existentes entre as políticas públicas e a legislação de sementes. Sendo assim, o impasse continua…
Essa experiência é reveladora do enorme desafio que representa a implementação de políticas públicas em favor da promoção da agricultura familiar em bases ecológicas. Na maior parte das vezes, esse desafio não se resume à simples adaptação de políticas vigentes. Ele requer, sobretudo, uma revisão dos enfoques teórico-metodológicos que fundamentaram e orientam a elaboração das atuais políticas, essencialmente baseadas na lógica de maximização da produtividade por meio do emprego dos pacotes agroquímicos.
Ciro Correa:
membro do Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST
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Jean Marc von der Weid:
coordenador do Programa de Políticas Públicas da AS-PTA
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Revista V3N1 – Variedades crioulas na Lei de Sementes: avanços e impasses