Leah Samberg
Partindo do Vale do Rift, as Terras Altas de Gamo se elevam até atingir quatro mil metros de altitude. A paisagem montanhosa heterogênea associada a uma herança cultural de dez mil anos de prática agrícola gerou grande diversidade de agroecossistemas compostos por culturas anuais e perenes, agroflorestas e pecuária. A agricultura gira em torno da banana da Etiópia, também conhecida como banana-da-abissínia ou falsa bananeira (Ensete ventricosum), uma espécie arbórea perene que serve de alimento básico para uma população estimada entre sete a dez milhões de pessoas.
Tradicionalmente, os estabelecimentos rurais em Gamo são rodeados por plantios agroflorestais compostos por banana da Etiópia e outras espécies arbóreas, herbáceas e tubérculos. Ao transpor esse contorno, encontramos os campos de cultivo. Parte deles é deixada em pousio e reservada como área de pastagem. Culturas de terras baixas (como são localmente designadas) como café, cana-de-açúcar, mandioca, batata-doce e inhame, estão presentes em altitudes até 2,4 mil metros. Culturas cultivadas em áreas de média altitude, como inhame, abóbora, trigo, pimentas e feijões, estão presentes em todas as comunidades, exceto nas localizadas nas áreas mais altas (acima de 2,8 mil metros), onde predominam a banana da Etiópia, a cevada, o repolho, a batata e a batata etíope (Plectranthus edulis). Espécies silvestres também são mantidas em campos de pousio e consorciadas com espécies cultivadas.
As terras altas da Etiópia configuram um centro global de diversidade genética de cultivos. Essa diversidade contribui para a proteção das culturas contra surtos de insetos-praga e doenças e confere segurança diante das condições ambientais variáveis, inclusive as mudanças climáticas. Além disso, a agrobiodiversidade contribui para a manutenção de altos níveis de produtividade por área e permite que os agricultores supram uma gama de necessidades alimentares e culturais. Por exemplo, as dezenas de variedades de cevada cultivadas pelos agricultores são selecionadas em função de seu sabor, cor e textura, mas também considerando sua capacidade de adequação às especificidades de solo, altitude, níveis de umidade e topografia. A variabilidade genética da bananeira da etiópia também é expressiva, com mais de 100 variedades documentadas na Etiópia, sendo que é possível encontrar até 60 variedades em uma única comunidade de Gamo.
CULTURAS TRADICIONAIS AMEAÇADAS
Nas últimas décadas, o problema da escassez de terras se agravou, levando os agricultores a abandonar as variedades tradicionais de cevada, os tubérculos nativos, o sorgo e outros alimentos básicos. Com a redução do tamanho dos estabelecimentos agrícolas, os órgãos governamentais de extensão rural têm intensificado a promoção de pacotes de sementes comerciais e fertilizantes e estimulado a produção de frutas e hortaliças voltadas para o mercado. Esses pacotes muitas vezes integram programas mais amplos de desenvolvimento rural e são associados a outros incentivos governamentais. No entanto, após aderirem a esses programas, muitos agricultores perdem suas colheitas ou não conseguem adquirir insumos necessários para assegurar a produção. Em alguns casos, contraem empréstimos para comprar esses insumos e não são capazes de pagar suas dívidas quando há quebras de safras, sendo forçados a vender seus animais ou a exaurir suas poupanças.
Observa-se também que várias intervenções do governo e da igreja têm afetado as instituições sociais que tradicionalmente regulam os mecanismos de manejo e manutenção da agrobiodiversidade. Por exemplo, a imposição da participação em programas de trabalho em troca de alimentos, juntamente com novas obrigações religiosas causaram o colapso de muitas instituições tradicionais de trabalho comunitário. Além dessas mudanças sociais, as culturas de banana da Etiópia estão cada vez mais ameaçadas por doenças, provavelmente relacionadas ao aumento das temperaturas e às mudanças nos padrões de chuva. Em várias comunidades situadas em áreas de menor altitude, por exemplo, a murcha causada pela bactéria Xanthomonas campestris dizimou parcelas inteiras da bananeira.
COMBINANDO ESTRATÉGIAS NOVAS E ANTIGAS
“Nós produzimos de tudo aqui, menos o sal”, dizem os agricultores de Bele, comunidade localizada a média altitude. Aliás, em Gamo, a maior diversidade de culturas conservadas pelo cultivo (conservação in situ) é encontrada justamente nas regiões de altitudes medianas, que configuram uma fonte diversificada de produtos para agricultores das terras baixas e altas. O forte vínculo entre as comunidades de diferentes altitudes também constitui a base de sistemas tradicionais de abastecimento e intercâmbio de sementes. Os agricultores percorrem longas distâncias para adquirir sementes nos mercados locais e regionais, muitas vezes em diferentes altitudes. Aqueles que frequentam um maior número de mercados são mais propensos a cultivar maior agrobiodiversidade em suas propriedades.
