Cláudia Job Schimitt e Leonardo Alonso Guimarães
Este artigo busca refletir acerca dos limites e potencialidades do mercado institucional enquanto instrumento de fortalecimento da agricultura camponesa e familiar de base ecológica. Tem como referência a experiência desenvolvida pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, considerando tanto a sua implementação, em nível nacional, como sua operacionalização em um contexto regional específico, a metade sul do Rio Grande do Sul.
O LUGAR DOS MERCADOS NO FORTALECIMENTO DE UMA AGRICULTURA DE BASE ECOLÓGICA
A discussão acerca do lugar dos mercados no processo de fortalecimento da agricultura de base ecológica é marcada por inúmeras controvérsias. Ainda que talvez cor- rendo o risco de simplificar as diferentes posições, destacamos pelo menos duas principais correntes. Em um pólo, estão aqueles que percebem a globalização do sistema agroalimentar como um modelo que “veio para ficar” e acreditam na necessidade de se adaptar, da melhor maneira possível, às regras de um mercado de dimensões planetárias, altamente concentrado e onde os padrões de qualidade são crescentemente normatizados. Nesse sentido, a certificação (e, junto com ela, o chamado prêmio orgânico), a ênfase no acesso aos mercados de exportação e às prateleiras dos grandes supermercados e a regulação governamental como forma de garantir a identidade do produto orgânico, como vem ocorrendo no Brasil, são entendidos como único caminho capaz de assegurar a viabilidade econômica de uma agricultura ambientalmente sustentável.
Para os camponeses e agricultores familiares, resta como opção se ajustar às regras de um mercado cujos índices de crescimento (entre 15 e 20% ao ano) aumentam na mesma medida e rapidez com que ocorre o enfraquecimento da capacidade de influência dos agricultores e comunidades de consumidores frente ao poder cada vez maior das grandes empresas que atuam no comércio varejista. Em 2004, os supermercados já eram responsáveis por 40% das vendas de produtos orgânicos na Alemanha, 49% nos Estados Unidos, 80% na Argentina e na Inglaterra e 85% na Dinamarca (Scialabba, 2005). No Brasil, em 2001, as exportações absorviam 70% do volume total de produtos orgânicos certificados. Pesquisa realizada em 1999 junto a agricultores certificados como orgânicos do estado do Rio de Janeiro, mostrava, já naquele momento, que o grande setor varejista absorvia 73% do valor anual comercializado por esses produtores em frutas e olerícolas (Fonseca e Campos, 2008).
Entretanto, no outro extremo, encontram-se aqueles que defendem que é possível transformar as relações de produção, distribuição e consumo dominantes no atual sistema agroalimentar, incorporando, nesse redesenho, não apenas variáveis relacionadas à sustentabilidade ambiental dos sistemas produtivos, mas também valores éticos, sociais e culturais. Princípios como justiça social, soberania alimentar, solidariedade, autonomia, respeito à diversidade cultural, entre outros, e sua tradução prática do ponto de vista das relações sociais que permeiam a produção e o consumo, são afirmados como dimensões-chaves do processo de transição para uma agricultura de base agroecológica.
As feiras de produtos ecológicos, as cooperativas de consumo e a entrega direta de cestas de alimentos são alguns exemplos de iniciativas que buscam reduzir a distância entre produtores e consumidores, valorizando circuitos locais de comercialização e reforçando formas associativas e comunitárias de organização social. Configuram-se, nessa perspectiva, como formas de resistência frente a uma racionalidade de mercado que distancia cada vez mais a produção e comercialização de produtos agrícolas dos processos ecológicos e sociais que lhes dão sustentação em nível local.
É importante ter presente que as percepções em relação à forma como essas estratégias de resistência se articulam, ou não, com um movimento mais amplo de construção de alternativas econômicas emancipadoras em diferentes escalas – regional, nacional e global –variam bastante. É preciso lembrar, entretanto, que a prática muitas vezes aproxima aqueles que acreditam na integração competitiva da produção ecológica ao mercado global e os que defendem uma transformação mais radical na organização atual do sistema agroalimentar. Ao mesmo tempo, é nesse contexto que se revelam os inúmeros conflitos e tensionamentos presentes na construção de formas alternativas de produção e comercialização que buscam se contrapor ao modelo dominante.
