Foi publicado na revista Plants, no mês de fevereiro, importante artigo intitulado “Transgene Flow: Challenges to the On-Farm Conservation of Maize Landraces in the Brazilian Semi-Arid Region” (Fluxo transgênico: desafios da conservação on farm de milho crioulo no Semiárido brasileiro). O artigo discute resultados já alcançados no projeto Agrobiodiversidade no Semiárido/InovaSocial e no Programa Sementes do Semiárido, envolvendo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), organizações locais de assessoria e agricultoras e agricultores da região. No âmbito do estudo, foram realizados testes de transgenia em 1.098 amostras de variedades de milho crioulo, evidenciando a contaminação por proteínas geneticamente modificadas em mais de 30% dos lotes avaliados.
Conversamos com as autoras do artigo Paola Hernandez Cortez Lima (pesquisadora em Agroecologia e Agricultura Familiar da Embrapa Alimentos e Territórios e coordenadora do projeto Agrobiodiversidade do Semiárido/InovaSocial) e com Ana Cláudia de Lima Silva (Engenheira Agrônoma, Doutora em Agricultura e professora do Instituto Federal de Goiás (IFG) – Campus Cidade de Goiás). As duas pesquisadoras, que participaram de todo o processo, compartilharam os resultados do estudo, as estratégias metodológicas e as propostas de continuidade do monitoramento, evidenciando a importância da conservação dinâmica praticada dia a dia pela agricultura familiar e pelos povos e comunidades do Semiárido.
Como vocês identificam o problema no qual a pesquisa de vocês está inserida? Por que se torna relevante pesquisar sobre a contaminação de sementes de milho por Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) no Semiárido?
Ana Cláudia: Primeiro, a importância de perceber a relevância da conservação on farm realizada pelos agricultores, em especial agora, diante da questão das mudanças climáticas, pois há sementes que estão sendo armazenadas por esses agricultores há mais de 250 anos. A perda da diversidade genética ocorre quando tem essa contaminação devido à existência desses dois materiais genéticos -as sementes crioulas e as transgênicas- no mesmo território. Em segundo lugar, temos programas públicos de compra de sementes crioulas dos agricultores familiares e quando você tem a contaminação dessas sementes, você não consegue comercializá-las nesses programas, porque eles vão comprar somente sementes crioulas, então, quando se faz o teste, por exemplo, no âmbito do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) ou do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), e aí é identificada uma semente crioula contaminada, essa compra não se viabiliza, então, também há uma implicação econômica dessa contaminação pelas proteínas transgênicas. Você tem também toda uma questão cultural relacionada a essa semente, que está em uma comunidade e que foi contaminada e alguns agricultores nem sabem, então há também uma ausência de informação. Essa perda da biodiversidade acaba ocasionando uma erosão genética. Você tem 90% do território sendo plantado com transgênico, então, se você contamina as sementes crioulas que são diferentes dessas sementes transgênicas, isso quer dizer que será perdida toda diversidade de sementes de milho que você tem O Brasil se configura como um microcentro de diversidade genética, um centro de origem de variedades de milho. Se você perde esse marco genético, territorial e histórico, você perde também essa diversidade genética que existe.
Paola: Não é um único grande problema de pesquisa no qual se inscreve essa contaminação, são vários grandes problemas interligados. Essa perda da agrobiodiversidade é um dos principais, porque se relaciona com uma série de outros, como dinâmicas socioculturais locais, questões econômicas. Pensando no nível macro, tem as questões da autonomia e soberania dos territórios e nacional, que é também uma questão de autonomia e soberania alimentar, porque o milho é uma cultura alimentar importante ligada a essa diversidade genética e ligada a esse patrimônio sociocultural e socioambiental dos povos. Aqui no Semiárido tem ainda a questão das mudanças climáticas. As sementes crioulas são sementes que estão sendo conservadas há muito tempo em condições que são importantes agora, no presente, e que tendem a se tornar ainda mais importantes, porque o Semiárido, por definição, tem uma quantidade de chuva menor, menor do que 800 mm, ele tem uma insolação muito grande, muita luz, bastante calor, chuva de forma irregular e uma heterogeneidade de microambientes, são 117 geoambientes, tem também solo salino, solo raso, solo pedregoso, as águas subsuperficiais também podem ser salinas, então essas sementes de milho, e quaisquer outras variedades crioulas, os animais localmente adaptados, ou a biodiversidade da Caatinga, que está evoluindo aqui nessas condições do Semiárido brasileiro, assumem uma importância estratégica para a segurança alimentar do Brasil, dos próprios agricultores e, quiçá, mundialmente. Esse problema da coexistência entre esses dois modelos de agricultura, dessa agricultura da biodiversidade, dos agricultores familiares, dos povos indígenas, das comunidades tradicionais, quilombolas de que o Semiárido é riquíssimo, também está posto, porque é um problema que envolve território, então, tem nome, sobrenome e CPF. É um tipo de agricultura que a gente chama genericamente de agricultura familiar e que está mais suscetível a arcar com os prejuízos da contaminação.
