Marcio Lopes, João Batista Ferreira e Gilberto dos Santos
Quando se fala em abelhas, o que normalmente vem à cabeça são as produtoras de mel da espécie Apis mellifera L. , introduzidas no Brasil a partir da Europa e África e que, atualmente, respondem pela maior parte do mel produzido no país.
No entanto, o mundo das abelhas é bem mais vasto. Há espécies solitárias como as mangangavas (Xylocopa sp), muito vistas nas flores de maracujá, que se destacam pelo importante papel na polinização das plantas. Outras vivem em colônias e, além de serem vitais na polinização de várias plantas, produzem mel a partir da extração do néctar das flores. Entre as abelhas sociais, além da conhecida A. mellifera, estão as da tribo Meliponini, que agrupa vários gêneros de abelhas sem-ferrão.
As abelhas sem-ferrão foram as únicas espécies produtoras de mel empregadas até 1838, antes da introdução da abelha européia (Kerr et al, 2005). Como o ferrão dessas abelhas é atrofiado, elas não ferroam. Daí o nome “abelha sem-ferrão”. Por ser tradicionalmente manejada por povos indígenas, também é chamada de “abelha indígena”.
Existem no Brasil inúmeras espécies de abelhas sem-ferrão e ainda há muito trabalho de pesquisa a ser feito para conhecer essa diversidade. Há aquelas que produzem mel só para o consumo da colméia. Outras produzem excedentes que podem ser aproveitados para o consumo humano. Entre as mais conhecidas, estão as abelhas mandaçaia ( Melipona quadrifasciata Lep. ), jataí (Tetragonisca angustula Latreielle), jandaíra (Melipona subnitida Ducke), mirim (Plebeia sp), rajada (Melipona asilvae ), canudo (Scaptotrigona sp ) e uruçu (Melipona sp). Algumas, como a jataí, são amplamente distribuídas. Outras são específicas de determinados ambientes, como a jandaíra, que habita a caatinga (Figura 1).
Porém, as abelhas sem-ferrão encontram-se em processo acelerado de desaparecimento, provocado principalmente pelo desmatamento de florestas nativas, ambiente preferencial dessas espécies. Como produzem uma quantidade de mel menor do que a A. mellifera, os produtores de mel para o mercado não se interessam pelo manejo racional de abelhas sem-ferrão – a meliponicultura –, o que explica a limitada oferta desse produto. Conseqüentemente, em algumas regiões, como o Sudeste e Sul, poucos conhecem os sabores do mel das nossas abelhas nativas, o que faz desse produto uma verdadeira iguaria, apresentando cores, gostos e aromas incomparáveis. Quem já provou sabe. Hoje em dia, apenas as pessoas mais velhas reconhecem seu grande valor medicinal.
A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO TRADICIONAL NO DESENVOLVIMENTO DA MELIPONICULTURA
Embora sejam poucos os que se dedicam comercialmente à meliponicultura, o uso e manejo dessas abelhas ainda é prática corrente entre povos indígenas, comunidades tradicionais e camponesas, em particular nas regiões Norte e Nordeste.
O meliponicultor João Batista Ferreira, do município de Belterra, Pará, é um testemunho vivo da importância do conhecimento tradicional para o uso e conservação dessas espécies (Ferreira et al, 2005). Desde os 14 anos de idade, ele fazia capturas de abelhas na mata e transferia para o bambu. Posteriormente, passou a transferi-las para a chamada “caixa cabocla”, confeccionada com recursos locais. O amor pelas abelhinhas, além de uma boa dose de curiosidade e criatividade, levou esse agricultor a aprimorar as caixas, desenvolvendo tecnologias de manejo específicas para as diferentes espécies que trabalha.
Hoje, com 30 anos de meliponicultura, o sr. João é procurado por pesquisadores, estudantes e outros agricultores interessados em aprender os mistérios das abelhas sem-ferrão. Em 2004, orientou a implantação de um projeto de meliponicultura voltado para a população tradicional residente na Floresta Nacional do Tapajós, Unidade de Conservação Federal.
O Dr. Gabriel Melo, taxonomista de abelhas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), já identificou seis diferentes gêneros de abelhas (Tabela 1). Atualmente, o sr. João maneja 23 espécies de abelhas sem-ferrão com produção média, entre elas, variando de 0,5 kg a 5 kg por caixa/ano. (Fig.2). A meliponicultura contribui com par- te significativa da renda de sua família e essa contribuição só não é maior devido a limitações de acesso ao mercado. De qualquer maneira, a experiência do sr. João demonstra o grande potencial das abelhas sem-ferrão para o uso e manejo sustentado do ambiente florestal.
No semi-árido brasileiro, o extrativismo de mel de abelha nativa é uma prática tradicional dos sertanejos. O agricultor Gilberto dos Santos, de Jandaíra, Rio Grande do Norte, é um experiente “caçador” de mel. Andando com ele pela caatinga, pode-se observar sua técnica apurada de localização de enxames e seu grande conhecimento sobre os hábitos de cada espécie de abelha, incluindo as árvores preferidas por elas para moradia. A sua habilidade em abrir um oco de árvore com machado é tal que consegue fazê-lo sem danificar as colméias. Infelizmente, esse não é o caso de extrativistas ocasionais, que extraem o mel às custas do sacrifício dos enxames.
