Norman Uphoff, professor emérito da Universidade de Cornell, atuou como diretor do Instituto Internacional de Cornell para Alimentação, Agricultura e Desenvolvimento (CIIFAD, na sigla em inglês) entre 1990 e 2005. Durante esse período, conheceu e se familiarizou com o Sistema de Intensificação do Arroz (SIA) em Madagascar e logo percebeu que algo de anormal estava acontecendo, já que os agricultores vinham obtendo um rendimento médio de oito toneladas de arroz por hectare em vez das habituais duas toneladas. Ao reconhecer os enormes benefícios dessa prática, passou a trabalhar desde então para promover o teste, a avaliação e a compreensão do SIA.
Entrevista: Norman Uphoff por Jorge Chavez-Tafur
Desde que foi descrito na revista Leisa, há mais de dez anos, o número de agricultores de vários países que adotam o SIA cresceu extraordinariamente. Para Uphoff: O SIA é algo sem precedentes, pois poucas inovações resultaram em aumentos de produtividade de tal magnitude. Surpreende igualmente o fato de essa inovação ter se disseminado na escala em que se disseminou com tão pouco apoio e tamanha oposição.
POR QUE O SIA É TÃO ESPECIAL?
Mais do que produzir arroz, estamos falando de uma maneira diferente de trabalhar com os agricultores, abrangendo tanto a dimensão técnica quanto a social. Ambas são consideradas no SIA. O sistema não é uma tecnologia que pode ser disseminada na forma de um pacote. Ela é ao mesmo tempo um conjunto de ideias e experiências, um conjunto de relações e um conjunto de valores. Esse enfoque é muitas vezes difícil de transmitir, especialmente para agrônomos ou economistas que querem considerar o SIA como só isso ou não mais do que isso. Deve-se ter em mente que o objetivo inicial da Associação Tefy Saina, em Madagascar, não era plantar mais arroz, mas ajudar as famílias agricultoras a interpretar sua realidade para então desenvolver formas para melhorá-la. Embora o SIA tenha sido concebido para apoiar os agricultores a aumentarem suas produções de alimentos, esperava- se também apoiá-las a se libertarem de crenças infundadas ou de pressões sociais.
OS BENEFÍCIOS DESSA TECNOLOGIA ESTÃO SENDO RECONHECIDOS?
Infelizmente, ainda há resistência por parte de alguns setores. Alguns cientistas ainda geram controvérsias sobre os rendimentos máximos obtidos com o SIA para evitar ter que reconhecer os rendimentos médios muito superiores alcançados pelos agricultores. No entanto, parece que as coisas estão mudando. Existe agora, por exemplo, uma página sobre o SIA no site do Instituto Internacional de Pesquisa do Arroz.
MAS AINDA NÃO ESTARIAM FALTANDO EXPLICAÇÕES?
É verdade que ainda não compreendemos todos os processos ecológicos por trás do SIA. Mas até hoje já foram publicados mais de 300 artigos sobre o sistema e, portanto, já há muito conhecimento disponível e validado. Também tem sido surreendente saber que as ideais e práticas relacionadas ao SIA podem ser estendidas com êxito para o trigo, o milheto, a cana-de-açúcar, entre outras espécies cultivadas. Em Bihar, na Índia, os primeiros ensaios feitos pelos agricultores com inhame têm proporcionado rendimentos de 100 toneladas, quando geralmente costumavam obter de 20 a 30 toneladas. Mais incrível ainda é a constatação de que pesquisas em centros universitários haviam alcançado a produtividade máxima de 60 toneladas.
Algo ocorre que leva ao aumento na fotossíntese e da produção de carboidratos, o que explica tamanha elevação dos rendimentos das culturas. Esses resultados são tão surpreendentes que muita gente simplesmente não acredita ou aceita.
OS CIENTISTAS NÃO DEVERIAM ESTAR INTERESSADOS EM ENTENDER O QUE ESTARIA OCORRENDO?
Certamente. Eu gasto boa parte do meu tempo tentando estimular a participação de cientistas de várias disciplinas nesse tipo de pesquisa, mesmo que o fenômeno seja, para muitos, difícil de aceitar. Felizmente, um número cada vez maior de cientistas têm demonstrado interesse. Estamos começando a trabalhar com mais microbiologistas, o que é essencial, já que não vejo nenhuma outra maneira de entender os resulta- dos que estamos observando no campo sem prestar atenção à microbiologia. Nossas mentes estão acostumadas a pensar no macro, mas existem milhões, bilhões, trilhões de microrganismos no solo, nas plantas e mesmo em nossos próprios corpos. Estamos começando a compreender como os microrganismos são essenciais para a saúde e o crescimento humano. O mesmo se aplica para as plantas.
