É na afirmação dos agricultores cearenses de que as “Casas de sementes trouxeram autonomia dos patrões” que se inspira este texto. Autonomia que só se experiencia de forma coletiva, pelo trabalho compartilhado no cuidado com as sementes, do plantio ao armazenamento, que tem no ritmo das chuvas seu compasso. De forma quase contraditória essa autonomia, se confunde com morar e plantar em terras que pertencem a outrem, revelando possibilidades de (re)pensar dimensões associadas à questão agrária, na qual a terra precisa ser lida entremeada às relações ecológicas e de poder.
Ainda hoje, agricultores familiares do semiárido cearense, mas não só, vivem no que chamam “terras do patrão”, uma terra dominada por outro, assim como tudo que ali habita, cursos d’água, matas e solos. Ao mesmo tempo, é nessa terra que os agricultores constituem suas famílias, criam seus filhos, cultivam roçados e produzem alimentos. Sem dúvidas, historicamente essas condições foram se transformando em meio a conflitos e conquistas, como é o caso das leis trabalhistas, dos processos de reforma agrária, das expulsões e ocupações.
Em um sobrevoo histórico é possível identificar que viver nas “terras do patrão” se constitui por meio da combinação de moradia e trabalho [1]. Assim, ainda que presente, o “patrão” não é uma invenção atual, mas parte do processo de formação social e ocupação do semiárido. É aquele para quem se trabalha, para quem se deve deixar parte da produção, com quem se contrai dívidas, mas também quem é padrinho e provedor.
A essa figura “boa” e “ruim” se assomam as especificidades da região semiárida. “Está bonito para chover” é uma das expressões utilizadas pelos agricultores ao olharem as nuvens se formando no céu. A chuva é um momento desejado, pois inaugura o período de plantio nos roçados. Além do plantio, a chuva garante o abastecimento das cisternas, a água estocada que permitirá a travessia durante o verão, estação da estiagem.
É a partir da compreensão e conexão com o calendário das chuvas que os agricultores afirmam que “quando chove tem que plantar, não dá para esperar”. Assim, durante as chuvas, ter ou não sementes para levar à terra é definidor da possibilidade de plantar e colher e, logo, se alimentar. Sementes engendram, dessa forma, possibilidades imediatas e futuras para as populações camponesas. Os frutos colhidos são estocados e garantem a segurança alimentar das famílias. As sementes nas mãos dos agricultores, contudo, nem sempre foram uma realidade. As sementes, como as terras, outrora, eram “sementes do patrão”, termo que expressa o domínio refinado combinando controle sobre o trabalho e os bens da natureza.
Casas de Sementes e a luta por direitos no campo em um “salãozinho discreto” no Alto Brilhante: uma história cearense
Nas inúmeras e tão agradáveis conversas com os agricultores da região de Sobral, no Ceará, se aprende que guardar sementes não é facilmente datável, o tempo é alargado para essa prática – “desde sempre”. Contudo, isso não se dá de forma contínua. As secas e os patrões impõem arranjos específicos.
As secas prolongadas, especialmente as da década de 1970 e 1980, acarretaram bruscas reduções nos estoques das sementes cultivadas pelos camponeses. A pouca chuva não permitia o desenvolvimento das sementes e frutos, além disso, muitas vezes a quantidade armazenada se tornava alimento em momentos críticos. Findas as secas ou diante um pequeno anúncio de chuvas, o acesso às sementes passava a ser pela compra nos mercados locais. Nessas décadas, para conseguir acesso às sementes era preciso que os camponeses trabalhassem primeiro para o “patrão”, recebendo o pagamento, em dinheiro ou em sementes, para, então, iniciarem seus roçados.
De acordo com relatos referentes às décadas de 1970 e 1980, grafados no relatório de 1992 da ONG Esplar, ela mesma parte da história narrada, “era aí que se instalava a dependência. Quando chovia, ao invés do trabalhador ir para sua própria roça, ia trabalhar primeiro na roça do patrão. Fazer primeiro a planta dele para depois fazer a sua. E, nessa agonia, os trabalhadores vinham quase perdendo a safra” [2].
Duas formas complementares pelas quais os “patrões” utilizavam as sementes como instrumento de exploração podem ser identificadas. A primeira, trata-se da obrigação imposta aos camponeses de trabalhar previamente para, então, receber e comprar sementes. A segunda, se caracteriza por um sistema de dívidas, na qual os camponeses tomavam sementes emprestadas do “patrão” para serem pagas após a colheita ou na próxima safra. O que é identificado pelos agricultores, numa perspectiva histórica, como constituição de um ciclo vicioso.
Foram essas condições impostas aos camponeses que motivaram nos sertões de Tauá/CE, a organização coletiva dos chamados, à época, bancos de sementes. Padres da Diocese de Crateús, sindicalistas e agricultores se organizaram para fortalecer “qualquer coisa que fosse quebrando aquele cabresto curto”. No caso das sementes – “se o pessoal tivesse a semente, aí não precisava pedir dinheiro emprestado ao patrão. E aí poderia trabalhar com um pouco mais de liberdade” [3].
