Conversamos com Mateus Manassés Bezerra Nascimento, jovem agricultor experimentador de Queimadas e integrante do Polo da Borborema. Mateus falou sobre a mobilização no município e no território em torno da defesa das sementes crioulas e sobre as formas de mobilização e engajamento da juventude. “A gente vê que do nada a gente pode transformar muita coisa, são os jovens que devem assumir a responsabilidade de guardar as sementes para as gerações que ainda vão chegar”. Confira abaixo como foi essa conversa.
Boletim – Como acontece o trabalho de resgate, conservação e proteção das sementes crioulas na sua comunidade?
Mateus – Na minha comunidade, no sítio Soares, temos um banco de sementes criado em 2016. Na época, eu tinha 18 anos e fui eleito presidente do banco. Tivemos apoio da AS-PTA para equipar o banco com lona, estantes, peneiras e bombonas para guardar as sementes. Para além disso, tinha ainda o desafio de ter um lugar para guardar as sementes. Ofereci a casa de barro onde moraram meus avós. A reforma e construção foi feita toda com apoio da comunidade, uns dando os materiais, outros ajudando com a obra. No começo, como toda novidade, tinha aquele receio de não saber se ia dar certo. Começamos com 15 sócios. Todos pegaram sementes, multiplicaram e devolveram. Com isso, conseguimos duplicar o quadro de sócios do banco no segundo ano. Para celebrar, fizemos a festa da colheita. Juntamos toda a comunidade. Cada pessoa doou um pouco de alimento e fizemos um jantar extraordinário. Teve banda de forró, as pessoas comeram, dançaram e curtiram mesmo. Com isso, o banco ficou conhecido. Nesse mesmo jantar, fizemos uma discussão sobre sementes crioulas. As pessoas sabiam o que era, mas não com esse nome. Todos tinham em casa essas sementes que vieram dos pais e dos avós.
Boletim – Como vem se dando a mobilização com relação à ameaça dos transgênicos?
Mateus – O principal desafio quando a gente fala de uma campanha sobre sementes, como é a campanha Não Planto Transgênicos para não Apagar Minha História , é explicar para os agricultores o que é a transgenia. Uma coisa é explicar a questão para uma pessoa que teve acesso aos estudos. Outra é explicar para muitos agricultores que não tiveram esse grau de instrução, e daí gerar uma conscientização da importância de se plantar o milho livre de transgênico. O desafio é grande, mas estamos conseguindo, vamos explicando da forma mais didática possível.
Boletim – Por que é importante que a defesa das sementes crioulas não aconteça somente dentro do roçado de cada família, mas que seja uma luta coletiva, sobretudo, da comunidade? Como foi possível criar uma comunidade livre de transgênicos?
Mateus – Um desafio grande que enfrentamos aqui é que as áreas dos agricultores são muito pequenas. Então, se um plantar livre de transgênico e o vizinho plantar contaminado, aí vai tudo por água abaixo. Aproveitamos um ano que boa parte das pessoas não tinha semente de milho por conta da seca. Essa foi a oportunidade para entrar com milho livre de transgênico. O Banco Comunitário tinha semente e fez o empréstimo para um grupo de pessoas. Elas plantaram e lucraram muito, deu boa produção. Além da semente, lucraram com a palha para os animais. A planta do milho crioulo é mais robusta e rende mais para ração animal. Isso conquistou as pessoas. O segundo passo foi dizer que esse era o milho livre de transgênico. Foi aí que as pessoas se apaixonaram por esse milho, que é o jabatão vermelho. É um milho muito pesado. Com menos de quatro latas já dá um saco de 60 kg. Ainda não podemos dizer que 100% da comunidade é livre de transgênicos, porque tem uns grandes proprietários de terra na região e com esses é mais difícil o diálogo.
Boletim – Como as famílias agricultoras fazem para aumentar a diversidade cultivada?
Mateus – Tem muitas sementes que as famílias não vêem mais e acham que estão perdidas, mas nas Festas Estaduais das Sementes da Paixão [organizadas pela ASA Paraíba] é possível recuperar. Na última festa, por exemplo, o pessoal voltou com sementes do jerimum pururu. Fazia muito tempo que as pessoas não viam essa semente, mas tinham a lembrança de que era uma variedade muito boa. Foi resgatada na feira. Outra semente que foi resgatada, e que muita gente não chegou a conhecer por ser jovem demais, é a fava moita. Essa tem a característica de não enramar. Ela é como o feijão preto. Com as trocas de sementes conseguimos recuperar também o milho jabatão amarelo.
Boletim – Como você avalia as políticas públicas de sementes?