O que estamos percebendo é que a planta não é uma máquina a ser redesenhada e inteiramente controlada por nós, mas sim um sistema em simbiose com bilhões de outros organismos. O SIA está focado nas práticas agrícolas, lidando com as quantidades de sementes, o espaçamento, a água, o trabalho humano, etc. Ao mesmo tempo, trata-se de uma mudança de paradigma agronômico. Infelizmente, é muito mais difícil escrever sobre esse último aspecto, uma vez que ainda não sabemos o sufi- ciente sobre ele. Além disso, temos que nos deparar com a resistência por par- te de muitos agrônomos que não estão dispostos a questionar o que eles acre- ditam que já sabem.
HÁ OUTROS FATORES ENVOLVIDOS?
Pode ser que o SIA não esteja progredindo mais rápido porque não há interesses comerciais por trás dele, embora tenhamos visto o sistema sendo promovido por em- presas de processamento de grãos no Sri Lanka e na Índia (uma vez que o arroz do SIA tem menos grãos chochos e, portanto, possuem palha, além de não se quebrarem facilmente durante a limpeza). Na verdade, a adoção do SIA pode acarretar perdas para empresas que ganham a vida vendendo sementes. Levou algum tempo para que agências doadoras aceitassem promover o SIA. Talvez porque o sucesso dos projetos financiados muitas vezes é avaliado em função do dinheiro gasto. Como o SIA reduz a necessidade de capital, os projetos não eram compreendidos. Sem dúvida, o maior benefício do SIA é para os agricultores, pois o sistema lhes permite reduzir custos e se tornar mais autônomos em relação às em- presas de insumos. Enquanto cientista social, gosto de pensar que o aspecto mais interessante do SIA é a sua abordagem centrada nos e conduzida pelos agricultores. Às vezes o SIA é apresentado como uma receita, mas eu prefiro considerá-lo como um cardápio. Infelizmente, tem sido muito difícil mudar o enfoque dos programas de extensão, que teriam que deixar de promover o uso de insumos para incentivar a produção de conhecimentos locais. Muitos extensionistas foram treinados para empurrar agrotóxicos, sementes, fertilizantes e maquinário. O SIA, porém, não se baseia em insumos, mas em conhecimento. Para muitos, isso é difícil de ser aceito.
HOUVE ALGUMA MUDANÇA NA MANEIRA COMO OS PESQUISADORES TRABALHAM COM OS AGRICULTORES?
Eu gostaria de destacar o modelo triangular, desenvolvi- do por Merrill-Sands e Kaimowitz. Ele é muito diferente do modelo linear de desenvolvimento de tecnologias, em que os cientistas ficam encarregados de pensar, enquanto espera-se que os agricultores adotem o que o extensionista lhes disser. Pesquisadores, extensionistas e agricultores são mais eficazes quando posicionados em uma relação triangular, interagindo uns com os outros. Em tal modelo, extensionistas são facilitadores e catalisadores, e a comunicação vai e vem em todas as direções. Esse modelo triangular representa o que vemos nos campos de SIA. A inovação pode vir de qualquer um dos três atores. O SIA não é um processo conduzido apenas por agricultores, já que melhorias foram desenvolvidas por profissionais de extensão e pesquisadores e continuarão sendo. Esse modelo triangular nos ajuda a compreender melhor o que estamos observando no campo, o que nos faz recomendar interações cada vez mais fortes.
ESSAS INTERAÇÕES TAMBÉM SÃO FAVORECIDAS POR MILITANTES …
São pessoas que vêm dando a cara a tapa e desempenhando papéis muito importantes para o desenvolvimento e disseminação do SIA. São indivíduos diferentes entre si, com diferentes histórias, mas que compartilham um denominador comum: o interesse em trabalhar visando o benefício dos agricultores, dos consumidores e do meio ambiente. Nesse campo da ação voluntária, há que se destacar o papel dos agricultores que dedicam seu tempo e dinheiro para promover, defender e difundir o SIA. Eu estava convencido dos méritos do SIA desde o início de 2000, quando conheci e conversei com dois notáveis agricultores: Mey Som, do Camboja, e H.M. Premaratna, do Sri Lanka. Ambos haviam treinado milhares de agricultores por conta própria. O maior indicativo de que o SIA é válido para os agricultores vem do fato de que muitos deles estão dispostos a usar seus próprios recursos para treinar outros.
NÃO SERIA VOCÊ TAMBÉM UM MILITANTE?
