Eduardo Magalhães Ribeiro, Flávia Maria Galizoni e Boaventura Soares de Castro
A relação entre universidades e agricultores familiares costuma ser muito difícil. Agricultores consideram, na maior parte das vezes com muita razão, que a produção científica das universidades tem pouca ou nenhuma serventia direta para eles, porque geralmente elas se voltam para os grandes negócios rurais e levam muito pouco em conta os problemas de produção, terra ou renda de pequenos lavradores. Embora muitos pesquisadores e estudantes universitários se interessem por trabalhar com agricultores familiares, eles acabam enfrentando muitas dificuldades: da falta de recursos materiais à inexistência de técnicas apropriadas, do preconceito à inadequação das metodologias. Às vezes, quando surge uma boa oportunidade de trabalho conjunto entre universidade e agricultores, ela acaba fracassando pela falta de continuidade das ações.
Esse relacionamento pouco fértil já vem sendo debatido há alguns anos, desde que começaram a ficar evidentes os riscos ambientais e o caráter concentrador de terra e renda do modelo de desenvolvimento rural derivado da Revolução Verde. A distância entre a prática dos agricultores e a ciência das universidades traz muitos prejuízos para a sociedade brasileira. A produção de técnicas adaptadas é reduzida, são formados poucos jovens pesquisadores e extensionistas que compreendem as necessidades dos agricultores e o conhecimento tradicional criado pelos lavradores em décadas de experimentação é ignorado pela pesquisa científica. Um bom relacionamento entre universidades e agricultores permite reunir saberes diferentes e inovar em pesquisa e extensão. Mas, para isso, é preciso resolver uma questão-chave: quem faz a intermediação entre agricultores e universidade? Quem traduz e organiza as demandas dos lavradores? Uma organização que faça uma mediação local eficiente é funda- mental para o sucesso desse diálogo.
Desde 1998, o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), ONG de atuação na área rural do Vale do Jequitinhonha, e o Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar Justino Obers (Núcleo PPJ), grupo de pesquisa e extensão da Universidade Federal de Lavras (Ufla), têm partilhado uma experiência de parceria, sendo este artigo um breve relato desse aprendizado.
OS PARCEIROS
Da luta pela terra no alto Jequitinhonha, em parte dirigida pelo lendário ambientalista e líder camponês Vicente Nica, surgiu o Sindicato de Trabalhadores Rurais, e dele nasceu o CAV, como braço técnico da organização dos lavradores. O CAV é uma organização construída e animada por agricultores familiares que, desde 1994, se dedica a criar sistemas produtivos sustentáveis e espaços de comercialização solidária para a agricultura familiar. Sediado em Turmalina, o Centro extrapolou os limites do município e passou a atuar junto ao movimento sindical dos trabalhadores rurais e com as organizações públicas e da sociedade civil da região.
Sua equipe tem 20 técnicos que atuam em três áreas. A primeira delas trata dos sistemas agroflorestais, usando a vegetação para recompor a fertilidade dos solos e produzir alimentos, envolvendo 32 famílias de agricultores monitores que mantêm, em seus próprios terrenos, unidades de demonstração de sistemas agroflorestais abertas à visitação e debate comunitário. A segunda área de atuação está vinculada ao tema da água. Desenvolve ações para conservação das nascentes, captação de água de chuvas – por meio do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) –ou ações estruturantes, de educação ambiental de longo prazo. A comercialização é a terceira área de atuação do CAV, que nesse campo desenvolve produtos –como frutas desidratadas e alimentos processados – e espaços de comercialização para a produção, por meio de vendas em grandes lotes para o comércio solidário ou fortalecendo a inserção dos lavradores nos mercados tradicionais, como as feiras livres (ver Revista Agriculturas, v. 2, nº 2, p.5-9).
A Universidade Federal de Lavras é um centro de pesquisa, extensão e ensino dedicado em grande parte às ciências agrárias. O Núcleo PPJ surgiu em 1998 com alguns princípios: atuar em parceria com organizações locais, partilhar conhecimentos, promover intercâmbios entre agricultores e universidade e formar profissionais para trabalhar com a agricultura familiar. Sua equipe de 20 pessoas é formada por estudantes de graduação em administração, agronomia, engenharia florestal, veterinária e engenharia agrícola, além de estudantes de pós-graduação e professores.
