Eric Holt-Giménez, Ian Bailey e Devon Sampson
O mercado justo do café tem experimentado uma recente e extraordinária expansão no plano internacional, além de uma leve recuperação do preço do produto. Por outro lado, tem sido alvo de crescentes críticas. Grupos de estudantes, movimentos que lutam por justiça social e mesmo alguns torrefadores que atuam nesse mercado vêm questionando, ainda que por razões distintas, o caráter justo, bem como o futuro desse comércio. Organizações de agricultores, como a Via Campesina, desafiam o movimento do comércio justo a implementar e lutar politicamente por mudanças estruturais nos mercados. Muitos consumidores e ativistas desse movimento também se sentem incomodados com o fato de os produtos certificados como justos estarem sendo vendidos por meio de corporações multinacionais que adotam práticas injustas de trabalho e se valem do poder de monopólio que exercem nos mercados.
A Organização Internacional de Certificação de Comércio Justo (Fair Trade Labelling Organization International – FLO) e outros organismos certificadores vêm disseminando a idéia de que o chamado mercado justo deve assumir a hegemonia no campo da comercialização. No entanto, é justamente essa a principal razão das críticas mais recentes. Para os maiores compradores de café, o mercado justo representa apenas uma pequena porcentagem de suas compras. Para essas companhias, esse mercado não é um movimento social ou um comércio ético, mas simplesmente uma oportunidade de marketing e um nicho lucrativo. Um produto vinculado à noção de mercado justo faz com que a corporação pareça socialmente responsável, mesmo que ela continue a comprar a maior parte de sua mercadoria no mercado convencional. Essa situação faz com que muitos atores do mercado justo questionem o que significa a própria noção de justiça nesse comércio.
O objetivo do comércio justo é auxiliar o maior número possível de camponeses a vender a maior quantidade possível de café? É transformar as estruturas historicamente injustas do mercado do café? Será o mercado um instrumento para mudanças sociais? Serão os movimentos sociais as forças para transformá-lo? Afinal, é possível que esse mercado venha a se tornar uma forma bem mais ampla de comercialização para os camponeses tendo como intermediárias as mesmas corporações que foram as principais responsáveis pela crise do mercado internacional do café? Essas são questões que estão no cerne da crescente discordância entre defensores do comércio justo.
MUDANÇAS SOCIAIS?
Ainda que o valor diferenciado do café comercializado pela via do mercado justo tenha proporcionado uma importante segurança durante a pior das crises do produto, pesquisas recentes questionam muitas das afirmações feitas por certificadores e corporações varejistas. Em estudo sobre famílias e comunidades produtoras de café do México e da América Central, por exemplo, pesquisadores da Rede Comunitária de Agroecologia (CAN, sigla em inglês) não identificaram diferenças significativas na possibilidade de enviar as crianças à escola ou no nível da segurança alimentar entre famílias agricultoras ligadas ou não ao mercado justo. O estudo também não encontrou evidências de que a certificação para o mercado justo, por si só, tenha empoderado os agricultores para que saíssem da pobreza por seus próprios meios. Ao contrário, registrou que a cooperativa que aparentemente mais se beneficiava tinha uma relação direta com um comprador norte-americano que comprava anualmente todo o café por um preço acima daquele mínimo recebido pelos agricultores que vendiam sua produção no mercado justo.
Estudos também sugerem que os êxitos obtidos por meio do mercado justo se devem tanto aos esforços de organização local dos agricultores quanto à certificação. Pelo menos parece haver uma relação mutuamente benéfica entre os valores mais elevados de venda e o amplo trabalho social e político realizado pelos movimentos camponeses. Nessas circunstâncias, é difícil imaginar que o mercado justo consiga realmente se aprimorar sem estar apoiado nas históricas lutas pela reforma agrária, pelas organizações de cooperativas e pelos direitos das comunidades locais. Contudo, nenhum desses aspectos é destacado no marketing corporativo do mercado justo, onde as declarações sobre seu desenvolvi- mento são politicamente pasteurizadas para o consumo de massa. No máximo enfatiza-se a cooperação entre os camponeses, mas não a sua luta.
RENDA MÍNIMA OU RENDA JUSTA?
Em dezembro de 2006, a Associação de Cooperativas dos Pequenos Produtores de Café da Nicarágua (Cafenica) e o Órgão Coordenador dos Pequenos Produtores do Comércio Justo na América Latina e Caribe (Clac) submeteram um relatório à FLO demandando um aumento de preço de R$ 0,55 por quilo de café. Alegando falta de informações, a FLO inicialmente negou a solicitação e adiou as conversações. Depois da pressão de organizações de agricultores e de grupos de consumidores, a FLO concordou com um aumento equivalente a um terço da quantia reivindicada.