As iniciativas de comercialização de produtos ecológicos fornecidos por agricultores familiares para o mercado institucional introduzem novos elementos no debate sobre o lugar dos mercados na transição para uma agricultura de base ecológica. Provocam também uma reflexão acerca do papel do Estado na reestruturação dos circuitos de produção, distribuição e consumo de alimentos com base em princípios de justiça social e sustentabilidade ambiental.
AGRICULTURA FAMILIAR E O MERCADO INSTITUCIONAL NO BRASIL
No Brasil, a comercialização de produtos da agricultura familiar por meio do mercado institucional é um fenômeno relativamente recente. As primeiras experiências dessa natureza foram localizadas e, muitas vezes, descontínuas no tempo, desenvolvidas por governos municipais e estaduais interessados em incentivar a agricultura familiar e a produção local de alimentos.
Ações desse tipo foram implantadas, antes de 2003, nos municípios de Belém (PA), Hulha Negra (RS), Rio Branco (AC), entre outros, bem como pelos governos estaduais do Rio Grande do Sul e do Amapá. Algumas delas já tinham como objetivo incentivar a produção e o abastecimento de produtos ecológicos, como, por exemplo, a experiência piloto de merenda ecológica desenvolvida pelo governo do estado do Rio Grande do Sul, durante a gestão de Olívio Dutra. Outras mantinham um foco mais centrado na produção local e/ou familiar.
A criação do PAA no âmbito das ações do Pro- grama Fome Zero trouxe uma série de inovações importantes nesse campo. Um primeiro elemento a ser destacado é o fato de que a Lei 10.696, que cria o PAA, autoriza a dispensa de licitação na aquisição de produtos da agricultura familiar. No texto da lei a dispensa é definida nos seguintes termos: (i) os produtos deverão ser adquiridos de agricultores familiares enquadrados no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); (ii) essas aquisições têm por finalidade “incentivar a agricultura familiar, compreendendo ações vinculadas à distribuição desses produtos a pessoas em situação de insegurança alimentar e à formação de estoques estratégicos”; (iii) para que haja a dispensa da licitação é necessário que os preços de aquisição não sejam superiores aos praticados nos mercados regionais. Abriu-se com isso uma exceção aos complexos procedimentos de aquisição estabelecidos pela Lei 8.666 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) que praticamente inviabilizava o acesso da grande maioria dos agricultores familiares aos mercados institucionais.
Outro aspecto importante na formulação do PAA é o fato de que a Lei 10.696 e seu decreto de regulamentação permitem que as aquisições sejam feitas com base em preços de referência que devem levar em conta “as diferenças regionais e a realidade da agricultura familiar”. Trata-se, aqui, de mais uma inovação, considerando que a Política de Garantia de Preços Mínimos, criada em 1945 e reestruturada na década de 1960, sempre utilizou mecanismos de aquisição de caráter universal, atendendo, oficialmente, ao conjunto dos produtores rurais, mas, na verdade, submetendo todos eles aos mesmos tipos de exigências na hora da comercialização. Por esse motivo, na grande maioria dos casos, esses instrumentos só conseguiam beneficiar médios e grandes produtores. Ao romper com essa tradição, o PAA dirige suas ações para a agricultura familiar, contemplando, sob tal designação, camponeses, agricultores familiares, assentados e acampados da reforma agrária, extrativistas, quilombolas, pescadores artesanais, atingidos por barragens e comunidades indígenas.
O programa começou trabalhando com um limite de R$ 2,5 mil ao ano por família. Em 2006 esse limite foi ampliado para R$ 3,5 mil, sendo que o Programa do Leite, um mecanismo específico do PAA destinado à compra e distribuição de leite nos estados do Nordeste, norte de Minas Gerais e do Espírito Santo, adota esse valor para o período de um semestre.
Os produtos comprados pelo governo, por meio de diferentes mecanismos, são distribuídos a programas sociais, de caráter governamental ou não-governamental. Podem ainda ser destinados à formação de estoques públicos, sendo posteriormente repassados a bancos de alimentos, doados a instituições assistenciais, distribuídos em cestas de alimentos a grupos sociais em situação de risco alimentar ou vendidos a pequenos criadores e pequenas agroindústrias. Parte desses produtos é distribuída, também, para escolas, como um complemento ao atendimento que já é prestado aos estudantes por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O excedente, que não consegue ser encaminhado para os programas sociais, é comercializado pelo governo em leilões públicos.