A integração das equipes do CAV e do Núcleo começou com o apoio recebido da Federação Nacional dos Estudantes de Administração (Fenead), que concedia um prêmio em dinheiro para financiar a cooperação entre organizações universitárias e da sociedade civil. De- pois vieram recursos da Universidade Solidária, dos pequenos projetos do Ministério da Educação, sempre captados em editais abertos para custear um certo número de atividades. Esses apoios foram fundamentais para consolidar o relacionamento e definir os rumos de trabalho. A partir daí, a parceria ganhou solidez, criou as metodologias de ação e adquiriu experiência na caminhada.
A DINÂMICA DA PARCERIA
No meio rural mineiro há um ditado: “Tudo que é combinado é barato”. Quer dizer: não há surpresas quando existe um bom acordo prévio. Quando organizações diferentes se tornam parceiras, precisam atentar para a sabedoria contida nesse dito popular, porque dinâmicas, objetivos e ganhos devem ser definidos com muita clareza. Ao longo do tempo, o CAV e o Núcleo PPJ chegaram a quatro combinações de procedimento que são essenciais para o sucesso da parceria.
Primeiro: é preciso fazer planejamento. As duas organizações são parceiras, mas autônomas. Cada uma tem sua lógica própria de ação e um planejamento bem feito é o melhor instrumento para identificar pontos de contato. Cada uma tem suas atividades, mas apenas algumas serão conjuntas e deverão ser conciliadas em termos de propósitos, métodos e, principalmente, agendas.
Segundo: é necessário investir muito em capacitação, uma vez que todo ano é feita uma seleção para renovar parcialmente as turmas de estudantes que participarão do Núcleo. A capacitação, em parte, serve para atenuar a ansiedade dos estudantes que ingressam afoitos para trabalhar com lavradores, animados por um extensionismo muito nobre, mas pouco consistente. É preciso convencê-los de que não poderão contribuir muito com os lavradores enquanto desconhecerem suas especificidades sociais, produtivas e culturais. No início, são os agricultores que mais contribuem para a formação dos estudantes, num processo que, em tom de brincadeira, tem sido denominado de “intensão rural”, em oposição a “extensão rural”, em que o estudante vai a campo para aprender com os lavradores e suas organizações.
Terceiro: é preciso muita atenção com os ritmos próprios de cada organização. Há uma certa pressão na ONG por resultados práticos e rápidos, enquanto há uma certa lentidão na universidade para elaborar produtos, seja pesquisa ou atividades de sensibilização. Nem sempre resultados de pesquisa, por exemplo, aparecem nos prazos curtos que a ONG requer, como também nem sempre os técnicos da ONG podem dedicar a uma reunião com agricultores o tempo que estudantes e pesquisadores consideram necessário para aprenderem tudo. Por isso, é preciso conhecer as condições objetivas em que o parceiro atua e respeitar seu ritmo para conduzir atividades.
Quarto: a avaliação deve ser permanente, porque a equipe do Núcleo sempre se renova e a do CAV incorpora assuntos novos. A avaliação, além de proporcionar o balanço dos avanços e perdas, serve para partilhar, com todos os participantes, o histórico daquele processo, para que cada equipe exponha sua interpretação da atividade. Muitas vezes, as atividades de campo têm implicações que pessoas de fora não percebem, como influências na política local, por exemplo. A avaliação evita que ações desastradas arranhem arranjos locais, sempre muito delicados.
AS DIFICULDADES
No relacionamento entre universidade e ONGs, algumas dificuldades são, realmente, estruturais. Uma delas é a falta de tempo da ONG para sistematizar as informações. A demanda das atividades é muito grande, exige de- mais dos técnicos, e colocar no papel informações precisas acaba sendo muito custoso. Isso faz com que o processo de aprendizado seja quase sempre marcado pela informação oral. Os técnicos guardam informações na cabeça e as transmitem aos estudantes nas avaliações de trabalho, num processo que tem pouca possibilidade de replicação.
