Edinei de Almeida, Fábio Júnior Pereira da Silva e Ricardo Ralisch
A realidade em que vive e produz a agricultura familiar no sul do Brasil reproduz em largos traços situações vivenciadas pelo campesinato em outras regiões do mundo. A prática do pousio e queima da vegetação nativa já não oferece resposta para a necessidade de recomposição da fertilidade dos solos. Esse método era adequado quando a maior disponibilidade de terra permitia que uma área fosse cultivada enquanto a outra descansava até que recuperasse a fertilidade. Hoje, porém, a oferta de terra diminuiu consideravelmente, em razão dos processos de partilha por herança das propriedades rurais e a conseqüente intensificação do uso das terras agrícolas.
O método de regeneração da fertilidade propugnado com a Revolução Verde é baseado no emprego de adubos minerais de alta solubilidade e revela-se igual- mente inviável para a ampla maioria das famílias agricultoras em função de seu alto custo e dos impactos ambientais negativos que gera.
Embora muito distintos entre si, tanto o método tradicional de pousio e queima quanto o moderno se fundamentam em um mesmo paradigma de gestão da fertilidade dos ecossistemas agrícolas: o aporte aos solos de nutrientes em formas mineralizadas. Nessas condições, os nutrientes são facilmente perdidos do sistema por lixiviação e/ou erosão ou ainda são fixados nos minerais do solo, ficando indisponíveis para as plantas cultivadas. Dessa forma, ambas as práticas dependem da contínua reposição de nutrientes para que os solos não percam suas capacidades produtivas com a seqüência de cultivos.
Já no caso dos manejos ecológicos dos agroecossistemas, um dos principais objetivos é justamente assegurar a manutenção a longo prazo da fertilidade dos solos sem a necessidade de aportes contínuos de insumos externos. O enfoque agroecológico supera o paradigma da mineralização dos nutrientes, dando lugar a processos biológicos que garantem a contínua reciclagem dos mesmos em formas orgânicas.
USO DE PÓS DE ROCHA NA REVITALIZAÇÃO DOS SOLOS
Há mais de dez anos, a ONG AS-PTA vem assessorando organizações da agricultura familiar do centro-sul do Paraná e do Planalto Norte de Santa Catarina no desenvolvimento e disseminação de métodos inovadores para o manejo ecológico de solos. Atualmente, cerca de 400 famílias, organizadas em grupos de agricultores-experimentadores presentes em 52 comunidades de 17 municípios, estão diretamente articuladas a esse processo.
Uma das principais estratégias de manejo utilizadas por esses grupos é a associação do uso de pós de rocha com diferentes fontes de biomassa. Esses experimentos são orientados para promover a revitalização dos solos, isto é, a dinamização de sua atividade biológica de forma a manter os nutrientes em constante reciclagem na biomassa do sistema, seja ela viva ou morta. Com isso, as perdas dos nutrientes por lixiviação ou por fixação aos minerais do solo são significativamente reduzidas.
Os pós de rocha são empregados visando acelerar os processos de sucessão e dinamização biológica nos solos e não como fontes de nutrientes que serão diretamente absorvidas pelas plantas cultivadas. Não se trata, portanto, de um sistema de substituição de in- sumos (adubo químico por pó de rocha), mas de uma mudança de concepção sobre o manejo da fertilidade do agroecossistema.
A liberação dos nutrientes da rede cristalina das rochas ocorre pela ação de ácidos orgânicos produzidos por plantas e microrganismos no solo. Sendo um processo ecológico diretamente relacionado à atividade biológica, não é de se esperar que o manejo da fertilidade com uso de pós de rocha seja efetivo caso não seja realizado de forma concomitante com práticas culturais que estimulem a vida no solo. Com efeito, a literatura acadêmica registra resultados de pesquisa que concluem que o emprego agrícola de pós de rocha em cultivos anuais é pouco efetivo em razão da baixa solubilidade desses materiais no solo. Cabe ressaltar, no entanto, que essas conclusões foram tiradas com base em estudos conduzidos na lógica da substituição de insumos, ou seja, segundo o paradigma convencional de manejo da fertilidade.
Os resultados encontrados de forma generalizada pelos grupos de agricultores-experimentadores na região contradizem essas conclusões já amplamente consagradas no universo técnico-científico. Essa contradição explica-se justamente pela mudança de concepção que orienta o uso dos pós de rocha.
OS PÓS DE ROCHA NA EXPERIMENTAÇÃO COM MANEJO ECOLÓGICO DE SOLOS
Os experimentos conduzidos pelos grupos de agricultores-experimentadores são implementados nas suas próprias áreas de produção. Não se tratam de experimentos clássicos com repetição de tratamentos e rígido isolamento de variáveis. Em geral as famílias manejam uma parte das áreas experimentais segundo a proposta inovadora e outra parte de acordo com o manejo tradicionalmente adotado pela família. As conclusões são tiradas com base na observação comparativa de diferentes indicadores que vão sendo percebidos com a evolução do experimento.