No período entre 2003 e 2005, foram investidos por meio do PAA aproximadamente R$ 735 milhões, atendendo a um universo de 240 mil famílias de agricultores familiares (atuando como fornecedores), em 25 estados da federação, e mais de 7 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar. Somente no ano de 2006, por meio do mecanismo de compra com doação simultânea, foram aplicados R$ 474,85 milhões na compra de 421.525 toneladas de alimentos produzidos por 143.011 famílias de agricultores familiares, beneficiando 10,7 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar.
Em que pese o grande alcance social e geográfico já obtido pelo programa, as organizações da sociedade civil e o próprio Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) têm chamado atenção que existe uma grande demanda ainda não atendida por conta da insuficiência dos recursos alocados a esse fim pelo governo federal. De fato, os movimentos sociais têm reivindicado que, para responder a essa demanda reprimida, os recursos do programa deveriam girar em torno de oitocentos milhões a um bilhão de reais por ano.
A recente publicação do Decreto 6.447/2008, que autoriza a dispensa de licitação para a compra de produtos agropecuários com recursos do PNAE, representou um importante avanço. Essa medida, que já vinha sendo reivindicada há vários anos por organizações da sociedade civil, abre perspectivas efetivas para que agricultores familiares e suas organizações econômicas rompam com a quase exclusividade das empresas privadas no acesso ao mercado da merenda escolar que, em 2007, movimentou R$ 1,6 bilhões.
O PAA E O ESTÍMULO À AGRICULTURA DE BASE ECOLÓGICA
Ainda que o PAA tenha como objetivo central a aquisição de produtos da agricultura familiar e não necessariamente de produtos ecológicos, o formato adotado pelo programa, sobretudo no caso de alguns de seus mecanismos, como a compra com doação simultânea, tem estimula- do de forma bastante positiva as iniciativas locais de produção baseadas nos princípios da Agroecologia.
Um primeiro aspecto a ser ressaltado nesse sentido é que as normas do programa asseguram que os produtos ecológicos sejam adquiridos com um acréscimo de até 30% sobre os preços de referência. Mas esse estímulo não seria tão eficaz se a ele não fossem combinados outros elementos igualmente importantes para que processos locais de transição agroecológica fossem estimulados.
Um desses elementos combinados vem do fato de o programa viabilizar a comercialização de grande diversidade de produtos, bem como a estruturação de circuitos locais e regionais de distribuição de alimentos que anterior- mente não existiam. A tabela 1 apresenta algumas categorias dos produtos adquiridos por meio do mecanismo CPR Doação. Uma análise mais detalhada das informações disponíveis permite observar que a listagem de produtos adquiri- dos é ainda maior já que, em alguns casos, uma única categoria, por exemplo, sucos, abrange na prática um conjunto ainda mais diversificado de produtos, ou seja, vários tipos de sucos feitos com diferentes espécies de frutas.
É importante observar, no entanto, que esse fator de estímulo à diversidade se torna extremamente restrito em alguns outros mecanismos do programa. A modalidade Incentivo à Produção e ao Consumo do Leite, por exemplo, concentra suas ações unicamente na distribuição de leite de vaca e de cabra, por meio de convênios estabelecidos pelo MDS com governos estaduais nos estados do Nordeste e em Minas Gerais. No ano de 2006 esse mecanismo absorveu aproximadamente 50% dos recursos investidos pelo MDS no PAA.
A compra e doação de sementes de variedades crioulas, tradicionais ou localmente adaptadas, bem como de variedades não-híbridas, é outro mecanismo do programa que vem fortalecendo a perspectiva agroecológica. As sementes são produzidas por agricultores familiares, adquiridas por meio do PAA e distribuídas a outros agricultores como forma de incentivar iniciativas locais de resgate, conservação e uso da agrobiodiversidade, assim como fortalecer sistemas locais de produção e abastecimento de sementes. Na Paraíba essas aquisições apoiaram, em 2006, uma rede estadual de 228 bancos de sementes comunitários que integrava cerca de 7 mil famílias de agricultores. Por intermédio desse sistema, foram distribuídas diferentes variedades de milho e feijão, além de sementes de fava, gergelim, sorgo e girassol. Essas aquisições se repetiram por vários anos sucessivos, fortalecendo a capacidade de auto-abastecimento dos bancos de sementes (Cordeiro, 2007).
