Durante novembro de 2023 e outubro de 2024 foi realizado no território Centro-Sul do Paraná o Projeto Quintal-semente: mulheres, autonomia e produção, desenvolvido pela parceria institucional entre a AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, o Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT Mulheres da ANA) e o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM). O objetivo central foi promover processos de auto-organização e fortalecimento de redes de mulheres, com foco na autonomia, soberania e segurança alimentar e nutricional, geração de renda e conservação da sociobiodiversidade. Os resultados e reflexões apresentados foram alcançados por meio da metodologia político-pedagógica da Caderneta Agroecológica. Em entrevista conversamos com técnicas e agricultoras envolvidas no projeto, que aprenderam e ensinaram juntas os muitos significados que cabem na palavra “pesquisadora”.
Thalita Rody desenvolve, desde 2011, pesquisas sobre relações de gênero. Foi colaboradora do Programa Mulheres e Agroecologia no Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) e do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT Mulheres da ANA). Integra, desde 2011, iniciativas de organizações da sociedade civil em projetos que articulam gênero e políticas públicas e realiza trabalhos com metodologias participativas, como as Cadernetas Agroecológicas.
Miriane Serrato é assessora técnica da AS-PTA no Programa Local Paraná e agricultora, mora na comunidade rural de Vieiras, em Palmeira. Participou do projeto Quintal-Semente de duas formas: anotando toda a sua produção na Caderneta Agroecológica por um lado e participando da sistematização e reflexão do outro, enquanto técnica. Ter uma pessoa que vivenciou os dois lados da pesquisa aprofundou as possibilidades de análise, aproximou ainda mais as agricultoras e trouxe uma visão mais ampla para a assessoria.
Elizabete Ribeiro Bueno é uma jovem agricultora guardiã da agrobiodiversidade. Mora com sua família no Assentamento São Joaquim, em Teixeira Soares, Centro-Sul do Paraná. Foi uma das 15 agricultoras-pesquisadoras no projeto Quintal-Semente, participando ativamente de todo o processo. As anotações foram feitas com apoio de sua sogra, Leila Castilho, assim como o trabalho e produção, partilhadas entre elas e a família. Todas as mulheres da casa participam do grupo de mulheres do município e do movimento territorial – o Grupo de Mulheres do Coletivo Triunfo. Nas folhas, uma enorme diversidade de alimentos, sementes, trabalhos manuais que demonstram o carinho pelo trabalho com a terra.
Em junho foi publicada a cartilha do projeto Quintal-Semente: mulheres, autonomia e produção. O que motivou esse processo de pesquisa desenvolvido pelo Programa Local Paraná? Qual metodologia foi utilizada e quais objetivos principais?
Miriane Serrato: O processo nasceu da necessidade de tornar visível a contribuição das mulheres rurais na produção agroecológica e na economia de suas famílias e comunidades. Historicamente o trabalho dessas mulheres é invisibilizado, não reconhecido como produção ou renda. Pois, na maioria dos casos, aqui no Paraná, é a lavoura ou as criações animais que dão maior retorno econômico, ou seja, que geram “renda”. E na convivência com as mulheres, visitando suas propriedades, vimos, mais uma vez, a importância dos quintais, através de sua diversidade, potência e significado. O quintal produtivo é um espaço historicamente manejado pelas mulheres, de onde sai a comida de todo dia, além de manter relações de doação e troca com a comunidade, fundamentais na soberania e saúde das famílias. A Caderneta Agroecológica surge como ferramenta de registro que dá concretude a esse trabalho, permitindo valorizar a autonomia das mulheres e gerar dados que orientam políticas públicas, relações familiares e comunitárias.
A Caderneta foi utilizada na iniciativa como um instrumento de pesquisa participativa, onde os registros foram feitos pelas próprias agricultoras. O exercício de anotar provoca reflexões sobre sua própria produção. Em um formato simples, a caderneta é composta por quatro grandes colunas, dedicadas à anotação diária de tudo o que foi consumido, doado, trocado ou vendido, e quatro colunas para anotação do preço de cada uma das anotações. Ao longo de um ano de pesquisa, organizamos oficinas de formação, seminários de acompanhamento, visitas individuais e coletivas, além de um animado grupo de WhatsApp. Fazíamos a sistematização mensal dos dados para acompanhar de perto, tudo junto às agricultoras-pesquisadoras. Ao final, publicamos uma cartilha e uma série de três pequenos vídeos com os resultados principais.
Quem participou do projeto e o que os resultados nos dizem sobre o trabalho das mulheres rurais?
Thalita Rody: O projeto contou com a participação de 15 agricultoras familiares de Palmeira, Rio Azul e Teixeira Soares, no Paraná, que registraram durante um ano nas Cadernetas Agroecológicas tudo o que foi produzido para consumo, doação, troca e venda. Os resultados reforçam que o trabalho das mulheres rurais sustenta a agroecologia e é central para a produção e diversidade de alimentos, para a conservação da biodiversidade e de saberes tradicionais e para a economia familiar. Contudo, os resultados mostram, também, a invisibilidade de todo esse trabalho, que resulta na sobrecarga de tarefas, já que elas acumulam os trabalhos produtivos e de cuidados, quase sempre sem apoio. O projeto aponta para a importância de iniciativas como a Campanha pela Divisão Justa do Trabalho Doméstico, que coloca em debate a corresponsabilidade dentro das famílias e comunidades, permitindo que as mulheres tenham mais tempo, reconhecimento e condições de ampliar sua participação em espaços de decisão e na vida pública. Durante todo este período, ficou ainda mais evidente que reconhecer e compartilhar o trabalho doméstico é também fortalecer a agroecologia e a justiça social.