Vocês poderiam explicar como acontece a contaminação do milho por OGMs?
Ana Cláudia: Existem diferentes formas de contaminação. Uma das que acontece, e talvez nem represente a porcentagem maior, é que o milho, por ser uma planta alógama, tem uma reprodução cruzada, então uma planta de milho vai ser fecundada por uma planta de milho diferente. Existe uma norma que diz que a distância entre o milho transgênico e o convencional deve ser de 100 metros. Esta é uma primeira fonte de contaminação, já que a distância indicada não é suficiente. Já há estudos dizendo que a contaminação pode ocorrer pela polinização, que pode ser por inseto ou pelo vento. Então, a primeira fonte são roças vizinhas, que vão se contaminar pela proximidade. Uma segunda forma de contaminação, que acontece e que também vem do plantio, é quando, às vezes, o próprio agricultor compra uma semente, que o vendedor da loja vai falar, “ela é forte’, o inseto não come”, “ela é forte, você pode bater veneno que não tem problema, ela não vai morrer”. Tem alguns agricultores que compram por essas vantagens que são ditas, mas eles não sabem que essas sementes são transgênicas. Às vezes a semente vem fracionada também, o agricultor familiar, às vezes, não compra um saco de milho inteiro para plantar. Esse agricultor que perdeu a semente, ou deu uma seca muito brava e acabou com sua semente, ele compra nessa loja agropecuária, nesse mercado, na feira, uma semente transgênica, sem saber o que ele está levando para casa e aí acaba tendo essa mistura de sementes também nas roças, uma vez que ele pode plantar também as suas sementes que ele está armazenando há mais tempo. Uma terceira forma é a contaminação mecânica. Às vezes o seu milho não é suficiente para a alimentação e semeadura e você acaba selecionando o milho que você plantou para tirar semente, para plantar no ano seguinte, mas acaba comprando, não sementes, mas o grão de milho para alimentação animal e ele acaba se misturando e ali ele vai ter também uma porcentagem de germinação e isso pode acontecer de você plantar suas sementes, seu milho e por uma mistura mecânica plantar também uma semente transgênica, sem saber. Pelas caminhadas que a gente fez, a gente identifica que essas são as fontes de contaminação do milho. Às vezes, algumas mais conscientes, outras totalmente inconscientes, sem saber o que exatamente está sendo plantado ou comprado.
Paola: Enquanto a gente verifica uma rotulagem de produtos transgênicos muito específica no supermercado, na aquisição de sementes ela pode não ser tão clara. Essa aquisição de sementes sem que os agricultores saibam que estão comprando transgênicos é muito comum, a gente experimentou isso em lojas agropecuárias quando fomos comprar sementes para fazer o controle dos testes. Então, só para ressaltar que uma das medidas já seria essa de ampliar a divulgação, de ampliar a rotulagem, de ampliar campanhas de esclarecimento para que a gente consiga reduzir ou evitar esses três tipos de contaminação – por cruzamento/fecundação, mistura de grãos ou por aquisição de sementes transgênicas, sem que a pessoa tenha efetiva consciência de que está adquirindo uma semente transgênica no mercado ou vinda de alguma política pública, o que é ainda mais complicado.
No estudo, vocês identificam dois grupos amostrais coletados em períodos diferentes, um relativo a 2018-2019 e outro aos anos de 2020-2021. O que ambos possuem em comum e, ao mesmo tempo, quais as especificidades das análises no que se refere aos percentuais de contaminação por OGMs?
Paola: O que temos em comum é que são grupos de agricultores familiares do Semiárido brasileiro, então têm um perfil com características socioeconômicas mais ou menos similares. Não estamos falando de um agricultor do Pantanal, outro da Amazônia e outro aqui no Semiárido. As distinções, de modo mais pragmático, são que num período de tempo o monitoramento foi realizado pelo Programa Sementes do Semiárido, da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), nos anos de 2018 e 2019 e num segundo momento pelo Projeto Agrobiodiversidade do Semiárido, que trabalhou com diferentes territórios, não são exatamente os mesmos estados, os mesmos territórios. Outra diferença, também de modo prático, é que, de 2018 e 2019 para 2020 e 2021, as fitas para testes de transgenia disponíveis no mercado também mudaram. Então, o monitoramento da contaminação aconteceu em duas áreas de abrangência de projetos distintos, em tempos diferentes, e os testes de fita também sofreram uma alteração de tecnologia do primeiro ciclo para o segundo ciclo.