Mateus – Estamos numa gravação em massa de vídeos pra fazer o recado chegar no governo. Se a gente ficar calado, é como dizer que a gente gostas políticas atuais. Os agricultores estão rejeitando a semente do governo, que vem de outra região e é tratada com agrotóxicos. As pessoas não estão indo buscar essa semente. Não se trata de ser contra a política pública. A política de distribuir sementes é fantástica, mas desde que ela compre as sementes dos agricultores. Nós agricultores também não produzimos? Então compre de nós pra distribuir para outros agricultores pequenos como nós e dar também pra esse povo a oportunidade de plantar uma semente de qualidade. Tem pessoas capazes de vender semente de qualidade para outros agricultores. Por que então comprar outra semente?
Nesse governo atual eu não tenho a menor esperança. Ali não tem nenhuma boa vontade, nenhuma esperança de melhoria, especialmente que seja voltada para o Semiárido. Nos governos do PT e, em especial os do Lula, a gente teve um impulso muito forte para a agricultura. Quando você tem um governo que nega até a construção de cisternas para captação de água de chuva, aí você vê a desvalorização do governo para com nós agricultores.
Boletim – E como vem sendo possível construir políticas para a Agroecologia nos municípios?
Mateus – O município de Queimadas hoje tem até uma visão diferenciada. Hoje já temos o apoio da prefeitura para preparar terra para os pequenos agricultores. Temos também um projeto de palma forrageira e outro de melhoramento dos rebanhos. Então, eu vejo uma transformação no poder público municipal. Por mais que seja lenta e às vezes burocrática e não chegue a todos os agricultores, eu vejo uma transformação. Em Queimadas, o Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável se reúne todos os meses. Tem um representante da Câmara Municipal no Conselho. Três anos atrás. conseguimos que parte do dinheiro que vem para o município fosse usado para comprar sementes dos agricultores do município ou do território para reforçar os Bancos de Sementes ou para ajudar a criar outros. Mas não vimos essas sementes, nem sabemos onde elas foram parar. Mas o desafio é a nossa energia. Estamos na luta sempre para estar defendendo o que é nosso. Mesmo assim, considero que temos uma vitória no município.
Boletim – As crianças estão também se envolvendo no tema das sementes?
Mateus – Tem muitas comunidades aqui no território que trabalham as Cirandas da Borborema. São crianças que estão tendo a oportunidade de participar das discussões desde a infância. Está se tornando normal para elas, é uma coisa bem pertinho delas. Já temos hoje pessoas com 18, 19 anos que participaram das Cirandas e já têm um olhar diferenciado para a agricultura, para o meio ambiente e para o próprio planeta.
Boletim – E qual o papel dos fundos rotativos solidários (FRS) no engajamento da juventude?
Mateus – Os fundos rotativos chegaram na nossa comunidade em 2017. A região de Queimadas é mais seca, então aqui o trabalho é mais forte com as criações do que com os roçados. A comunidade tinha a necessidade de criação de ovelhas. Os jovens sempre gostaram de criar ovelhas. E foi aí que veio o Fundo Rotativo. Foram cinco ovelhas e um reprodutor da raça morada nova, que é adaptada. Os jovens fizeram sorteio no grupo. Foram cinco contemplados no primeiro ano. No segundo ano, todos os cinco fizeram repasse. No terceiro ano fizeram repasse de novo. Hoje, mais de 18 jovens já foram beneficiados e a perspectiva é passar de 24. É um sucesso na comunidade. Uma das beneficiárias tinha 10 anos quando recebeu sua ovelha. Isso motivou bastante outros jovens. Agora esses jovens podem vender uma ovelha para comprar um celular, comprar uma roupa no final do ano e mesmo ajudar em casa. Estamos gerando renda na nossa comunidade. Hoje tem jovem já com rebanhos de 5, 8 cabeças e outros mais estão chegando. Eram jovens que não tinham nada. A gente vê que do nada a gente pode transformar muita coisa. Os pais se surpreenderam com os próprios filhos. A partir daí foi lançado o FRS das mulheres. Muitas mulheres são dependentes da renda do marido. A Associação reuniu 20 pessoas, sendo eu e 19 mulheres. Isso foi em fevereiro de 2018. O combinado foi que cada um colocaria 10 reais por mês e esse dinheiro seria usado para comprar uma ovelha ou uma cabra e sorteá-la entre as mulheres. Alguns animais já vinham prenhes. No mês seguinte, de novo. Em agosto de 2019, todas as participantes já tinham cabras e ovelhas nas suas casas. Quando alguma dessas mulheres tem uma necessidade em casa, elas já têm de onde tirar o recurso. Aí, a gente volta no milho. A semente do milho é importante para produzir forragem para esses animais para a época de estiagem. É uma coisa ligada na outra, por isso que o trabalho dá certo. Se não for, não dá certo.
