Esta edição da Revista Agriculturas aborda o tema do acesso aos mercados por parte de empreendimentos de base familiar e agroecológica. Apresenta iniciativas coletivas que, por meio de variadas estratégias, combinam a valorização econômica da agrobiodiversidade com abordagens mais amplas relacionadas ao desenvolvimento sustentável e à promoção de processos de inclusão social e de segurança alimentar e nutricional.
Por inúmeras razões e explicações distintas para cada situação, podemos afirmar que a participação das famílias agricultoras e de suas organizações nos mercados está muito aquém de seu potencial. Ao acompanharmos diferentes iniciativas de inserção da produção de base familiar nos mercados, mesmo aquelas de empreendimentos mais consolidados, é possível perceber a existência de algumas dificuldades comuns a todas. Dentre elas, salienta-se o enfrentamento ao processo de massificação do modelo de produção e consumo que favoreceu a enorme concentração de poder nas mãos de poucas corporações transnacionais que atuam nas áreas de insumos agrícolas, processamento e venda ao varejo.
Para fazer frente ao crescente poder econômico dessas corporações, esses empreendimentos de base familiar não têm encontrado o respaldo necessário no Estado, que tem se mostrado despreparado para responder às demandas da agricultura familiar, camponesa e dos povos e comunidades tradicionais, uma vez que não dispõe de instrumentos jurídicos, normativos, fiscais, tributários e sanitários que contemplem as especificidades desses setores.
Em geral, suas organizações se encontram desprovidas de equipe dedicada e capacitada para a gestão econômica, administrativa e financeira dos empreendimentos. Além disso, costumam se dedicar simultaneamente ao campo de ação política e à atividade comercial, o que muitas vezes compromete o desempenho econômico.
No Brasil, o tema da comercialização de produtos da agricultura familiar tem ganhado relevância nos últimos cinco anos. Em grande medida, esse fato se deve à recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), pelo Governo Federal, em 2003. Esse fórum permanente de debate, elaboração e articulação das diferentes ações, programas e políticas de segurança alimentar e nutricional permitiu qualificar a atuação do Estado, bem como as pautas de negociação dos movimentos sociais com o governo em torno dessa temática. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e, mais recentemente, a inclusão de produtos agroextrativistas ou da sociobiodiversidade na Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) têm sido instrumentos importantes para orientar a ação do Estado nesse campo. Representam grande importância estratégica nesse momento em que a crise mundial de alimentos se evidencia, já que podem responder em parte ao desafio de aumentar a disponibilidade de alimentos e de fortalecer os circuitos locais e regionais de abastecimento.
O artigo O mercado institucional como instrumento para o fortalecimento da agricultura familiar de base ecológica apresenta uma abordagem ampla da problemática da inserção qualificada e abrangente no mercado por parte da agricultura de base camponesa e familiar. Chama a atenção para a existência de duas lógicas distintas: uma que vê a globalização e o poder das transnacionais nos mercados como fatores irremediáveis, enquanto a outra acredita que é possível transformar as relações de produção e de consumo, tendo a Agroecologia como referencial orientador dessa mudança. O texto apresenta ainda o mercado institucional como meio para a construção de espaços alternativos de comercialização, em especial para alimentos ecológicos. A partir de um caso sistematizado na região de Pelotas (RS), ilustra e detalha o processo de construção do PAA, seus avanços e as inovações institucionais ocorridas no Estado com a sua implementação.
O artigo seguinte apresenta outra iniciativa no Rio Grande do Sul, entre muitas que estão em curso no Brasil, onde fica demonstrado como a gestão do PAA serviu como instrumento revitalizador dos mercados regionais. Seu autor explica como o programa foi capaz de promover o fortalecimento da Cooperativa Agropecuária dos Agricultores Familiares de Tenente Portela (Cooperfamiliar), em particular ao articular agricultores(as) familiares e indígenas associados à cooperativa com organizações de consumidores beneficiárias. Entre outros aspectos ressaltados da experiência, aborda-se o fato de que o PAA permitiu que as comunidades indígenas passassem de receptoras de cestas básicas para fornecedoras de alimentos para programas sociais do Estado. Desta forma, propiciou a inserção digna e respeitosa da comunidade indígena na sociedade local a partir do estabelecimento de relações sociais baseadas em uma percepção renovada, superando preconceitos e reconhecendo os indígenas como cidadãos integrados na economia local e regional.
Além disso, a entrega dessa produção a famílias em situação de insegurança alimentar e nutricional incentivou o aumento e a diversificação da produção, o fortalecimento de variados canais de comercialização local, a revitalização de agroindústrias familiares, a afirmação da Agroecologia como matriz tecnológica, a promoção de relações de gênero mais justas e a criação de um sistema de controle social, a partir da implantação de um Comitê Gestor Regional que fomenta o aprimoramento técnico e político das famílias e organizações envolvidas.
O artigo Trajetória e desafios da construção de mercados locais para a agricultura ecológica em Porto União (SC) e União da Vitória (PR) ressalta a articulação interinstitucional gerada com a implementação de feiras ecológicas nas sedes dos dois municípios. Pontua a importância do início do processo de organização a partir da produção das sementes crioulas e da publicidade do trabalho que estava em curso na região por meio da realização das feiras de sementes. Além de serem espaços de comercialização e de reprodução cultural, as feiras representam uma das escolas mais qualificadas para o aprendizado sobre comercialização. A relação direta com os consumidores propicia uma melhor compreensão sobre suas exigências, ao mesmo tempo em que favorece a construção de laços de fidelidade e de credibilidade sobre a qualidade ecológica dos alimentos comercializados, bem como a ampliação da consciência ambiental relacionada aos processos de produção e de consumo dos alimentos.
