Entre os dias 21 de outubro e primeiro de novembro a cidade colombiana de Cali recebeu delegações do mundo inteiro para a décima sexta Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas, a chamada COP 16. A ampla agenda do encontro tratou de temas como financiamento para a recuperação e conservação da biodiversidade, tentativas de regulação da biologia sintética, um braço da engenharia genética, e avaliação das metas firmadas na COP 15, entre outros. Lideranças indígenas e de comunidades tradicionais de diferentes regiões se fizeram presentes para reivindicar seus direitos. Da mesma forma, também estiveram em peso por lá representantes das grandes corporações que historicamente lucraram com a destruição da Natureza e agora querem também lucrar vendendo suas soluções para a biodiversidade e o clima. Membros do GT Biodiversidade da ANA estiveram por lá e nos contam na entrevista a seguir um pouco do que se passou nessa COP e como os governos conduziram o jogo de interesses conflitantes entre os modos de vida tradicionais das comunidades e o avanço do capital.
O Boletim Sementes Crioulas conversou com Jaqueline Andrade, advogada popular da Terra de Direitos, e com Gustavo Soldati, professor da UFJF, ambos integrantes do GT Biodiversidade da ANA.
O que foi a COP 16 e qual a importância deste tipo de espaço na defesa da agrobiodiversidade?
Gustavo Soldati – A COP16, que ocorreu em Cali, foi a reunião das Nações Unidas mais importante sobre biodiversidade. Em resumo, todos os países que assinaram a Convenção sobre a Diversidade Biológica estiveram na Colômbia discutindo e tentando entrar em acordo sobre os temas mais importantes para a conservação da biodiversidade, seu uso sustentável e a repartição de benefícios. Assim, é um espaço fundamental para orientar as políticas públicas que recaem sobre os territórios e maretórios.
Essa COP16 teve muitos temas importantes. Gostaria de destacar os avanços no reconhecimento do papel dos Povos Indígenas e Comunidades Locais na conservação da sócio e agrobiodiversidade. Com uma atuação bastante destacada, Colômbia e Brasil, conseguiram apresentar e aprovar um documento que nominalmente reconhece o papel dos povos Afrodescendentes, ampliando a visibilidade para esses grupos. Além disso, a COP16 será lembrada por ter aprovado a criação de um órgão subsidiário específico para os Povos Indígenas e Comunidades Locais. Até o momento, existiam apenas dois órgãos subsidiários, um para o processo de implementação e outro para assuntos técnicos e científicos. Em Cali, os países aprovaram a conversão do Grupo de Trabalho sobre o Artigo 8j para um órgão subsidiário, assim, os Povos Indígenas e Comunidades Locais passam a fazer parte, de uma maneira mais forte, da estrutura da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Por fim, a COP16, sob Presidência da Colômbia, ficou conhecida por capilarizar e popularizar as discussões sobre a biodiversidade. Diferentemente das Conferências anteriores, além do espaço de negociação entre os Países, houve uma “zona verde”, bem no centro de Cali, onde aconteceram inúmeras atividades. Muitas, mas muitas pessoas, passaram pela zona verde, trocaram ideias, discutiram, criaram redes. Ao final, a COP16 ficou conhecida como “a COP da gente”!
Como você avalia os acordos (e, talvez, os desacordos) estabelecidos durante essa edição? Poderia apresentar algum exemplo mais diretamente associado ao Brasil?
Jaqueline Andrade – O primeiro acordo que destacaria é a inserção no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica do termo afrodescendentes, isso, na prática, significa para o Brasil o reconhecimento do papel das comunidades quilombolas na proteção e conservação da biodiversidade através da sua cultura e modo de vida tradicional em seus territórios. É um avanço significativo no reconhecimento das comunidades quilombolas garantindo uma participação mais efetiva desses sujeitos nas discussões e nas decisões que envolvam a biodiversidade mundial.
O segundo acordo significativo para os povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais e agricultura familiar é a criação do órgão subsidiário do Artigo 8j, que prevê no âmbito e na estrutura da CDB um espaço para que esse sujeitos possam discutir e decidir sobre os assuntos que lhes afetam. Isso garantirá uma maior participação e representatividade daqueles que são efetivamente os responsáveis pela proteção da biodiversidade do planeta. O artigo 8(j) da CDB aborda conhecimentos tradicionais, inovações e práticas, e terá um novo plano de trabalho, com medidas para reforçar sua implementação.