Outra dificuldade é a perda constante de estudantes experientes, que concluem seus cursos depois de alguns anos participando de atividades do Núcleo e do CAV. Isso é ótimo para quem os contrata para trabalhar, porque dispõem de muita vivência profissional. Mas é um prejuízo para o Núcleo e o CAV, pois ao fim do curso o estudante já domina os códigos de convívio com os lavradores, tem grande experiência em extensão e pesquisa, lidera equipes em campo e, principalmente, supre o CAV com uma assessoria técnica de qualidade, formada em três ou quatro anos de aprendizado conjunto.
Além disso, a disponibilidade de tempo dos estudantes é um grande problema. Eles têm que freqüentar aulas e provas, com pequena possibilidade de substituir cursos regulares por atividades de campo. Então, retornamos ao ponto de partida: é necessário planejar, planejar, planejar. No entanto, mesmo quando sobra tempo para atividades de campo dos estudantes – nas férias, finais de semana, feriados –, esses períodos costumam coincidir com as épocas de descanso de que a equipe técnica do CAV também precisa desfrutar.
Entre todas as dificuldades, porém, a maior talvez seja o financiamento de longo prazo. Até poucos anos atrás, existiam apenas programas de financiamento de prazos curtos, 6 ou 10 meses, para integração de pesquisa/extensão entre universidades e organizações rurais. Isso colocava os parceiros sob pressão. Mal conseguiam um financiamento e já precisavam buscar outro, e freqüentemente não havia edital aberto que custeasse o tipo de atividade que estava sendo executada. Uma excelente inovação nessa área foi introduzida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/MCT (CNPq), que desde 2001 lança editais voltados para agricultura familiar e, depois de 2003, melhorou ainda mais os editais ao reunir pesquisa com extensão nas suas chamadas de projetos. Mas o problema continua, porque a maioria das agências de fomento apóia apenas atividades pontuais e em prazos reduzidos, impedindo que organizações da sociedade civil e universidades criem relações estáveis de trabalho conjunto e diversificado.
AS VANTAGENS
As vantagens para os dois lados, porém, são maiores que as dificuldades e compensam todos os percalços que até agora apareceram no caminho.
Para o CAV, está na possibilidade de ampliar sua equipe, agregando um grupo flexível e sem custos de estudantes, pesquisadores e extensionistas, que pode aumentar sua capacidade de ação em alguns momentos, como nos dias de campo, sensibilizações e jornadas de educação de jovens rurais. Isso significa receber um setor de pesquisa e formação que atua em sintonia com suas necessidades de trabalho. Há, também, a oportunidade de sistematizar experiências agroecológicas em curso, de explorar, com pesquisa aplicada, os temas e áreas em que a ONG pretende expandir o trabalho e de avaliar os programas de desenvolvimento que são levados para a região. Além desses, outro aspecto que o CAV tem considerado muito importante na parceria é a possibilidade de instrumentalizar a pesquisa. Seu trabalho de campo passa a ser precedido, acompanhado e sucedido por pesquisas realizadas por uma equipe externa, que o informa, mas também dissemina a informação para organizações e públicos de outras áreas, que, por sua vez, consultam as monografias, dissertações ou artigos científicos produzidos sobre a base de trabalho do CAV.
As vantagens para a universidade também são imensas, e a maior delas não é exclusivamente dela. Trata- se do ganho de toda a sociedade brasileira com a formação de jovens pesquisadores e extensionistas cujo aprendiza do é fruto tanto do convívio com famílias rurais, como do ambiente acadêmico. O estudante aprende a valorizar o saber local sempre que é desafiado pelas particularidades do lugar, e valoriza o saber científico a cada vez que precisa dar uma resposta técnica. Isso ensina os estudantes a selecionar e organizar rapidamente seus conhecimentos. Existem outras vantagens: atuar na mesma comunidade por muitos anos dá ao pesquisador uma visão rica e complexa do meio rural; a mediação local dá continuidade, segurança e agilidade às relações entre universidade e lavradores; a pesquisa dedicada a um público delimitado cria relações de confiança e co-responsabilidade entre pesquisadores e agricultores; e, sobretudo, permite ao pesquisador compreender a dimensão social do seu trabalho.
Há, ainda, um ganho maior em cidadania, quando lavradores descobrem que universidades podem ter utilidade prática se as suas organizações influem na seleção das linhas de pesquisa que efetivamente contribuam para o desenvolvimento rural. A partir daí, interessa a eles, realmente, disputar com as organizações patronais essas instituições públicas, seus profissionais e seu patrimônio tecnológico.
