Felipe Jalfim, Espedito Rufino, Fábio Santiago e Mª Sarah C. Vidal
A agricultura familiar da região semi-árida brasileira enfrenta desafios relacionados à segurança hídrica, à segurança alimentar e de natureza sociocultural, especialmente em função da necessidade de rompimento com o histórico caráter assistencialista e clientelista das políticas públicas. Desafios de grande monta também existem no que tange ao acesso aos mercados, na medida em que os obstáculos à comercialização mostram-se como poderosos gargalos para a sua viabilidade econômica.
Apresenta-se neste artigo a experiência de enfrentamento dessa questão a partir da valorização de mercados locais de pequenas cidades por meio da constituição de feiras agroecológicas. A experiência vem se desenvolvendo no âmbito do Projeto Dom Helder Câmara, uma iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (Fida), que tem por objetivo apoiar ações referenciais de desenvolvimento humano sustentável com foco na agricultura familiar em comunidades rurais e áreas de reforma agrária no semi-árido nordestino. O projeto articula atualmente uma ampla rede de parcerias com movimentos sociais e sindicais dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e mais de 50 ONGs que assessoram diretamente cerca de 12 mil famílias em oito territórios rurais da região.
ESTRATÉGIAS RUMO A MUDANÇAS
A experiência se orienta para promover processos que levem à conversão agroecológica dos agroecossistemas de gestão familiar, integrando-os a canais curtos de comercialização, especialmente as feiras agroecológicas. Tem como linha estratégica a geração de referências que subsidiem transformações mais amplas nos sistemas de produção tradicionais e de acesso a mercados da agricultura familiar da região. Nessa perspectiva, o mercado agroecológico não é percebido como um nicho. Pelo contrário, é concebido como um caminho possível para o desenvolvimento de processos de produção, comercialização e consumo de alimentos em bases socioeconômicas e ecológicas sustentáveis (Montiel, 2004).
Para colocar em prática essa estratégia, o Projeto Dom Helder vem estimulando e apoiando uma ação coordenada de assessoria técnica, executada por ONGs e movimentos sindicais e sociais presentes em cada território rural de sua área de atuação direta. A metodologia de assessoria pauta-se pela combinação do enfoque agroecológico com processos de aprendizagem baseados na geração participativa de conhecimentos e compreende planejamento participativo, formação de grupos de interesse, experimentações participativas, acesso a fundos de investimento social e produtivo e intercâmbio entre agricultores(as). Essa abordagem de trabalho, aliada ao arranjo territorial de assessoria técnica, vem possibilitando transformações no estado de segurança hídrica e alimentar, bem como na organização social das áreas de assentamentos e comunidades rurais.
Para concretizar a ocupação de mercados locais de forma sustentável foi fundamental o desenvolvimento de uma metodologia participativa de planejamento municipal e territorial orientada à implantação das feiras agroecológicas. Resumidamente, essa metodologia consiste nos seguintes passos:
a) mapeamento de famílias, grupos produtivos ou comunidades/assentamentos, envolvidos ou não com o Projeto Dom Helder, com interesse e condições básicas de estrutura produtiva, organizacional e conhecimento que lhes permita uma produção com certa freqüência, diversidade, volume e qualidade ao longo do ano, respeitando a sazonalidade;
b) motivação das famílias e grupos produtivos para o tema da comercialização direta a consumidores(as) via feiras agroecológicas;
c) mobilização da sociedade e instituições públicas locais visando ao fortalecimento dos laços de coesão social e política entre as famílias e diversos atores locais interessados em apoiar a implementação de uma feira agroecológica;
d) realização de oficina com as famílias e diversos atores engajados na proposta objetivando elaborar um projeto básico de estruturação material, gestão, comunicação (enfocando a importância dos valores cultural, econômico, social e ambiental dos produtos agroecológicos da agricultura familiar) e publicidade (criação de identidade visual e peças publicitárias para divulgação das feiras);
e) realização de oficinas voltadas para o debate sobre a administração da feira e para planejar o equilíbrio entre oferta e demanda da produção, de modo a garantir diversidade, freqüência, volume e qualidade de alimentos disponíveis na feira ao longo do ano (ver Figura);
f) instalação da feira agroecológica; e
g) realização mensal do Dia de Aprendizagem, com foco no aprimoramento técnico para a produção agroecológica e gerenciamento da feira, envolvendo todos(as) os(as) produtores(as).