Por fim, como fica evidente no caso descrito a seguir, o programa tem contribuído para fortalecer a construção de redes de produção e consumo que envolvem um amplo leque de organizações sociais, e cujo foco não se reduz ao acesso aos mercados já que incorporam também uma série de objetivos relacionados à promoção da segurança alimentar e nutricional.
PROMOVENDO A DIVERSIDADE NAS REDES DA AGROECOLOGIA NA MICRORREGIÃO DE PELOTAS-RS
A microrregião de Pelotas, onde se encontra a maior concentração de agricultores familiares na metade sul do Rio Grande do Sul, compreende, além de Pelotas, outros nove pequenos municípios situados no seu entorno.
Em 2001, antes mesmo da criação do PAA, organizações de agricultores familiares da região, assessora- das pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa), já estavam mobilizadas no sentido de garantir o acesso dos agricultores ao mercado institucional, tendo implementado uma experiência piloto de merenda ecológica nos municípios de Pelotas, Canguçu e São Lourenço. Existiam também na região iniciativas de comercialização de produtos ecológicos em feiras, uma cooperativa de consumidores e outros circuitos mercantis.
A criação do PAA ajudou a estruturar uma rede de produção e distribuição de alimentos ecológicos e convencionais para os mercados institucionais. Entre o final de 2003 e 2005 a rede chegou a articular 16 organizações, incluindo associações, cooperativas e grupos informais. Duas delas (a Coopar e a Unaic) assumiram-se, em nome da rede, como proponentes formais de projetos de Compra Antecipada Especial (Doação Simultânea). O Capa prestou assistência técnica às atividades de produção e processamento de produtos eco- lógicos, apoiou a estruturação de uma central de informações responsável pelo monitoramento das entregas e assessorou a gestão administrativa dos projetos.
Nessa primeira fase o trabalho envolveu cerca de 800 famílias de produtores do universo de 3.600 famílias ligadas às organizações da rede. Os consumidores beneficiados, todos eles vinculados a escolas e programas sociais em execução em Pelotas, foram identificados por meio do projeto Segurança Alimentar: Alimentando a Cidadania, implementado pela prefeitura municipal. Até dezembro de 2004, foram atendidas por essas ações 25 escolas de educação infantil (com crianças de zero a seis anos), seis unidades assistenciais e 31 comunidades religiosas, ligadas às igrejas Católica, Luterana e Anglicana. O atendimento feito pelas escolas e unidades assistenciais consistiu em oferecer refeições diárias, servidas a cerca de 2 mil crianças, adolescentes e idosos. No caso das comunidades religiosas, o trabalho envolveu a preparação de refeições (sopão, feijão ou arroz carreteiro) e a distribuição semanal de sacolas de alimentos para aproximadamente 2,5 mil famílias. Grupos comunitários ligados às diferentes igrejas ficaram responsáveis pela seleção das famílias beneficiadas, pela composição das sacolas, pela distribuição dos alimentos e pelo acompanhamento do andamento do projeto, sendo as refeições preparadas por cozinheiras voluntárias da própria comunidade. A prefeitura de Pelotas implantou ainda uma central de distribuição dos alimentos, que ficou responsável pela armazenagem, acompanhamento da qualidade dos produtos e distribuição. Durante o primeiro ano de execução do projeto, foram distribuídas 1,2 mil toneladas de alimentos, sendo que 70% destes foram produzidos por agricultores ecológicos ou em transição agroecológica.
Uma segunda fase da rede iniciou-se em 2005. As mudanças no contexto político-administrativo ocorridas após as eleições municipais levaram a um redesenho dos fluxos de distribuição existentes, com o enfraquecimento da atuação de alguns parceiros da rede, como a prefeitura de Pelotas e, por outro lado, o surgimento de novos, como a prefeitura de São Lourenço. Além desse fator, a própria evolução da experiência contribuiu para que a rede se desafiasse a ampliar e diversificar sua produção ao nível das unidades produtivas, a incorporar novas famílias de produtores e a construir novas parcerias envolvendo prefeituras, entidades assistenciais e comunidades em situação de insegurança alimentar de outros municípios. Com isso, os mercados institucionais do município de Pelotas deixaram de ser os únicos consumidores dos produtos distribuídos pelo programa e redes de distribuição de produtos foram organizadas também nos municípios de Canguçu e São Lourenço.
Oito novas organizações de agricultores passaram também a assumir-se como proponentes dos projetos do PAA por meio da compra com doação simultânea e de outros mecanismos do programa como a Compra Antecipada Especial com Formação de Estoque e a Compra Direta.