“Quebrar o cabresto curto”, porém, era tarefa delicada. O contexto é o de Ditadura Militar e de repressão, no qual o Batalhão de Emergência [4] se fazia presente, não para garantir água ou provimentos durante secas prolongadas, ao contrário, atuava “desorganizando o povo todo”. As sementes eram compreendidas como bons pretextos de mobilização social porque representavam um problema real enfrentado pelos camponeses, “a dependência das sementes do patrão”, além disso, possuíam uma espécie de neutralidade política, tratava-se de garantir alimentos, o que poderia funcionar como um disfarce à constante vigilância.
Começam assim as reuniões, todos os sábados, “num salãozinho discreto lá no Alto Brilhante, cada um trazia um pouquinho de feijão, de jerimum, o que tinha para partilhar na hora do almoço”. Nesses encontros se conversava de tudo, questões específicas sobre as sementes, onde consegui-las, como armazená-las, os desafios da seleção, a dificuldade de conseguir ferramentas e também análises da conjuntura municipal, quem eram os donos da terra, o mapa fundiário da região, o Estatuto da terra e suas obrigações.
Práticas coletivas nos Bancos de Sementes: armazenamento e organização política
Com a identificação das sementes enquanto elemento parte da reprodução da vida camponesa e da organização política, o próximo passo foi adquiri-las, criando condições de armazenamento, empréstimo e devolução. As sementes foram compradas nos comércios locais através de parceria entre a Diocese da região e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais.
O instrumento comumente utilizado para gestão era um caderno no qual se anotava o nome das pessoas, a quantidade emprestada e, depois, devolvida. A simplicidade do processo era estratégica, porque havia muita resistência e medo em atuações coletivas, os envolvidos avaliavam que exigências excessivas poderiam afastar as pessoas.
Desafios técnicos também fazem parte do início do trabalho com as Casas de Sementes, como a mistura de variedades, a ausência de vasilhames adequados para o armazenamento, os processos de seleção e devolução. Ainda que entre desafios, resultados já iam sendo apontados
Quais os resultados que isso trouxe? Ainda hoje continuam em algumas regiões [as Casas de Sementes]. Houve uma maior preocupação com o associativismo […] Outro resultado que foi bom, é que o pessoal passou a se preocupar mais com a questão da seleção das sementes. Vão aparecendo sementes e o pessoal vai juntando, vai criando sementes novas e fazendo as seleções […] Além da questão sindical que foi muito forte (ESPLAR, 1992, p. 17).
Em um ambiente de repressão e de condições assimétricas de poder, ainda tão atuais, o armazenamento coletivo de sementes foi capaz de mobilizar fazeres entre os camponeses, inclusive ressignificando as práticas, como a maior preocupação com a seleção das sementes e reconhecimentos sobre a situação fundiária. Isso se evidencia pela vitalidade das Casas de Sementes nos dias de hoje, organizadas pela Rede Sementes da Vida, ora outra, nos anos 1990, conhecida como Rede de Intercâmbio de Sementes (RIS), que envolve 215 Casas de Sementes e mais de 4.700 sócios.
As Casas de Sementes têm sido um vínculo de autonomia, ainda que historicamente o “patrão” siga sendo uma figura presente e que exerce controle sobre os bens da natureza e os modos de vida camponeses. Assim, ainda que possa se dizer que isso ocorre de forma precária, já que o acesso à terra e ao que nela também habita não foi radicalmente modificado, as Casas permitiram outras formas de se relacionar com as sementes, de cultivar a terra, de não ter que trabalhar primeiro para o “patrão” e só depois acessá-las, muitas vezes em sistemas de dívidas. A qualidade desses laços abriu outras formas de fazer ser. Transformações em curso pela coragem de frequentar o Alto Brilhante, de tomar emprestadas sementes que não pertenciam aos “patrões”, enquanto, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, grande parte da vida se associava a eles. Nesse compasso, a luta pelas sementes e pela terra seguem vivas no semiárido.
[1] BARREIRA, C. Trilhas e atalhos do poder: conflitos sociais no Sertão. Rio de Janeiro: Rio Fund Ed., 1992.
[2] Todas as citações do texto foram retiradas de: ESPLAR. I Encontro da Rede de Intercâmbio de Sementes (RIS-CE). Relatório de Projeto (Programa de resgate, conservação e controle de recursos genéticos) Novib. Fortaleza: Acervo documental do ESPLAR, 1992.
[3] Referência ao Exército e suas ações de enfrentamento às secas.
[4] Essa matéria foi escrita com base em: Lopes, H. R. (2023). Seed Houses and the “Master’s Land”: A Study of the Ecology of Practices and Autonomy in Brazil’s Semi-arid Region. Agrarian South: Journal of Political Economy, 12(2), 206–226. https://doi.org/10.1177/22779760231171903