PRODUTOS ATUAIS E FUTUROS
Em oito anos de parceria, foram concluídos quinze projetos de pesquisa e outros estão em andamento; feitas dezenas de atividades de sensibilização, capacitação, seminários e dias de campo em comunidades e escolas rurais; escritas várias dissertações, monografias e artigos técnicos. Mas alguns produtos se destacam porque foram criados a partir de pesquisa específica aplicada às demandas locais.
Um deles é o programa de nascentes. Os agricultores demandaram ao CAV, que encaminhou a proposta ao Núcleo, uma pesquisa sobre a oferta e as fontes de água nas áreas rurais. As pesquisas revelaram que a maio- ria das famílias rurais dispunha e conservava, como um tesouro, as fontes próprias – as águas pequenas das nascentes. A partir daí, foi construído um programa de conservação de nascentes baseado nas famílias, em práticas agrícolas conservacionistas e usos múltiplos das áreas fechadas para recarga dos mananciais, como apicultura, coleta de frutos do cerrado e plantas medicinais. Alguns anos depois de implantando o programa, nova rodada de pesquisa mostrou que comunidades com nascentes cercadas pelo programa dispunham de muito mais água por pessoa que aquelas que não as conservavam. No caso, a pesquisa sugeriu o rumo da ação e depois avaliou seu resultado. Mas não se pode esquecer que a pesquisa foi encomendada pelo CAV, que soube definir seu objetivo e avaliar sua conveniência.
Outro exemplo é o Programa de Apoio às Feiras Livres. Na luta para encontrar mercados para os lavradores do Jequitinhonha, o CAV e o Núcleo resolveram examinar a importância das feiras livres em termos de abastecimento, renda e produto. Os números levantados foram surpreendentes: as feiras abasteciam quase 80% das populações urbanas, geravam mais renda para os agricultores que as transferências do governo, aumentavam, em média, o movimento do comércio urbano em 20%. Os resultados da pesquisa foram então usados para mobilizar prefeituras, sindicatos, associações e agências públicas no apoio às feiras, enfrentando com mais vigor os problemas dos feirantes, além de oferecer cursos e trocas de experiências entre feirantes de municípios diferentes
Narrado assim, pode parecer que foi fácil encontrar essa forma de trabalho. Mas não foi. E, finalmente, é preciso ensinar ao leitor o caminho das pedras: na relação entre universidade e agricultores familiares, mediação é tudo. Universidades só conseguem fazer trabalhos de longo prazo com lavradores quando existe uma organização que os conhece – seja ONG, sindicato, pastoral, associação ou fórum –, que tenha capilaridade e facilite o diálogo, que dê consistência às demandas por pesquisa e saiba transformá-las em produtos úteis no dia-a-dia.
Se existe uma boa mediação, tudo o mais se torna possível. E aí não custa nada fazer duas ou três recomendações que deslanchariam esse trabalho: financiamentos de longo prazo para integrar universidades e organizações mediadoras; bolsas para estabelecer jovens profissionais em pesquisa e extensão ao mesmo tempo nas universidades e organizações da sociedade civil; redes para trocas de experiências entre universidades e organizações; currículos flexíveis para estudantes trocarem algumas horas-aula por atividades de campo, entre outras. Há ainda um percurso longo e trabalhoso a ser trilhado, mas há também a certeza de que é o caminho para construir uma outra universidade, mais cidadã, mais roceira, localizada mais perto do Brasil.
Eduardo Magalhães Ribeiro
economista, professor da Ufla e pesquisador do Núcleo PPJ/Ufla
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Flávia Maria Galizoni
antropóloga do Núcleo PPJ/Ufla
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Boaventura Soares de Castro
agricultor, apicultor, técnico do CAV
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Referências Bibliográficas:
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RIBEIRO, E.M. et al. As feiras livres do Jequitinhonha: feirantes, consumidores e comércio urbano no semi-árido mineiro. Revista Econômica do Nordeste, 2006.
Baixe o artigo completo:
Revista V3N4 – Universidade, extensão e desenvolvimento rural: uma experiência no Vale do Jequitinhonha