Miriane Serrato: Os resultados evidenciam que as mulheres têm papel central na produção diversificada de alimentos, sementes crioulas e plantas medicinais. Revelando ainda que grande parte dessa produção vai para o consumo familiar, garantindo a segurança alimentar das famílias. Os dados publicados na cartilha, após as análises de um ano de anotações (novembro de 2023 a outubro de 2024) mostram que a venda representou 64,6% da produção total, ou R$183.778, do total de R$284.410. O consumo é a segunda relação econômica mais relevante, representando quase um quarto do valor total, ou R$66.668. Na sequência vêm as relações de doação e troca, respectivamente a 6,2% e 5,8%, totalizando R$17.539 e R$16.425. Se juntarmos a produção voltada ao consumo familiar, doação e troca, normalmente realizadas entre as mulheres nas comunidades e encontros, chegamos a mais de um terço do valor total gerado pelo trabalho das agricultoras. É um valor muito expressivo e que não envolve trocas monetárias e, por isso, fica invisibilizado – e não pode!
As análises mostram a relevância das trocas, doações e partilhas como práticas econômicas solidárias e tradicionais das mulheres, reforçando também a importância de diferentes estratégias na construção da autonomia econômica e política das mulheres e dos quintais para o fortalecimento da agroecologia.
Nos últimos anos, temos acompanhado o crescimento do movimento regional de mulheres no Centro-Sul do Paraná, junto ao Coletivo Triunfo e outros espaços. Qual a importância do projeto Quintal-Semente: mulheres, autonomia e produção nesse processo de organização territorial? Que caminhos apontam para o desenvolvimento das ações de assessoria?
Thalita Rody: O projeto Quintal-Semente foi uma iniciativa importante para o fortalecimento do movimento regional de mulheres no Centro-Sul do Paraná porque deu visibilidade ao trabalho das agricultoras, por meio de dados, e estimulou a reflexão coletiva sobre diversos temas que perpassam as desigualdades de gênero. O projeto transformou a experiência das agricultoras em força política para o território. Então, ele se conecta ao Coletivo Triunfo e a outros espaços de decisão justamente por fortalecer vínculos de solidariedade e confiança entre as mulheres, ampliando sua participação no território a partir do reconhecimento de seu trabalho e do compartilhamento de experiências com outras mulheres.
A iniciativa se conecta, ainda, a um projeto mais amplo, uma vez que as Cadernetas Agroecológicas estão em todo o país. Os resultados dessa pesquisa revelam o protagonismo das agricultoras na construção da agroecologia, apresentam a realidade do território e se somam à realidade de mulheres do campo, das florestas e das águas em todo o Brasil, com suas similaridades e suas especificidades, o que indica, também, os caminhos para a Assessoria Técnica. Os caminhos apontam que dar visibilidade ao trabalho das mulheres é fortalecer o movimento agroecológico e feminista e orientam para ações de valorização dos saberes locais, investimento em formação política e feminista, apoio à comercialização coletiva e garantia de acesso a políticas públicas, como o PAA e o PNAE. É fundamental que essas ações considerem, sempre, a sobrecarga das agricultoras e a necessidade de espaços de cuidado, de forma que mães e responsáveis por crianças tenham condições de participação.
Como foi contribuir como pesquisadora no projeto Quintal-Semente: mulheres, autonomia e produção?
Eliza Ribeiro Bueno: Contribuir com a pesquisa foi mais que maravilhoso, pude perceber o quanto meu trabalho em casa pode ser valorizado, o quanto ele é importante, o quanto aumentou minha autoestima. E sem falar da minha produção, gerou mais lucro, gerou um olhar diferente do que eu tinha antes.
Leila Castilho: Eu acho assim que foi bom demais contribuir, nossas descobertas, nosso valor como agricultoras. Foi surpreendente o resultado da pesquisa ao ver o tanto de produção e economia que geramos, foi muito estimulante para nós como dona de casa e agricultora ver que somos parte igual dentro da propriedade e não apenas a mulher que cuida, lava e passa. Que a grande fatia sai sim das nossas mãos.
Quais foram as principais aprendizagens neste processo?
Eliza Ribeiro Bueno: O processo me ensinou a agregar o devido valor pra cada coisa que eu produzo na minha propriedade, desde um maço de cheiro verde…… aprendi demais sobre as trocas de alimentos, até mesmo produtos de limpeza, tipo trocar um pedaço de sabão por uma cabeça de alface, por exemplo. Porque às vezes não conseguimos produzir tudo, é tudo tão corrido, e o bom mesmo é chegar uma vizinha com algo diferente, até o sabor é diferente de quando o produto é trocado.
O que você gostaria de compartilhar com outras mulheres agricultoras? Qual mensagem deixaria para elas depois de participar do projeto como agricultora e pesquisadora?
Eliza Ribeiro Bueno: Eu gostaria de partilhar o quanto foi maravilhoso participar, não foi fácil esse período pra mim. Mas tive como um respiro de vida, me deu forças pra lutar e vencer, passar por situações difíceis e graças a esse trabalho tive apoio.
Leila Castilho: Deixaria para outras mulheres uma mensagem de ânimo e diria que nós somos, com certeza, parte da economia e autonomia sim dentro da propriedade, coisa que antes desse projeto nós não tinha se dado conta. Com certeza participar do Quintal-Semente foi libertador, uma luz no final do túnel. Ou melhor, no começo.