Esforços importantes no sentido de qualificar o acesso das famílias aos alimentos distribuídos foram realizados nessa segunda fase. No município de Canguçu, estruturou-se um grupo de acompanhamento das ações do programa, envolvendo as organizações dos produtores, as entidades beneficiadas pela distribuição dos produtos, o poder público municipal, além de outras organizações. Em Pelotas, como resultado de um diagnóstico participativo realizado com apoio da Conab e com o envolvimento das comunidades religiosas e entidades assistenciais, organizou-se também um grupo responsável por avaliar periodicamente as atividades do PAA, com participação das organizações de produtores e entidades assistenciais com atuação junto às populações em situação de insegurança alimentar. Buscou-se, com isso, superar problemas relaciona- dos à qualidade dos alimentos e à regularidade de sua oferta, bem como questões relacionadas à distribuição às famílias beneficiadas.
Cumpre ressaltar que a presença do produto ecológico nas aquisições do PAA na região é bastante expressiva. A análise dos projetos desenvolvidos entre 2003 até meados de 2007 identificou a comercialização de uma “cesta completa” composta de 23 diferentes produtos atestados como ecológicos pelo Capa. Entretanto, há projetos que trabalham com base em uma complementaridade entre produtos ecológicos e produtos convencionais. Nesse período, foram adquiridos e distribuídos 7,7 milhões de reais em produtos na microrregião, beneficiando 3.166 famílias. Se considerado o conjunto dos mecanismos do PAA, o valor total das aquisições feitas através do mercado institucional sobe para aproximadamente R$ 25,7 milhões, com algumas operações sediadas em Pelotas, mas abrangendo um universo um pouco mais amplo de municípios, inclusive de fora da região.
AS LIÇÕES DA PRÁTICA
A experiência de comercialização de alimentos ecológicos e convencionais por meio do PAA vivenciada por agricultores familiares, assentados, pescadores artesanais e quilombolas da microrregião de Pelotas reúne alguns elementos importantes para uma reflexão sobre o lugar dos mercados, mais especificamente do mercado institucional, no fortalecimento da agricultura familiar de base ecológica.
O ingresso nos mercados institucionais, particularmente na compra com doação simultânea, promoveu o acesso dos produtores a um mercado próximo, capaz de absorver grande diversidade de produtos e de se ajustar, pelo menos em certa medida, às variações sazonais. Na prática, a grande variedade de produtos presente nos cardápios das escolas, entidades assistenciais e demais programas sociais favorece a diversificação dos sistemas produtivos da agricultura familiar, proporcionando também a valorização de gêneros muitas vezes negligenciados nos mercados convencionais. Dois exemplos ajudam a ilustrar essa constatação.
Até a década de 1970, a batatinha era um importante produto comercial em São Lourenço do Sul, sendo exportada, inclusive, para a região Sudeste. Nas últimas décadas, o cultivo e a comercialização entraram em declínio. A partir da oportunidade criada pelo PAA, a produção de batata ecológica foi novamente estimulada, o que permitiu que os agricultores comercializassem suas produções tanto para os mercados institucionais locais quanto para compradores de outros estados.
O PAA também possibilitou que pescadores artesanais comercializassem algumas espécies de peixe que não são bem aceitas no mercado, embora sejam nutritivas e de grande importância para o autoconsumo das famílias pescadoras. Além disso, algumas dessas espécies são justamente aquelas que estão menos ameaçadas pela sobrepesca e que podem ser capturadas com equipamentos muito simples em pequenas embarcações que navegam próximo às margens da Lagoa dos Patos. O acesso aos mercados institucionais permitiu, portanto, que mesmo os pescadores menos capitalizados pudessem comercializar sua produção.
É importante frisar que o ajuste entre a oferta e a demanda de alimentos nos projetos do PAA é feito mediante o acerto entre as organizações dos produtores e as instituições receptoras, diálogo este que se torna necessário ainda na fase de elaboração da proposta. Existe, portanto, uma margem de manobra para a adaptação dos cardápios à sazonalidade da produção agrícola, bem como para a introdução de produtos regionais na dieta dos consumidores, o que não significa que o pólo do consumo não exija uma oferta permanente, ao longo do ano, de determinados alimentos. O atendimento a essa demanda acaba sendo nego- ciado e administrado de diferentes formas. O processamento de alguns produtos, como doces e sucos de frutas, por exemplo, funciona como um instrumento de ajuste da oferta de produtos às variações sazonais da produção agrícola.