Outro avanço foi a criação do Fundo Cali, um mecanismo voluntário para repartição de benefícios oriundos do acesso a recursos genéticos e a informações de sequenciamento digital (DSI). O Fundo servirá para compartilhar os benefícios dos conhecimentos tradicionais com quem o originou. Isso significa que companhias farmacêuticas, de cosméticos e de suplementos alimentares, entre outras empresas que se beneficiam comercialmente do acesso aos conhecimentos tradicionais, devem contribuir com 1% do lucro ou 0,1% da receita.
Por outro lado, houve desacordo na criação de um fundo global da biodiversidade. Desde a implementação da CDB há 32 anos atrás se convencionou que haveria a criação desse fundo global, no entanto, naquele momento, o GEF que é o Fundo Global do Meio Ambiente, exerceria temporariamente essa função. Todavia, o GEF é administrado majoritariamente por países desenvolvidos e os países em desenvolvimento possuem poucas cadeiras, o que implica diretamente na dificuldade de acesso de recursos pelos países que objetivamente possuem a maior biodiversidade do planeta. Houve o compromisso de doação de 20 bilhões de dólares para o fundo até 2025, porém até esse ano foi cumprido somente 2% do valor acordado. As organizações, movimentos sociais, povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais e agricultura familiar afirmam que sem recursos e sem investimentos na proteção da biodiversidade e dos territórios não haverá avanços nas metas globais estabelecidas.
Pensando no processo histórico de realização das COPs da Biodiversidade, quais são as principais transformações que você identifica?
Gustavo – Infelizmente, as relações geopolíticas desiguais entre norte e sul global ainda definem as negociações e, portanto, as decisões. A COP16 tinha um papel essencial para definir, por exemplo, o mecanismo financeiro que garante a conservação da biodiversidade. Em resumo, para os países criarem ações e políticas públicas capazes de conservar a biodiversidade e proteger os territórios é preciso dinheiro. A Convenção da Diversidade Biológica define que os países ricos devem pagar aos países em desenvolvimento. Entretanto, essa discussão não avançou. Para se ter uma ideia, os países ricos não depositaram nem 10% do volume de recursos que assumiram. Há nesse impasse, importantes argumentos, como a descrença dos países ricos sobre o verdadeiro empenho dos valores pagos, os países ricos defendem que pagar por ações que mitigam a mudança climática também é pagar para proteger a biodiversidade, nesse caso um dólar investido valeria duas vezes, e, por fim, os países ricos querem passar seu compromisso ao setor produtivo.
Neste mesmo sentido, havia a expectativa de se resolver o processo de repartição de benefícios sobre o uso de informações de sequências digitais (DSI), possivelmente o tema mais complicado dessa Conferência. Contudo, o processo de negociação foi bastante marcado entre norte e sul global. O resultado é que não houve consenso sobre o completo processo que definirá o quanto uma empresa deverá pagar aos países do sul global por usar seus recursos genéticos que estão depositados em bancos digitais públicos.
Como temas, tais como, agroecologia e justiça climática, foram tratados na COP-16?
Jaqueline – Houve pouco avanço nos temas da agroecologia e justiça climática na COP 16, especialmente pelo não compromisso no investimento financeiro, atrelado à possibilidade de povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais terem acesso diretamente aos recursos do GEF. Ainda que tenha sido criado o Fundo Cali para repartição de benefícios oriundos dos conhecimentos tradicionais, há pouco investimento e não determinação de que esses sujeitos possam acessar esses recursos e gestioná-los em seus territórios onde efetivamente ocorre a agroecologia.
A promoção da agroecologia e o alcance da Justiça climática poderiam ser firmados através do estabelecimento e do compromisso com as metas globais das Estratégias e Planos Nacionais da Biodiversidade que deveriam ser apresentados pelos países membros na COP 16. No entanto, apenas 44 países apresentaram seus planos nacionais, de um total de 196 países ao total que assinam a CDB.
A falta de capacidade técnica, as assimetrias no acesso a recursos e a falta de vontade política para honrar os compromissos assumidos com ambição impedem sua real implementação, como também é o caso da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.
Por outro lado, um pequeno avanço é o acordo para que os países enviem propostas e temas de interesse para programas de trabalho conjunto entre as COPs da Biodiversidade, do Clima e de Combate à Desertificação.