O relatório do Clac e outros estudos de impacto mostram algumas desvantagens da certificação do mercado justo e seus mecanismos. O preço mínimo nesse mercado funcionou como um salva-vidas durante a crise do café. Porém, ele nunca esteve atrelado aos custos de produção ou de vida dos produtores, sendo, atualmente, cada vez menos efetivo em assegurar benefícios sociais. Alguns estudos indicam que os agricultores estão inclusive perdendo dinheiro com o mercado justo – eles só perdem menos do que os produtores convencionais. Além disso, ao buscar se tornar uma forma bem mais disseminada de comercialização, o mercado justo acaba assegurando aos agricultores apenas uma renda mínima e não uma renda justa. Hoje há grandes divergências entre os agricultores representados no Clac e os certificadores do mercado justo, que insistem na manutenção do preço baixo para assegurar a comercialização por intermédio das grandes corporações varejistas.
ALTERNATIVAS AO MERCADO JUSTO DAS CORPORAÇÕES
Acordos comerciais como os praticados por muitas das organizações de comércio alternativo melhoram as condições e as oportunidades para as cooperativas de cafeicultores com as quais comercializam diretamente, uma vez que a certificação assegura um preço mínimo e não um preço máximo. Torrefadores, como a Equal Exchange , dos EUA, e a Cafédirect , do Reino Unido, têm o compromisso de só vender café certificado pelo mercado justo e usam a certificação como ponto de partida para formar parcerias comerciais de longa duração com as cooperativas de produtores. A Thanksgiving Coffee paga prêmios 40% superiores ao preço do mercado justo. O proprietário, Paul Katzeff, procura cooperativas com certificação orgânica e as auxilia na obtenção da certificação para o mercado justo para, então, trabalhar junto com as comunidades produtoras para ajudá-las na melhoria da qualidade do café. O esquema de comercialização direta adotado pela CAN, por exemplo, estimula que os próprios agricultores agreguem valor à sua produção localmente e ainda viabiliza um modelo alternativo de certificação. Outras empresas são co-propriedades de organizações de agricultores. Esses modelos de empresas que têm os agricultores como sócios permitem não só o aumento da remuneração dos mesmos, como também maior autonomia nos processos de decisão sobre a comercialização.
De forma geral, essas organizações alternativas que atuam nos mercados justos possuem algumas características comuns que as diferenciam das grandes corporações. São elas:
- Transparência. Ao contrário do comportamento da maioria das corporações, que fazem segredo sobre a quantidade de café certificado como justo que vendem, as empresas ligadas ao movimento são bastante transparentes sobre essa questão e sobre os valores pagos aos agricultores.
- Compromisso de longo prazo. As empresas ligadas ao movimento trabalham com cooperativas de produtores para investir na melhoria da qualidade do seu café. Podem tanto oferecer treinamento para provadores locais de café – para que eles sejam capazes de reconhecer e se empenhar pelo aprimoramento do produto – como auxiliar as cooperativas a diversificarem a produção. Há casos também de empresas que apóiam projetos nas áreas de saúde e de educação em comunidades que produzem o café que comercializam.
- Retenção da maior parte do valor do café na comunidade produtora. Tradicionalmente, a maior parte do valor do café é apropriada por agentes externos às comunidades produtoras, gerando grandes lucros para torrefadores e revendedores. Já empresas ligadas ao movimento atuam para que a maior parte da renda gerada na cadeia produtiva seja retida na comunidade produtora.
INDO ALÉM DO ASPECTO COMERCIAL: COMÉRCIO JUSTO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
A discussão sobre se o comércio justo deve se tornar uma forma bem mais ampla de comercialização reflete as crescentes divergências sobre o sentido de justiça que vem sendo adotado nos mercados. Essas divergências têm sua raiz em tensões entre diferentes estratégias defendidas para a promoção de mudanças sociais: umas se baseiam na regulação pelo mercado, enquanto outras na ação política e na capacidade de organização dos movimentos sociais. Os certificadores ligados ao mercado justo defendem a primeira estratégia, ou seja, a de vender o maior volume possível graças ao preço mínimo relativamente baixo praticado no comércio justo. Os produtores e as organizações que atuam no comércio alternativo, por sua vez, reivindicam preços baseados nos custos de produção e se preocupam com a perda de controle e de autenticidade do comércio justo.
Essas tensões colocam o movimento do comércio justo em uma posição difícil. Se abrir mão da idéia de que deve se tornar uma forma bem mais disseminada de comercialização, corre o risco de não ser suficientemente significativo para mudar a situação dos agricultores. Por outro lado, se seguir nessa linha, sem se preocupar com as razões estruturais da injustiça social, pode vir a se diluir, restringindo suas capacidades de transformação social. Ou seja, a ênfase em tornar o comércio justo uma forma hegemônica de comercialização pode marginalizar ativistas e agricultores – os verdadeiros condutores das transformações sociais e os que defendem fazer do comércio justo um mecanismo que vá além de um simples mercado um pouco melhor para produtores de café pobres.
A transparência, o risco, as condições de trabalho e a distribuição dos lucros são elementos que refletem diretamente o grau de poder dos agentes do mercado. No atual mercado desregulamentado de café, as regras são impostas por aqueles que dominam a torrefação e a distribuição, ou seja, as partes mais lucrativas da cadeia produtiva. Enquanto os agricultores não possuírem participações substanciais na torrefação e na distribuição, eles estarão sempre sujeitos aos níveis de justiça aceitáveis determinados por aqueles que controlam o mercado do café. Felizmente, já há iniciativas encorajadoras que abalam essa estrutura da cadeia produtiva. A multiplicação dessas iniciativas ajudaria a deslocar o equilíbrio de poder do comércio justo na direção dos agricultores, ao invés de favorecer as grandes corporações.