Ana Cláudia: Sobre algumas especificidades, mas também confluências nos dois ciclos de testes, é que, embora tenham sido testes diferentes, de proteínas diferentes pelas diferenças existentes no mercado, porque ele vai se renovando, porque algumas proteínas ou fitas deixaram de ser ofertadas, mesmo assim a gente conseguiu fazer três grupos distintos de tipos de contaminação. O grupo de proteínas que confere resistência a insetos e o que confere tolerância a herbicidas, sendo que este último tem dois ingredientes ativos. Uma coisa que aconteceu muito é que, majoritariamente, todos os testes mostraram proteínas do grupo de resistência aos insetos, então tem uma porcentagem grande em que essa resistência a insetos aparece sozinha, mas, na maioria dos casos, ela aparece piramidada, ou seja, os dois grupos aparecem na mesma planta. Isso acontece nos dois ciclos. O que acontece é que, às vezes, uma empresa que é detentora de uma tecnologia vende esse evento para outras empresas que acabam inserindo não só um evento, mas mais de um, e isso os nossos testes conseguem pegar. É claro que a planta contaminada precisa indicar apenas uma das proteínas, mas então você tem planta, desde aquela em que aparece só uma, e tem planta, o que acontece na maioria dos casos, em que aparecem as duas, os dois tipos de proteínas transgênicas, tanto a que confere resistência a inseto como a tolerância a herbicida. Isso é algo que se mantém de um ciclo para o outro nos testes.
Dentro das amostras vocês constituíram grupos de procedência das sementes e uma alta taxa de contaminação, em ambos os períodos analisados, está associada às trocas de sementes externas. O que isso indica? Por que na amostra de 2020-2021 esse número é ainda maior?
Ana Cláudia – A maior diferença entre os dois ciclos se deve à entrada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – Sementes durante o primeiro ciclo. São sementes consideradas da dinâmica externa, porque vieram do governo, mas foram todas testadas. Em 2020-2021 não existia mais essa política. As sementes da dinâmica externa nesse período vieram de outros lugares, como feiras e mercados. Essas apresentaram contaminações. A grande diferença entre os ciclos foi esse input de sementes via PAA.
Paola – Tem ainda o fator climático, que é elencado no artigo. O aumento das chuvas no segundo ciclo levou a um aumento do plantio do milho. E isso nos faz retomar a questão da informação sobre as sementes. Uma busca maior de sementes no mercado, sem que essas sementes estejam suficientemente rotuladas, informando se é transgênica ou não, se é híbrida ou não, que tipo de semente é essa que eles estão comprando. Esses dois fatores podem ter contribuído para o aumento da contaminação. As dinâmicas externas são aquelas que não resultam diretamente da relação agricultor-agricultor. No caso de mediação pelo mercado ou pela política pública, a classificação foi como dinâmica externa.
Como os estudos sobre contaminação por variedades geneticamente modificadas revelam também a relação estreita existente entre OGMs e agrotóxicos?
Ana Cláudia: A entrada das sementes transgênicas se deu pela incorporação da característica de resistência aos agrotóxicos embora a justificativa para se comprar essas sementes seja “compra porque você não vai precisar de veneno no caso dos insetos, porque os insetos não comem essa planta”. Nesse caso, existe uma ineficiência do uso, já que, de geração a geração, os insetos vão ficando resistentes e isso leva ao uso de inseticidas mais fortes do que aqueles que antes combatiam esses insetos. No caso dos herbicidas, acontece a mesma coisa e a tecnologia acaba resultando em um uso maior de herbicidas. A planta de milho não morre com a aplicação de glifosato ou glufosinato, por exemplo. As doses aplicadas podem ser ainda maiores. O uso é atrelado e se justifica o uso da semente pelo uso facilitado do herbicida, e maior pressão de seleção para resistência, no caso dos insetos. O resultado é que a população de insetos resistentes está aumentando.
Paola: O impacto se dá no nível da cadeia trófica, da ecologia dos insetos. Os insetos predadores passam a não ter mais suas presas e a contaminação se dá de forma cumulativa nos diferentes níveis tróficos. O Brasil vem batendo recordes como consumidor de agrotóxicos no mundo e esse aumento no Brasil segue o aumento do plantio de transgênicos. São duas curvas que seguem juntas. E, no contexto atual, ainda tem toda a flexibilização da lei dos agrotóxicos e fragilização das questões ambientais e territoriais, sobretudo dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Essa é uma questão bastante impactante.