Por fim, é importante lembrar que a garantia de comercialização, oferecida pelo programa, serve de estímulo para que os agricultores cultivem essa diversidade, tanto para a aquisição por meio do PAA e de outros mercados como para a alimentação da família. Vale ressaltar ainda que muitas organizações que acessam o PAA na microrregião de Pelotas participam do Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco, implementado pelo MDA, o que demonstra todo um esforço, por parte delas, na busca de instrumentos capazes de potencializar a transição para uma agricultura familiar de base ecológica em uma região fortemente marcada pela presença da agroindústria do fumo e, portanto, pelo intenso uso de agrotóxicos.
Outro elemento a ser ressaltado é o papel desempenhado pelas redes de organizações sociais que são criadas e/ou fortalecidas no processo de construção dos mercados institucionais. O trabalho em rede é fundamental para que os agricultores familiares, pescadores artesanais, quilombolas e demais grupos envolvidos possam acessar o PAA, explorando complementaridades, não apenas entre os diferentes produtos, mas também no que se refere à infra-estrutura disponível para processamento e comercialização. A estrutura de transporte mobilizada por meio da rede, por exemplo, propiciou que os quilombolas comercializassem a sua produção. São também as redes, contando com a parceria do poder público municipal, assim como com um aporte significativo de trabalho voluntário, que possibilitam que os produtos, tanto os convencionais quanto os ecológicos, cheguem até as populações em situação de insegurança alimentar. Rompe-se, com isso, o paradigma de que a comercialização desses produtos só é viável quando dirigida a um mercado de alto poder aquisitivo.
É claro que os desafios presentes na construção de um mercado institucional para os produtos da agricultura familiar não podem ser esquecidos. Uma série de limitações operacionais são enfrentadas pelos órgãos governamentais na implementação do PAA, entre elas atrasos na liberação dos recursos, problemas de acesso por parte dos agricultores à documentação exigida e falta de convergência entre diferentes instrumentos de política pública que poderiam dar suporte às ações do programa. Existem também fragilidades organizativas e de gestão a serem superadas pelas redes e organizações envolvidas localmente na construção do trabalho, tais como melhor acompanhamento das entregas, qualificação das formas de acesso dos beneficiários aos alimentos e fortalecimento de sua atuação em outros circuitos de comercialização de forma a minimizar a dependência em relação ao mercado institucional.
Mas o reconhecimento das dificuldades existentes não deve ofuscar o mérito dos agricultores familiares de se organizarem para ingressar no mercado institucional. Trata-se de um avanço importante na construção de estratégias de acesso a mercados por parte desses produtores, impulsionando, inclusive, a criação de mecanismos de aquisição de produtos e de regulação de preços voltados especificamente para a agricultura familiar. As experiências desenvolvidas pelo PAA mostram também que essas estratégias podem ser direcionadas no sentido de potencializar processos de transição para uma agricultura de base ecológica, reforçando outras iniciativas de comercialização já existentes, como as feiras, os pontos de oferta e as cooperativas de consumo.
As iniciativas em andamento indicam, finalmente, que é possível mobilizar o poder regulador e de compra do Estado na construção de novos circuitos de comercialização, com base em princípios de justiça social e sustentabilidade ambiental. A experiência acumulada pelas diferentes redes, hoje engajadas em iniciativas concretas de acesso ao mercado institucional, bem como seu amadurecimento, traduzido na elaboração de propostas tanto de organização como de políticas públicas, são ingredientes fundamentais para que as compras governamentais possam se consolidar, de fato, como uma ferra- menta capaz de potencializar formas alternativas de produção e consumo de alimentos. Entretanto, devemos ter em mente que a capacidade de o mercado institucional incorporar princípios éticos, ecológicos e de valorização cultural às suas dinâmicas de funcionamento dependerá, em grande medida, da ação organizada tanto dos produtores familiares como das entidades com atuação junto aos consumidores desses produtos.
Cláudia Job Schimitt
secretária executiva da Articulação Nacional de Agroecologia, doutora em sociologia
Leonardo Alonso Guimarães
engenheiro agrônomo, especialista em agroecologia e desenvolvimento sustentável pela Universidade Federal de Santa Catarina
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Revista V5N2 – O mercado institucional como instrumento para o fortalecimento da agricultura familiar de base ecológica