Encontros de agricultores-experimentadores são realizados para que essas observações sejam socializadas entre membros de um mesmo grupo ou entre grupos diferentes. A continuidade dos ciclos de experimentação local e dos processos de interação entre agricultores-experimentadores permite o constante aprimoramento dos conhecimentos sobre as práticas de manejo e a sua disseminação por meio de espaços de interação entre agricultores (as).
A experimentação da rochagem se iniciou há aproximadamente dez anos com o emprego do fosfato de uma mina localizada a cerca de 300 quilômetros da região. Mais recentemente, tem sido utilizado o pó de basalto, uma rocha que dá origem a grande parte dos solos da região. Trata-se, portanto, de um material localmente abundante e de baixo custo, que tem como característica o fato de apresentar bom equilíbrio de macro e de micronutrientes, aspecto importante quando a rocha é avaliada sob a perspectiva de seu potencial de uso agrícola.
Algumas estratégias têm sido utilizadas para favorecer a liberação dos nutrientes presentes nos pós de rocha nos ciclos biogeoquímicos. Uma delas é o em- prego do pó da rocha em um processo de compostagem localmente adaptado e conhecido como “adubo da independência”. Esse composto é obtido pela fermentação da mistura de terra com diversos tipos de esterco, biomassa vegetal, pós de rocha e diversas fontes de carboidratos, como o melaço e a batata doce. Essas fontes de carboidratos têm como função favorecer o início da atividade microbiana.
O adubo da independência funciona como um meio de cultura que tem por objetivo reinocular as áreas agrícolas com vários grupos de microrganismos presentes nas áreas de floresta. A dosagem média empregada gira em torno de 800 kg/ha. Os pós de rocha (fosfato natural ou basalto) utilizados na sua formulação enriquecem o meio de cultura para os microrganismos. Ao mesmo tempo, ao serem “atacados” pelos ácidos orgânicos produzidos por esses microrganismos, liberam nutrientes para serem diretamente aproveitados pelas culturas.
Uma segunda estratégia adotada é a aplicação dos pós de rocha diretamente no solo em áreas de cultivo de espécies capazes de absorver nutrientes em formas pouco solúveis. Ao se decomporem, essas “espécies solubilizadoras” disponibilizam os nutrientes que absorveram para as culturas do ciclo agrícola seguinte. Diversas espécies de adubos verdes têm sido empregadas para cumprir essa função (ver quadro). Algumas espécies utilizadas para esse fim possuem também a capacidade de se associar a bactérias fixadoras do nitrogênio atmosférico, de solubilizar fósforo fixado nas argilas do solo, de estruturar o solo fisicamente, de romper camadas compactadas na subsuperfície, além de outros serviços ambientais fundamentais para a sustentação da fertilidade dos solos a longo prazo.
Avaliações feitas por diferentes grupos de agricultores-experimentadores da região convergem para a conclusão de que a aplicação dos pós de rocha gera efeitos positivos no mesmo ano agrícola em que é realizada. A melhoria do vigor e da sanidade das plantas cultivadas e o aumento da produção de biomassa nas áreas com aplicação dos pós de rocha são algumas observações recorrentes desses grupos. Essas observações foram confirmadas recentemente por meio de experimento de plantio direto ecológico realizado no município de Cruz Machado (PR). Com o emprego de um delineamento experimental para controle estatístico, foi possível dimensionar os aumentos expressivos na produção de biomassa de um coquetel de espécies de adubos verdes de inverno após 133 dias da aplicação do pó de basalto.
Os tratamentos de três mil e de quatro mil quilos de pó de basalto por hectare apresentaram, respectiva- mente, produtividade de biomassa de 68,79% e 64,74% superior à área em que o pó de basalto não foi aplicado.
Além dos múltiplos efeitos positivos sobre a fertilidade dos solos, a boa produção de biomassa dos adubos verdes que antecedem o plantio direto ecológico é uma condição fundamental para que as plantas espontâneas sejam suprimidas pelo efeito da cobertura morta. Sem essa condição, dificilmente as famílias conseguem manejar áreas de plantio direto sem ter que lançar mão do em- prego de herbicidas.