Na metodologia vocês utilizaram os chamados “kits de transgenia” que indicam contaminação por OGMs a partir da coloração. Há críticas sobre os kits, devido à restrição de identificação de todas as proteínas/eventos transgênicos. Contudo, vocês apontam um componente pedagógico definidor desse método, a possibilidade de realização em campo com a presença dos agricultores e agricultoras, como vocês compreendem esse tipo de ciência?
Paola: Acho que esse é um grande diferencial do trabalho, a gente conseguir associar pesquisa científica com movimento social, os agricultores familiares e os agentes de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). No campo da Agroecologia, a gente prioriza a pesquisa participativa ou a pesquisa-ação, então ela se insere dentro desse contexto, desse novo paradigma, dessa nova abordagem e, sobretudo, por fazer essa aproximação entre a pesquisa, a ATER, os agricultores e os movimentos sociais. Das grandes vantagens do teste de fita, pensando nessa abordagem, tanto da pesquisa participativa quanto de um processo mais educativo, é essa facilidade de realização dos testes em campo, embora a gente tenha metodologias que possam ser “mais confiáveis” ou mais detalhadas, perde-se muito no quesito da participação, inclusive, nessa dimensão educativa de você poder discutir dentro de um grupo maior de pessoas, dentro de uma articulação, de uma rede de banco de sementes. a problemática da contaminação, embora haja um protocolo para execução dos testes de fita, ele é ainda um processo simplificado, que você consegue fazer em qualquer lugar, em qualquer ambiente, tendo os cuidados que a gente orienta e que os fabricantes das fitas indicam. Em relação a isso, por exemplo, a equipe passou por capacitações para a execução desses testes junto aos agricultores. Voltando para a questão das fitas em si, elas são indicadores muito importantes da presença ou ausência dos eventos, elas são qualitativas, porque elas marcam sim ou não, presença ou ausência de determinado evento de proteína. No artigo vamos os tipos de contaminação, o quanto dessa contaminação que a gente encontrou foi ocasionada por mistura de semente ou por aquisição, plantio ou por fecundação, é diferente, com os testes de fita a gente não consegue fazer isso, só com outros.
Ana Cláudia: O teste de fita é uma opção, pois como você vai defender a conservação on farm e não vai aproximar essa metodologia, traduzir essa ciência on farm de quem está fazendo? Acho que isso é a riqueza do processo também, não dá para distanciar todo tipo de ciência, se estamos falando dessa ciência feita cotidianamente por esses agricultores. Acho que essa é a importância de levar o teste para dentro das comunidades, de levar essa ciência e aproximá-la dos guardiões. Esse teste é feito coletivamente, o agricultor se emociona quando vê que perdeu sua semente que era conservada, mas também existe o contrário, quando ele vê que não foi identificada proteína transgênica naquela semente. É uma forma de comemoração e celebração dessa não contaminação. Isso também alegra os agricultores e agricultoras. A fita, embora não seja de alta eficácia, ela se torna um instrumento importante de triagem das sementes. Então, por exemplo, como foi feito nos projetos, tanto no Sementes do Semiárido, quanto no Agrobiodiversidade do Semiárido, como você vai armazenar uma semente sem fazer o teste? Embora ele só indique sim ou não, já é um termômetro, porque essa informação permite diminuir essa porcentagem de contaminação a partir da seleção que o agricultor fizer na sua lavoura. A fita se coloca, sim, como uma ferramenta importante, ela também se coloca no campo da comercialização enquanto um termômetro para além dessa ciência participativa, pois os movimentos sociais que comercializam sementes via essa política pública que já existiu de uma forma mais forte a nível federal, e agora alguns estados promovem, que é a compra de sementes crioulas para a distribuição para outros agricultores familiares, a fita se coloca como uma ferramenta importante, porque se você vai levar para o Ministério da Agricultura uma semente que aponta contaminação por proteínas transgênicas já no campo, você vai perder esse lote de sementes que você está comercializando, mas se ele não aponta, então tem grande chance de as sementes não estarem contaminadas.
Paola: As fitas são indicadores muito bons de alerta. Sobre isso, tem uma informação importante, que não está relacionada com o artigo, mas, por exemplo, agora na segunda etapa do Projeto, que deve ser retomada ainda este ano, a gente prevê a continuidade desse monitoramento. Haverá novas aquisições de fitas, agora para realizar ao menos mais 1.000 testes neste ano e no ano que vem. Esses testes serão nos mesmos territórios do grupo de 2020-2021. Então a gente vai conseguir entender o que está acontecendo num curto espaço de tempo, se a tendência é de ampliação da contaminação ou se manterá estável nesses grupos de agricultores. Teremos a chance de fazer isso com o projeto, mas o ideal é que houvesse políticas públicas voltadas para isso, para que as próprias redes pudessem fazer seu monitoramento periódico numa escala que fosse possível e viável para cada realidade, para cada território.
