Celso Furtado chamou a atenção que é próprio das situações de crise o aumento do poder de percepção do homem com respeito às contradições do mundo que ele mesmo cria. Por outro lado, deixou claro que isso está longe de ser condição suficiente para imprimir sinergia às forças sociais e canalizá-las num sentido construtivo. Entre a percepção da origem das crises e as ações concretas para superá-las há mediações institucionais condicionadas pelas relações de poder na sociedade. Por essa razão, defendia a necessidade de exorcizar a doutrina herdada do século 19, segundo a qual existe uma lógica imanente aos processos econômicos que independe de fatores políticos.
Contrariamente à imagem de neutralidade que projeta sobre si mesma, a Economia dominante funciona como uma língua materna da política. Sua linguagem de valoração orienta as trajetórias de desenvolvimento reconhecidas como racionais e superiores, o que significa relegar ao universo da irrelevância e da irracionalidade econômica as experiências sociais inspiradoras de trajetórias alternativas e potencialmente virtuosas.
Economista da estirpe de Celso Furtado, Guilherme Delgado propõe neste pequeno texto a aplicação de fundamentos da Economia Ecológica à regulação pública das dinâmicas de desenvolvimento rural. Como ponto de partida, explica como e em que condições as questões ambientais foram deixadas à margem pela doutrina econômica denunciada por Furtado. Ao restringir o objeto da ciência econômica ao universo dos valores monetários, essa ruptura epistemológica neoclássica distanciou a Economia de suas preocupações originais relacionadas ao ajuste dos processos de produção de riquezas aos condicionamentos do meio físico.
Ao abordarem oikos diferentes, uma verdadeira incomunicabilidade foi estabelecida entre a Economia e a Ecologia. Os processos econômicos passaram a ser representados como um sistema fechado e autossuficiente de fluxos financeiros em permanente equilíbrio segundo uma suposta lei dos mercados. Em sintonia com esse enfoque reducionista, mecanicista e abstrato, a noção de desenvolvimento é equiparada à de crescimento econômico e este último à contínua expansão das fronteiras de apropriação da natureza por meio do progresso técnico. A Ecologia, por sua vez, estuda sistemas vivos, cujo equilíbrio dinâmico é mantido pela troca contínua de matéria e energia.
Foi Geogercu-Roegen que, há mais de 50 anos, propôs um enfoque ecointegrador ao demonstrar o caráter entrópico dos sistemas econômicos regulados exclusivamente pelo mercado formador de preços. Ao retomar essa proposição fundadora da Economia Ecológica, Guilherme Delgado propõe neste texto um caminho pragmático para introduzir o conceito de entropia como critério para a regulação pública do uso da terra. Para tanto, sugere que a distribuição dos incentivos fiscais e financeiros por meio dos Planos de Safra lançados anualmente pelo governo federal seja definida por uma matriz de prescrições segundo indicadores de entropia aplicados aos estabelecimentos rurais. Essa matriz seria ajustada a zonas agrohidroecológicas, segundo as mesorregiões estabelecidas pelo IBGE.
Tal proposta tem o claro objetivo de inverter a orientação dos incentivos públicos. Dessa forma, o Estado deixaria de privilegiar as agriculturas de alta entropia fundamentadas no paradigma da Revolução Verde e passaria a favorecer trajetórias de desenvolvimento rural orientadas pela inovação agroecológica. Trata-se, portanto, de uma contribuição seminal para a superação da hegemonia teórica e institucional responsável pela legitimação pública da economia do agronegócio nos planos micro e macro. Lançada na contramão do atual processo de desmonte das regulações ambientais consagradas na constituição brasileira, a proposta é apresentada como o embrião de um instrumento de mediação técnico-política a ser experimentado e desenvolvido a fim de equacionar a questão agrária a partir dos fundamentos da ética ecológica e da justiça social.
Cadernos para Debate N4 2021 – Desenvolvimento Rural e Economia Ecológica: uma Abordagem a partir do zoneamento