REDE DE SEGURANÇA OU ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO?
A teoria neoliberal de que os mercados por si mesmos são suficientes para reduzir a pobreza, terminar com a fome e promover o desenvolvimento sustentável tem sido refutada pelas duas décadas da globalização conduzida pelas corporações. Os propagandistas do comércio justo que afirmam que ele “empodera os agricultores” estão, na essência, declarando que a certificação é o pequeno ajuste necessário para que as promessas neoliberais sejam cumpridas.
Quando os preços do café caíram drasticamente em 2001 e 2002, os preços mínimos do mercado justo de fato funcionaram como um mecanismo de segurança para os agricultores. Esse aspecto é amplamente divulgado nas páginas eletrônicas e nos materiais promocionais dos certificadores e das companhias de café que comercializam produtos do mercado justo. Além disso, centenas de agricultores testemunham que se beneficiaram com os melhores preços conseguidos nessa época.
Contudo, agricultores que se organizam em cooperativas, estudantes e consumidores, bem como ONGs que realizam campanhas em defesa da justiça nos mercados, têm em mente algo mais do que uma simples rede de segurança que é acionada nos momentos de crise. Eles trabalham para pôr fim à fome, à pobreza e à extrema injustiça provocadas pelo livre comércio. Para esses atores, o mercado justo deve ser concebido dentro de um processo mais amplo para o desenvolvimento sustentável.
Apesar de os preços mínimos garantirem aos agricultores uma proteção contra quedas abruptas de preço, é necessário lançar mão de uma estratégia de desenvolvimento abrangente que assegure que as instituições locais dos produtores sejam fortalecidas para que seu poder de influência nos mercados aumente. É evidente que o modelo de certificação que está sendo adotado com a entrada das grandes corporações no negócio do mercado justo é insuficiente para responder a essa questão.
Para cumprir sua promessa quanto à promoção de um desenvolvimento eqüitativo, o mercado justo precisa intensificar seu trabalho com os movimentos camponeses para fazer a globalização corporativa retroceder, bem como para restabelecer as instituições sociais e políticas rurais necessárias para o avanço de uma agricultura produtiva e saudável.
PENSANDO NO FUTURO: A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA DE MERCADO
O futuro do mercado justo do café dependerá de sua capacidade de trazer produtores, consumidores e torrefadores-distribuidores para dentro dos crescentes movimentos sociais por mudanças nas estruturas agrárias. Está claro que a consolidação desse movimento mais amplo deverá estar vinculada à construção de um sentido de pertencimento cada vez maior, ao estabelecimento de compromissos mútuos e à efetiva participação dos diferentes atores nas tomadas de decisão. Como o mercado justo possui dimensões tanto econômicas quanto políticas, para que a participação dos agricultores seja politicamente comprometida, eles deverão ser incorporados nos negócios não como parte interessada, mas como sócios. Dar aos agricultores uma posição majoritária no conselho diretor da FLO, por exemplo, seria um bom avanço na busca desse objetivo.
É improvável que as grandes corporações promovam uma agenda orientada para o atendimento dos interesses dos agricultores e que visem a mudanças sociais. Elas tentarão vender a menor quantidade possível de café do mercado justo, ao preço mais baixo possível, contando com seu vasto poder de mercado para assegurar que os agricultores fiquem a elas subordinados. Mas essa não é uma razão para que se desista do mercado justo. Pelo contrário, para evitar que ele se torne irrelevante para as lutas dos agricultores, cabe às organizações alternativas, às ONGs e aos ativistas auxiliar os produtores de café a aumentarem não só o seu mercado, mas também o seu poder sobre o mercado; não só o seu negócio, mas também a sua parte de controle do negócio.
A capacidade de fazer com que os atores corporativos no mercado justo assumam crescente responsabilidade pública por padrões mais eqüitativos depende do quanto o movimento do comércio justo consiga avançar no que diz respeito à soberania de mercado dos agricultores –o poder de determinar como produzir, processar, vender e distribuir de formas justas e sustentáveis.
Felizmente, o movimento do mercado justo é dinâmico e constantemente origina novas formas de organização social, econômica e política. Mesmo a FLO surpreendeu aos mais céticos ao redesenhar sua estrutura para incluir organizações de agricultores em seu quadro diretivo, dando passos concretos na direção de, finalmente, permitir aos produtores a participação nos processos de certificação do mercado justo. À medida que o poder dos agricultores cresça dentro do mercado justo e que o movimento se articule estrategicamente com os movimentos de agricultores e consumidores por mudanças sociais, esse mercado estará bem posicionado para cumprir com suas promessas mais amplas relacionadas à promoção de um desenvolvimento verdadeiramente justo.
Eric Holt-Giménez, Ian Bailey e Devon Sampson
Food First/Institute for Food and Development Policy
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Revista V5N2 – Justo até a última gota: desafios ao mercado justo