Depois de um período vivendo do extrativismo de mel, aos poucos o sr. Gilberto tem se estruturado para instalar um meliponário. A expectativa dele é não precisar mais caçar enxames e consolidar uma criação racional em caixas padronizadas perto de casa (Figura 3), o que vai permitir o abastecimento de mel para a família e um excedente para a comercialização. Além disso, o fortalecimento de uma associação local é uma das estratégias que o sr. Gilberto vislumbra para vencer os obstáculos da comercialização e ter nas abelhas sem-ferrão uma fonte de renda garantida.
O sr. Gilberto maneja as espécies jandaíra, rajada, mosquitinha e cupira, mas tem carinho especial pela última (Partamona sp), abelha que dá na caatinga em cupinzeiro de terra vermelha. Ele atribui grande poder medicinal ao mel dessa espécie, usada localmente para “problemas na vista”. O desenvolvimento de manejo adequado da cupira é um dos desafios que o sr. Gilberto espera superar em breve.
DESAFIOS
As experiências do sr. João na Amazônia e do sr. Gilberto na caatinga são apenas exemplos do potencial das abelhas sem-ferrão para o manejo sustentado da biodiversidade e para a geração de renda. Com certeza, há inúmeros casos semelhantes protagonizados por outros Joões, Gilbertos, Josés, Marias, Glorinhas, guardiões das abelhas sem-ferrão nos diversos ecossistemas brasileiros que, infelizmente, permanecem invisíveis como as próprias abelhinhas.
A criação de abelhas sem-ferrão, ao contrário do que ocorre no caso da A. mellifera, sofre de um vazio legal, particularmente na parte sanitária, o que dificulta a ampliação do mercado desse produto. As normas sanitárias exigem que, para ser comercializado, o mel deve ter no máximo 18% de umidade, valor inferior ao normalmente encontrado no mel produzido por abelhas sem-ferrão. Analisando a composição do mel de cinco espécies de abelhas sem-ferrão do gênero Melipona produzido na região de Itacoatira e Manaus, no Amazonas, Souza (2004) encontrou umidade média de 28,6%, variando entre 23,9% para a uruçu boca-de-ralo (Melipona rufiventris paraensis Ducke) e 34,6% para jupará (Melipona compressipes Fab.). No sertão paraibano, Evangelista Rodrigues (2005) identificou teor de umidade em torno de 25% no mel da abelha uruçu (Melipona scutellaris Lat.). Esses dados ressaltam a necessidade do desenvolvimento de normas específicas para as abelhas sem-ferrão.
A parte de manejo e criadouros vem sendo objeto de discussão de órgãos da área ambiental. Em agosto de 2004, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) aprovou a Resolução 346, definindo normas para o manejo de abelhas sem-ferrão, enquanto o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) atua na regulamentação da criação e do comércio de abelhas nativas. As normas são importantes para evitar a depredação dos enxames na natureza e coibir práticas criminosas, como o transporte de enxames entre diferentes ecossistemas. Todavia, é importante estar atento para que a regulamentação não venha impor procedimentos excludentes aos pequenos produtores.
Indagado sobre o que acredita ser necessário para melhorar a atividade, o sr. Gilberto ressalta que a falta de apoio financeiro é um obstáculo para que a meliponicultura se consolide como uma alternativa de renda no semi-árido. Em suas palavras: “Se tivesse condições, todo mundo passaria os enxames do toco para caixas padronizadas para extrair mel com mais sucesso. ”Em muitos casos, o extrativismo e a venda de enxames ainda é a única opção para que as famílias possam levantar algum dinheiro para comprar comida, especialmente nos anos em que a seca é mais severa. O sr. João lá da Amazônia alerta para a necessidade de ter “governantes mais interessados em apoiar os meliponicultores e que reconheçam estas abelhas como um patrimônio do país”.
Marcio Lopes:
técnico em apicultura e meliponicultura
[email protected]
João Batista Ferreira e Gilberto dos Santos:
agricultores e meliponicultores
Referências:
EVANGELISTA-RODRIGUES, A. et al. Análise físico-química dos méis das abelhas Apis melífera e Melipona scutellaris produzidos em duas regiões no estado da Paraíba. Ciência Rural, v. 35, n.5, p.1166-1171, 2005.
FERREIRA, J.B.; REBELLO, J.F.S. Belterra: o paraíso das abelhas indígenas sem-ferrão. Mensagem Doce, v. 83, n.23, 2005.
KERR, W.E. et al. Aspectos pouco mencionados da biodiversidade amazônica. Mensagem Doce, n. 80, 2005.
SOUZA, R.C.S. et al. Valor nutricional do mel e pólen de abelhas sem-ferrão da região amazônica. Acta Amazônica, v. 34, n. 2, p. 333-336, 2004.
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Revista V2N4 – Abelhas sem-ferrão: a biodiversidade invisível