OS PRIMEIROS FRUTOS
Entre 2002 e 2008, foram implantadas onze novas feiras agroecológicas, enquanto nove que já existiam por iniciativa de ONGs parceiras foram fortalecidas. No total, 477 famílias produtoras comercializam seus produtos nessas feiras, o que tem permitido a agregação de R$ 40,00 a R$ 120,00 por semana às suas rendas. Segundo a avaliação das famílias envolvidas, esses valores são bastante significativos, uma vez que a feira não é a única atividade a que se dedicam. Esse acréscimo nas rendas também tem criado a possibilidade de (re)investimento na estrutura produtiva de suas propriedades.
Vale ressaltar ainda que a maior parte das feiras tem gerado um ciclo virtuoso tanto para os(as) agricultores(as) quanto para os(as) consumidores(as). Pelo lado dos(as) agricultores(as) feirantes, verificam-se transformações positivas nos agroecossistemas. Nesse sentido, percebe-se que, além de uma maior diversificação na produção de sequeiro, há um melhor aproveitamento de tipos de fontes de água que antes eram pouco e mal utilizados para a irrigação em pequena escala, como as fontes de água dos poços amazonas. Há também um olhar mais atento para o aproveitamento de alimentos in natura ou beneficiados que até então não eram valorizados enquanto fontes de renda, como as frutas de época, a exemplo de mangas, goiabas e umbus, produzidas nos baixios e na vegetação nativa. Além disso, a diversificação produtiva tem tido repercussões muito positivas sobre o padrão alimentar das famílias feirantes.
Pelo lado dos(as) consumidores(as), verifica-se um rápido e constante aumento do número de adeptos à alimentação de base agroecológica. Outro aspecto importante é a aproximação que estabelecem com os(as) feirantes, que sempre convidam seus clientes para visitar suas propriedades e conhecer in loco os processos desenvolvidos desde o plantio até a colheita. Conseqüentemente, a relação entre consumidores(as) e feirantes vai além do atendimento de suas necessidades individuais e imediatas. Observa-se, por exemplo, que muitos(as) consumidores(as) já se colocam como defensores(as) incondicionais da feira agroecológica, ingressando nas campanhas de esclarecimento da população local acerca dos benefícios que a produção e comercialização direta oferecem para a economia, o meio ambiente do seu município e para a manutenção da saúde das pessoas.
DESAFIOS PARA O FUTURO
Alguns desafios se apresentam para a consolidação das feiras agroecológicas existentes e para a implementação de novas, entre eles, a ampliação dos adeptos de alimentos agroecológicos. Esse aumento de consumidores será reflexo do fortalecimento de uma consciência crítica que resista aos apelos da mídia, em grande parte atrelada ao poderio econômico do modelo agroalimentar globalizado. Além disso, como conseqüência, reduzirá a progressiva dependência da população urbana por alimentos prontos ou semi-prontos. Outro grande desafio a ser superado é a realização de revisões no aparato legal que regulamenta as certificações impostas por tal modelo e que, via de regra, marginaliza a agricultura familiar.
Como oportunidades a serem melhor exploradas, o Projeto Dom Helder e seus parceiros visualizam a possibilidade de estruturação de redes territoriais de feiras agroecológicas como forma de apropriação e domínio organizacional para o acesso a diversos mercados. Para tanto, torna-se fundamental dar continuidade ao emprego de abordagens metodológicas que privilegiem a plena participação dos(as) agricultores(as) no processo. Outra oportunidade a ser considerada refere-se à implementação de sistemas de certificação participativa dos produtos destinados às feiras agroecológicas que permitam a um só tempo criar ambientes favoráveis ao aprendizado coletivo e garantir a qualidade dos produtos comercializados.
Felipe Jalfim
veterinário e Mestre em Agroecologia
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Espedito Rufino
economista e Doutor em Economia do desenvolvimento
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Fábio Santiago
engenheiro agrônomo, especialista e Mestre em Solos
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Mª Sarah C. Vidal
engenheira agrônoma e Mestra em extensão rural e desenvolvimento local
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Referência Bibliográfica
MONTIEL, M. S. O contexto socioeconômico da agricultura ecológica: a evolução dos sistemas agroalimentares. Universidade de Sevilha, 2004.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N2 – Promovendo feiras agroecológicas no semiárido brasileiro: a experiência do Projeto Dom Helder Câmara