Boletim – Como você entende a relação entre guardiãs e guardiões de sementes e o trabalho da juventude na conservação das sementes?
Mateus – Os mais velhos se vão e os jovens ficam. Assim, são os jovens que devem assumir a responsabilidade de guardar as sementes para as gerações que ainda vão chegar. Antes, os jovens não se ligavam muito nisso porque não tinham espaço, era só o trabalho. O dinheiro ficava com os pais. A partir da nossa proposta de autonomia da juventude com os Fundos Rotativos, agora são os próprios jovens que estão encabeçando esse trabalho. São esses mesmos jovens que hoje me ligam e perguntam: “Mateus, tem semente? Pai quer comprar, mas eu já disse a ele que no Banco de Sementes tem”. Ou seja, os próprios jovens estão preocupados com o tipo de semente que os pais vão plantar. Isso é uma recompensa muito forte. Vemos que o trabalho está fluindo. É uma ação transformadora. Esses jovens estão tendo a oportunidade de fazer alguma coisa diferente, seja para sua comunidade, seja para sua própria vida.
Boletim – Como as atividades em Queimadas se integram nas redes de Agroecologia?
Mateus – Eu defino o movimento aqui da região em uma palavra só: Ubuntu. Ubuntu significa que nenhum de nós é tão bom quanto todos nós juntos. Ou seja, quando a gente tem um movimento de base sólido dificilmente as coisas dão errado. É uma força motivadora. Quando uma das comissões temáticas do Polo* está enfraquecendo, vem outra comissão e levanta ela pra cima de novo. Esse trabalho só está dando certo até hoje porque é um trabalho em conjunto. O jovem pode fazer de tudo e passar por todas as comissões, assim como as mulheres, os idosos e os homens. Se fosse isolado, a gente já tinha enfraquecido. No momento em que tem um Banco, no momento em que tem uma Associação, no momento em que tem um Sindicato atuante, no momento em que tem um conjunto de Sindicatos, que é o Polo da Borborema, dificilmente vai dar errado. Tem muita gente pra nos ajudar. E a gente também pode ajudar muita gente. É dessa forma que podemos prosperar.
*Comissões temáticas do Polo da Borborema: Sementes, Água, Mercados, Saúde e alimentação, Criação animal, Juventude, Infância e educação.
Boletim – Qual o principal aprendizado que você destaca desse trabalho com as sementes?
Mateus – Eu aprendi que todos nós somos capazes de mudar. Também somos um agente transformador, assim como também nós somos transformados. Pessoas que eu vi e pensei que nunca adeririam ao trabalho, que nunca entrariam na Associação, que nunca iam valorizar um Sindicato, hoje são pessoas que defendem de unha e garra todos esses projetos, como os FRS. O aprendizado que eu tiro é que a gente é capaz de mudar e sempre é capaz de ser mudado por outro alguém. Ninguém tem o conhecimento consolidado e não tem ninguém que não possa contribuir com um pouco. Sempre vai ser essa dinâmica na vida da gente. Nada está concluído, sempre a gente está em busca de transformação. Isso é muito gratificante. Quando você lida com pessoas, você lida com surpresas todos os dias. Um reage de uma forma, outro reage de outra forma. Uns te botam pra baixo, outros te jogam pra cima e tu decola como um balão. É nesse equilíbrio da vida que a gente tá conseguindo transformar um pouco da realidade que a gente vive.
É com essa força motivadora que a gente acorda todos os dias e nos mantém na luta. Se a gente for só olhar pro negativo do mundo, pro negativo do governo, pra negatividade da pandemia, a gente cruza os braços e desiste. A gente sempre tem que ter esperança. Como dizia o saudoso Paulo Freire, não a esperança de se sentar e esperar que esteja tudo transformado, ou por outras pessoas ou por Deus, como o povo costuma dizer. Todo mundo só bota a culpa em Deus, se Deus quiser, Deus vai fazer. Mas Deus usa as pessoas e essas pessoas somos nós. Se a gente está insatisfeito com a nossa realidade, a gente tenta transformar ela. Nem que seja só tirar uma pedrinha do caminho pra quando outra pessoa for passar ela não tropeçar, mas que faça. E que faça todos os dias. Se todos os dias da sua vida você puder fazer alguma coisa que lhe ajude e ajude os outros, faça. Por mais simples que seja, mas faça. Porque no somatório disso tudo a gente vai desmanchando um paradigma que foi criado e a gente vai criando outros conceitos e outras forças motivadoras.
Essa matéria compõe o Boletim Sementes Crioulas. Se tiver interesse em recebê-lo, escreva para [email protected].