Por outro lado, a experiência relatada evidencia que muitas vezes as feiras não são capazes de escoar toda a produção das famílias agricultoras, sobretudo quando elas passam a produzir volumes maiores e mais diversificados. É neste sentido que os autores chamam a atenção para a necessidade de abertura de outros canais de comercialização.
O artigo sobre as feiras agroecológicas apoiadas pelo Projeto Dom Helder Câmara segue a mesma linha de argumentação. Essas feiras são promovidas por uma rede que envolve 50 organizações não-governamentais (ONGs) e cerca de 12 mil famílias agricultoras, de oito territórios rurais da região. Destaca-se nesse projeto o papel exercido pelas ONGs que prestam assessoria técnica pautada por uma metodologia que combina o enfoque agroecológico com processos de aprendizagem participativa em que se estabelecem relações horizontais entre o saber técnico e o saber popular que é criado e recriado a partir da experimentação prática.
Ao continuar na leitura da revista, percorremos o Circuito Sul de circulação de alimentos da Rede Ecovida de Agroecologia, projeto que articula núcleos da rede dos três estados do Sul do Brasil e de São Paulo para o intercâmbio de produtos agroecológicos com base nos princípios da economia solidária. Os grupos que integram o circuito criaram uma rede de estações-núcleo e subestações responsável pelo planejamento e monitoramento das atividades, bem como pela negociação dos preços praticados. Uma carta de princípios orienta procedimentos e define os valores éticos adotados na rede. Entre as idéias inovadoras apresentadas por essa experiência, destaca-se o emprego mínimo de recursos financeiros nas operações de comercialização realizadas entre as estações, sendo estes utiliza- dos apenas para cobrir as diferenças de valor monetário entre os produtos trocados.
O artigo que trata do mercado justo do café a partir de experiências desenvolvidas na América Central e no México apresenta uma importante reflexão sobre os canais de comercialização que vêm se estabelecendo mundialmente com a pretensa intenção de constituir relações justas e solidárias, a partir da valorização do público envolvido, da qualidade e da procedência geográfica do produto comercializado sob o rótulo do mercado justo. A grande questão levantada no texto refere-se ao fato de que a bandeira desse mercado vem sendo apropriada pelas grandes corporações transnacionais, nesse caso específico, pelas grandes tradings de comércio do café. Os autores defendem a visão de que os alimentos não podem ser tratados como mercadorias, ainda mais nos processos que surgiram para, em princípio, refutar as relações tradicionais de mercado. A constituição dos circuitos alternativos deve ser realizada por dinâmicas que assegurem autonomia às organizações sociais e que permitam estabelecer relações estratégicas e eqüitativas para a construção de um mundo melhor – ético, humano, democrático, ambientalmente sustentável e economicamente descentralizado.
Já o texto sobre o mercado justo do algodão agroecológico demonstra como foi possível estabelecer outra relação de mercado pautada pela economia solidária e orientada para romper com o modelo de produção de algodão implantado no Brasil a partir dos anos 1990, que excluiu a agricultura familiar do processo produtivo, seja no Nordeste, onde a experiência relatada vem sendo desenvolvida, seja no Paraná ou em São Paulo. A iniciativa apresentada revela que, mesmo sem o apoio da pesquisa pública, foi possível desenvolver um sistema de produção alternativo ao modelo insumista (de uso intensivo de insumos) do agronegócio, que só se reproduz com base na alta dependência de subsídios governamentais. Cabe salientar que, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), somente nos últimos cinco anos, a cultura do algodão carreou dos cofres do governo federal mais de R$ 1,38 bilhão para assegurar o escoamento da produção com base nos Preços Mínimos. Outro aspecto apresentado no artigo refere-se à liberalização dos transgênicos no Brasil. Os riscos de contaminação tornam-se ainda mais iminentes já que não foram definidas regras para o plantio do algodão transgênico, deixando altamente vulneráveis os produtores ecológicos e convencionais desse produto.
O conjunto das iniciativas aqui publicadas traduz, cada uma ao seu modo, estratégias e alternativas construídas pela experimentação e forjadas por um processo de conquistas, acertos e desacertos que permitiram acumular conhecimento técnico e empírico a partir da sua inserção no mercado.
Finalmente, identifica-se que a falta de arcabouço institucional apropriado que permita a articulação dos instrumentos de política agrícola – como crédito, seguro, assessoria técnica, formação e capacitação, comercialização e fortalecimento institucional – e seu ajuste às especificidades da agricultura familiar, dos assentados da reforma agrária e dos povos e comunidades tradicionais permanece como uma das principais dificuldades encontradas no âmbito do Estado para que experiências como as aqui relatadas se multipliquem e se expandam.
Sílvio Isopo Porto
Agrônomo, ocupa a diretoria de logística e gestão empresarial da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e coordena o PAA na Conab
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Revista V5N2 – Acesso a mercados: desafios e oportunidades