No ciclo de verão subseqüente, as parcelas experimentais foram preparadas para o plantio direto do milho. Embora o ano climático tenha sido desfavorável para a produção de grãos, a produtividade do milho foi significativamente superior nas parcelas que receberam as maiores dosagens do basalto pulverizado. Enquanto a par- cela de controle (sem uso do pó) produziu o equivalente a 780 quilos de grãos por hectare, as parcelas que receberam a dosagem de três e quatro toneladas produziram, respectivamente, 242% e 241% a mais (2.670 e 2.760 quilos por hectare). Esses resultados confirmam que a combinação do aporte de pós de rochas com o manejo de biomassa em solos biologicamente ativos resultam em efeitos positivos sobre o desempenho produtivo de cultivos anuais já no curto prazo, a custos baixos, sem que para isso o ambiente seja degradado. Pelo contrário, o manejo leva justamente à contínua restauração de funções ecológicas que interatuam positivamente com manejo cultural das espécies cultivadas.
PRODUÇÃO DO PÓ DE BASALTO
Embora o basalto seja uma rocha abundante e facilmente acessível na região, é preciso que ela seja empregada em formas pulverizadas para facilitar o “ataque” dos ácidos orgânicos e acelerar a liberação dos nutrientes. A AS-PTA, juntamente com a Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras (Fafi), que conta com o apoio da Fundação Araucária, vem concentrando esforços para desenvolver diferentes protótipos de moinhos de peque- no porte visando facilitar o acesso dos grupos comunitários ao pó de basalto. A matéria-prima desses moinhos é o pedrisco produzido nas várias pedreiras da região. Entre- tanto, apesar de atualmente já existirem na região quatro moinhos de diferentes tipos, a produção de pó de basalto não vem sendo suficiente para atender à crescente de- manda dos grupos envolvidos nas redes de inovação agroecológica regional.
NOVA CONCEPÇÃO, NOVOS INDICADORES
Superar a visão tradicional de que a produtividade dos solos está associada unicamente à disponibilidade de nutrientes para as plantas em formas minerais é condição fundamental para que os pós de rocha não sejam percebidos e disseminados como meros substitutos dos adubos químicos. O desenvolvimento das práticas inovadoras de manejo ecológico dos solos pelos grupos de experimentadores da região vem se realizando à medida que eles constroem uma nova percepção sobre fertilidade dos solos e adquirem uma melhor compreensão sobre os processos ecológicos envolvidos.
Foi com o objetivo de fomentar esse processo que a AS-PTA, juntamente com a Universidade Estadual de Londrina e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) – com apoio do CNPq –, concebeu e vem desenvolvendo um projeto de pesquisa voltado para a sistematização de indicadores de qualidade dos solos junto a grupos locais de experimentadores. O estudo consiste em correlacionar mudanças de alguns indicadores biológicos com a capacidade produtiva dos solos maneja- dos ecologicamente.
As avaliações da qualidade do solo com base em bioindicadores têm tornado mais visíveis os efeitos da rochagem associada ao manejo da biomassa sobre o desempenho produtivo da terra. Já as avaliações sobre o perfil de enraizamento da plantas, das estruturas do solo e da macrofauna edáfica têm permitido o desenvolvimento de uma visão mais complexa sobre os processos ecológicos que dão sustentação à fertilidade dos solos.
Ao incorporar esses novos indicadores de qualidade, os agricultores passam a compreender e correlacionar os processos ecológicos que ocorrem nos solos, considerando-os em suas tomadas de decisão sobre manejo. Percebem, por exemplo, que a melhoria da estrutura física do solo é uma condição para melhorar o perfil de enraizamento das culturas e, com isso, favorecer o acesso das plantas à água e aos nutrientes presentes em camadas mais profundas. Esse entendimento tem sido determinante para que os agricultores não limitem suas práticas de manejo dos solos ao aporte de nutrientes e à eliminação das plantas espontâneas que competem com os cultivos.
Com a participação nesses grupos de experimentação, os agricultores vêm adquirindo conhecimentos ecológicos que têm lhes auxiliado no aprimoramento dos manejos empregados no conjunto de suas propriedades. Contudo, os benefícios do processo se estendem muito além do que os resultados alcançados no plano estritamente técnico. A constituição desses grupos tem também desempenhado um papel positivo no fortalecimento dos laços de vida comunitária, condição necessária para que as dinâmicas de inovação agroecológica se sustentem, permitindo que novos conhecimentos e experiências continuem a se desenvolver no futuro, contribuindo para melhorar a qualidade de vida dos agricultores familiares na região sul do Brasil.
Edinei de Almeida
técnico da AS-PTA
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Fábio Junior Pereira da Silva
estagiário da AS-PTA e estudante da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (PR).
Ricardo Ralisch
professor da Universidade Estadual de Londrina.
Baixe o artigo completo:
Revista V4N1 – Revitalização dos solos em processos de transição agroecológica no sul do Brasil