Quais são os principais alertas que o estudo aponta e como vocês compreendem o papel do Estado diante disso? Como deveria ser a atuação do Estado junto aos agricultores e agricultoras que têm se dedicado ao processo de conservação das sementes?
Paola: É importante entender que esses sistemas de conservação dos recursos genéticos são compostos por diferentes componentes e que deveriam estar integrados, como a conservação ex situ, feitas nas câmaras frias de conservação de médio e longo prazo, como é feito na Embrapa e em outras instituições de pesquisa. E existe a conservação in situ/on farm, que é a conservação dinâmica feita pelos agricultores. Enquanto uma congela os processos evolutivos, a outra mantém vivos os processos de evolução agronômica, social e ambiental, e por isso é tão importante no contexto das mudanças climáticas, e se constitui tão fortemente enquanto cultura material e imaterial dos povos. Por isso, a conservação in situ deve ser reconhecida e apoiada. Há um leque enorme de opções de como fazer isso diretamente com as comunidades e nos territórios. Daí a necessidade da garantia de terra e território, sabendo que no nosso país a questão fundiária é muito complexa, inclusive no Semiárido. E há também muita coisa que não foi feita do ponto de vista de regras e normas, que são insuficientes ou inadequadas e que jogam o ônus para aqueles que têm suas sementes contaminadas, quando quem usa as sementes modificadas é que deveria evitar a contaminação. No artigo, sintetizamos a questão, dizendo que “São necessárias medidas efetivas que confinem as sementes geneticamente modificadas nas áreas e sistemas agrícolas para as quais foram desenhadas, evitando que os setores sociais responsáveis pela conservação on farm assumam o ônus das ações de monitoramento diante da ameaça da perda de seus direitos e das suas sementes”. A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO) previam ações nesse campo, é importante resgatar esses processos. Devemos investir em mais pesquisa e formas de incentivo ao monitoramento. Reconhecer a semente crioula enquanto semente. Isso foi reconhecido depois de muita luta no PAA Sementes. As ações de conservação on farm devem ser apoiadas diretamente. É importante retomar essas conquistas recentes e reconhecer os saberes dos agricultores e esses serviços que eles prestam ao conservar essas sementes para a humanidade. É um patrimônio dos agricultores, mas que tem um valor imensurável para a segurança e soberania alimentar. E isso pode tomar proporção ainda maior nos próximos anos, sendo a única alternativa. Quanto mais diversidade no campo, mais diversidade no prato, é uma questão de saúde. É importante sempre fazer esse vínculo da agrobiodiversidade com a alimentação, é o sistema agroalimentar que está em jogo.
Ana Cláudia: A valorização da conservação on farm é primordial. Se olharmos para uma política como o PAA Sementes, por exemplo, são dois principais tipos de agricultores: aqueles que produzem sementes para comercialização e têm Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) e aqueles agricultores, guardiãs e guardiões de sementes, que fazem a tarefa de formiguinha e isso precisa ser diferenciado. Nas coleções ex situ, como os bancos ativos de germoplasma, e mesmo o de Svalbard, na Noruega, as sementes são renovadas de tempos em tempos. Os agricultores também fazem essa renovação de suas sementes, às vezes mantendo um canteiro para garantir a conservação de uma dada variedade. Então, como esse trabalho vai gerar um retorno financeiro? Na minha visão até hoje não teve nenhuma política que chegou até esse agricultor e pôde ressarci-lo por esse serviço que ele presta para a humanidade. Não é só uma renovação para garantir a viabilidade da germinação, é uma riqueza que está sendo conservada ano após ano. Só a ação dos movimentos que chega até aí, na construção de um banco de sementes comunitário para os guardiões manterem suas sementes. E quando a gente faz esse monitoramento das sementes transgênicas, o Estado faz de forma regulatória para o PAA Sementes, mas a gente faz para monitorar mesmo. É preciso proteger esses guardiões e suas sementes. É preciso ir para as grandes mídias e falar sobre diversidade, compre diversidade. Compre de um agricultor local. Isso não é feito pelo Estado. Existem as políticas de apoio ao agronegócio, mas essa agricultura de que estamos falando não é valorizada.
Foto: Giorgia Prates/AS-PTA