O que mais preocupa na questão dos transgênicos não é apenas o seu impacto negativo sobre a saúde humana ou o meio ambiente. Essas são questões obviamente fundamentais e levantadas com profunda preocupação por técnicos e ambientalistas. Compartilho amplamente desses temores. Mas é necessário dar visibilidade a outra questão, de igual relevância, que tem sido negligenciada (ou mesmo omitida) nessa discussão. Trata-se do impacto futuro na economia do país a partir da adoção dos transgênicos. Sabe-se que as sementes geneticamente modificadas não se reproduzem indefinidamente. E que sua tecnologia é hoje posse exclusiva de uma multinacional, a Monsanto.
O Brasil é o maior produtor mundial de soja. Aderindo à soja transgênica, torna-se refém da multinacional que detém a exclusividade dessas sementes. Se amanhã – e isso, do ponto de vista comercial, é mais que possível, é plenamente provável -, essa multinacional elevar o preço das sementes a um nível insuportável, o país perderá competitividade e, por extensão, sua posição no cenário mundial.
Sabe-se que as sementes transgênicas passam por um processo de imunização que as deixam protegidas de determinadas pestes. Nada impede que, a exemplo do que hoje acontece no universo da informática, onde se disseminam vírus desconhecidos para que depois sejam vendidos antivírus, as sementes passem por processos semelhantes, em que os plantadores tenham também que ficar reféns de bactericidas cuja fórmula lhes seja desconhecida. Só há aí uma saída: é o Brasil exigir, para aderir à transgenia, a transferência de tecnologia. Isso é possível de se obter agora, já que a medida provisória, recém-editada, pode ainda ser modificada no Congresso. Não pode um país, com as dimensões e a importância geopolítica do nosso, tornar-se refém de quem quer que seja, muito menos de uma empresa multinacional.
Empresas movem-se em torno da idéia do lucro, o que é perfeitamente legítimo. Mas países lidam com realidades bem mais complexas, em que o interesse humano deve pairar soberano. Nessa relação que hoje se inicia, entre Brasil e Monsanto, projeta-se um cenário perverso para o futuro. Precisamos evitá-lo. Louvo a resistência cívica e humana do vice-presidente José Alencar em assinar a medida provisória que autorizou, em caráter restrito, esse tipo de plantio. Louvo também a resistência da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, voto vencido no governo.
Não sou autoridade técnica na matéria. Acompanho como leigo e cidadão as discussões pela mídia. E estranho que tema de tal magnitude não tenha sido trazido a debate, em dimensão mais ampla, envolvendo a sociedade, que, em última análise, é quem vai consumir esses produtos. O próprio Congresso Nacional, absorvido pela discussão das reformas, vem passando ao largo da questão.
Até aqui, listam-se apenas as vantagens econômicas. Informa-se que a soja transgênica reduz o número de tratores por área plantada (de cinco para dois); reduz a quantidade de diesel, de pesticidas e das perdas nas colheitas (que passam de 15% na soja convencional para 3% na transgênica). A Argentina teria economizado cerca de US$ 400 milhões só na compra de pesticida, aumentando sua receita no setor em mais de US$ 3 bilhões. Tudo isso é relevante, mas inteiramente acessório. Fundamental é que se investiguem os condicionamentos geoeconômicos e o impacto ambiental e na saúde humana da adoção da transgenia – e é espantoso que ainda não o tenham feito.
Hoje, segundo depoimento do presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja, Ywao Miyamoto, ao Correio Braziliense (28.09.03), o plantio da soja transgênica já corresponde a alguma coisa em torno de 17% a 25% do total do país. E, ao contrário do que diz o governo, não está restrito ao Rio Grande do Sul. Está até na periferia de Brasília. Pior: essas sementes não foram testadas e, segundo ele, ‘‘muitos produtores gaúchos se surpreenderam com o surgimento de doenças desconhecidas’’.
O argumento do fato consumado, segundo o qual se tantos já adotam determinada prática o melhor é legalizá-la, é inaceitável e gera precedente perigoso. Poderia, por exemplo, ser invocado pelos traficantes e criminosos do colarinho branco… Ao que parece, os interessados na matéria cuidaram de tudo, menos de detalhes tais como o futuro econômico do país, o meio ambiente e a saúde humana. Detalhes, como se vê.
REGINALDO OSCAR DE CASTRO, JURISTA E EX-PRESIDENTE DA OAB.