Embora as variedades locais estejam sob forte pressão, os agricultores têm encontrado formas de intensificar, em vez de abandonar, o uso de suas sementes tradicionais. Além de visitar mercados locais e regionais, eles obtêm sementes de escritórios de extensão rural do governo por meio de programas oficiais de fomento, de pesquisa e crédito. Famílias com maior acesso à terra e a recursos possuem mais facilidade para adquirir sementes tradicionais e comerciais e acabam se tornando, elas mesmas, uma fonte de sementes que abastece seus vizinhos e familiares, além de venderem seus excedentes nos mercados locais. Essa estratégia de diversificação permite que os agricultores experimentem novas variedades. Por exemplo, um agricultor pode obter variedades de milho em mercados situados nas terras baixas, variedades de cevada em mercados nas terras altas, o trigo em programas de extensão do governo e as frutas e hortaliças por meio de algum programa de fomento.
CELEBRANDO O CONHECIMENTO
O fortalecimento das instituições comunitárias e a valorização da rica base de conhecimentos locais são estratégias usadas por agricultores e outros atores para neutralizar as ameaças às culturas tradicionais. Nós já sabemos como cultivar, disse um agricultor, refletindo os sentimentos de muitos outros que mantêm culturas tradicionais e veem com ceticismo as mudanças impostas de cima para baixo. Associações culturais, como a Sociedade de Cultura e Arte da Etiópia (Case, na sigla em inglês), instituições de ensino e organizações externas, como o Fundo Christensen, realizam simpósios, conferências, festas tradicionais, exposições de arte e apresentações musicais. Essas atividades promovem os cultivos e as comidas tradicionais. No entanto, o clima político do país pode comprometer a capacidade dessas organizações de atuar de forma livre ou expandir o seu raio de abrangência.
Instituições científicas e acadêmicas também reconhecem a importância do conhecimento tradicional dos agricultores de Gamo. Por exemplo, a Universidade de Arba Minch, que fica no vale abaixo das Terras Altas de Gamo, recentemente sediou um simpósio internacional celebrando os usos e a diversidade da bananeira da etiópia como parte do projeto de implantação do Parque das Bananeiras da Etiópia. A ideia por trás do parque é promover e conservar a diversidade dessa espécie por meio de atividades de pesquisa, ensino e extensão. Uma iniciativa semelhante, da Universidade de Dilla, tem se concentrado na sensibilização da comunidade por meio da criação de um festival gastronômico, o Banana da Etiópia sobre rodas. Essas iniciativas estão repercutindo nos escritórios do governo local, que vêm se alinhando cada vez às necessidades dos agricultores, multiplicando essa e outras culturas tradicionais em viveiros, como o da cidade de Chencha, em expansão.
Em âmbito nacional, o Instituto Etíope da Biodiversidade coletou mais de 80 mil espécies nativas, incluindo variedades de culturas agrícolas. Estas são especialmente valiosas para os esforços globais e locais de melhoramento genético, uma vez que as variedades que se mostrarem resistentes às mudanças climáticas, pragas e doenças poderão ser usadas para desenvolver cultivos mais robustos e produtivos. No entanto, para que essas sementes tragam benefícios para os agricultores de Gamo, as culturas devem ser adequadas às condições bastante variáveis das terras altas e precisam estar disponíveis no tempo certo para o plantio a um preço acessível.
Não há uma via única para a agricultura sustentável e produtiva nas Terras Altas de Gamo. Para que os sistemas agrícolas locais em constante pressão de mudança alcancem novos equilíbrios, é preciso que os agricultores e as comunidades tenham acesso a todas as opções disponíveis – antigas e novas –, por meio de mercados locais e regionais, serviços de extensão do governo e novas combinações de redes de intercâmbio de sementes geridas pelos próprios agricultores. Seja como for, uma coisa é certa: a adaptação às mudanças que a Etiópia enfrenta exige diversidade – de abordagens, de instituições, de atores, de culturas e de genes.
Leah Samberg
Pesquisador associado da Iniciativa Global de Paisagens (Global Landscapes Initiative) do Instituto do Meio Ambiente da Universidade de Minnesota
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Agriculturas V13N2 – A importância da diversidade para a agricultura na Etiópia