Depois de três anos observando pequenos agricultores no entorno do Parque Nacional Ranomafana, em Madagascar, obtendo produtividades até quatro vezes superiores, em solos considerados por agrônomos americanos como os mais pobres que já haviam avaliado, percebi que precisava aprender mais francês para ler os estudos do padre Laulanie e entender mais de agronomia para poder me comunicar com os agrônomos sobre o que estávamos observando. Algo estava acontecendo, mesmo sem ser intencionalmente promovido por alguém. A mim coube tentar informar e mobilizar as pessoas, convidar as universidades para fazer pesquisas, contatar as agências doadoras e dar visibilidade ao SIA fora de Madagascar. Meu objetivo não era simplesmente promover o uso do SIA como tal. Era mais importante conseguir que seus métodos e resultados fossem avaliados, tanto por cientistas como por agricultores. Se gostassem dos resulta- dos, poderiam usá-los da forma que quisessem. Certamente, foi providencial eu estar vinculado à Universidade de Cornell, de gostar de escrever e editar e de poder viajar e conhecer profissionais de diversos países. Como os militantes que eu já mencionei, gosto de interagir com todos os tipos de pessoa, sejam agricultores, estudantes de doutorado, diretores de pesquisa ou formuladores de políticas. Sei que a minha franqueza nem sempre é apreciada e que meus argumentos e evidências parecem controversos aos olhos de muitos. Alguns dizem que sou muito apaixonado. Assim, aprendi que muitos cientistas não trabalham com paixão. Meu objetivo tem sido fazer com que o SIA seja avaliado e compreendido. Para isso, temos que estudar.
A OBSERVAÇÃO DO TRABALHO DOS AGRICULTORES FAZ PARTE DESSES ESTUDOS?
Certamente. Os agricultores cultivam arroz há milhares de anos. No entanto, não devemos assumir que tudo o que eles fazem é ideal. Nossa experiência com o SIA mostra que, por milhares de anos, os agricultores têm arado seus solos demais, têm inundado suas terras demais e têm plantado mudas demais, desperdiçando água e sementes e diminuindo os rendimentos. Milhões de agricultores poderiam ter percebido que as plantas de arroz nas partes elevadas dos seus campos, as que estão mais drenadas, cresciam melhor do que aquelas das partes mais baixas. Poderiam também dar-se conta de que é melhor usar menos sementes. Mas isso não ocorreu. Portanto, é necessário respeitar e valorizar o conhecimento dos agricultores, mas não podemos idealizá-lo ou aceitá-lo acriticamente, esquecendo de que pode haver lacunas a serem preenchidas com o aporte de conhecimento científico. Existem muitas razões que levam os agricultores a fazer opções de manejo que não são as ideais. Isso também ocorre com pesquisadores ou professores.
HÁ MAIS INTERCÂMBIO ENTRE OS AGRICULTORES QUANDO COMEÇAM A PRATICAR O SIA?
Esse é outro aspecto que devemos observar e, se possível, mensurar. Tanto no Camboja como no Mali, por exemplo, colegas verificaram que agricultores que praticavam o SIA ficaram mais interessados em partilhar seus resultados e trabalhar em conjunto, levando a maiores níveis de ação coletiva e de capital social. As evidências nesse sentido até o momento não foram registradas com rigor. Mas não descarto que essa relação de fato exista. Vimos também o surgimento de grupos de ajuda mútua, por exemplo, no estado de Bihar, na Índia, onde as mulheres que agora usam o SIA e o SIT (Sistema de intensificação do Trigo) estão cooperando umas com as outras para melhorar a qualidade de vida de suas famílias, inclusive exigindo que suas filhas possam ir para a escola.
O governo de Bihar foi sábio para trabalhar em conjunto com as ONGs locais, e os resultados são fantásticos, estendendo-se para além da agricultura e se traduzindo em benefícios sociais. As famílias estão tendo acesso ao crédito, há mais emprego local, a penosidade do trabalho das mulheres foi reduzida, os ecossistemas locais se tornaram mais saudáveis. O SIA tem, portanto, alimentado muitos outros processos além de aumentar a produção de arroz.
COMO VISLUMBRA O FUTURO DO SIA?
Em nossa primeira (e até agora única) conferência internacional sobre o SIA, realizada na China, em 2002, decidimos avançar por duas vias paralelas: pesquisa científica e atividades de extensão. Isso difere da habitual estratégia, em que a ciência é feita primeiro e os extensionistas apenas difundem o que quer que os cientistas recomendem. Já o SIA tem adotado a abordagem de andar sobre as duas pernas, embora a extensão tenha avançado mais rápido, enquanto a ciência só agora começa a se recuperar para chegar ao mesmo patamar. Gostaria de ver o SIA ser abordado por muitas disciplinas, não somente pela ciência do solo ou do melhoramento de plantas, mas também a economia, a sociologia, a comunicação, etc. Estamos conseguindo maior envolvimento do setor privado. Hoje existem entre 4 e 5 milhões de agricultores, a maioria na Ásia, utilizando algumas ou todas as práticas recomendadas do SIA. Mas é apenas uma questão de tempo para que esse número chegue a 10 ou 20 milhões e logo salte para 50, 100 milhões e mais.
Como os resultados continuam se disseminando, em breve será muito difícil sustentar qualquer oposição científica que reste, e mais e mais governos e doadores irão apoiar a disseminação desse conhecimento e dessas oportunidades.
Norman Uphoff
Universidade de Cornell
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http://sri.ciifad.cornell.edu
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Revista V10N1 – Sistema de Intensificação do Arroz uma prática sem precedentes