Anna Cecilia Cortines, Denise Valeria Lima Pufal, Klinton Senra, Odair Scatolini, Silvana Bastos e Zaré Augusto Brum Soares
“Nos fenômenos coletivos contemporâneos, se entrelaçam muitos significados. Só uma sociedade aberta capaz de captar o impulso dos movimentos, através dos sistemas políticos de representação e tomada de decisão, pode fazer com que a complexidade e a diferença não sejam violentadas. Manter aberto o espaço para as diferenças é uma condição fundamental para a invenção do presente.” Alberto Melucci, Milão, junho/1990.
Município de Santarém (PA), início da tarde. Orismar e seus companheiros da Associação dos Produtores Rurais da Comunidade Coroca preparam a ração com restos de peixe, farelo de mandioca e frutas produzidas em áreas de manejo agroflorestal. Essa ração é usada para alimentar tambaquis (Colossoma macropomum) e tartarugas, cujas criações têm contribuído para o aumento da renda e da segurança alimentar das famílias e para a conservação da biodiversidade na bacia do Rio Arapiuns.
Três Cachoeiras (RS), comunidade do Morro Azul. Como fazem duas vezes por mês, Jurema e suas companheiras do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) estão reunidas para produzir os elixires, pomadas e xaropes, com espécies fitoterápicas. Esses medicamentos são distribuídos gratuitamente para a população por mais de 100 grupos de mulheres que trabalham nas “farmacinhas” e atuam em dezenas de municípios do Rio Grande do Sul, gerando impactos positivos nas condições de saúde das famílias e contribuindo para a valorização de espécies nativas da região.
Araponga (MG), comunidade de Novo Horizonte. Paulinho e Seu Nenê explicam como funciona o fundo rotativo, que movimenta e disponibiliza recursos para a aquisição coletiva de terras por famílias cadastradas pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais. Os recursos dos próprios agricultores, que constituíram o fundo rotativo, viabilizaram a aquisição de uma antiga fazenda da região, o que resultou na formação da comunidade de Novo Horizonte, onde atualmente residem 28 famílias, vivendo da produção agroecológica de café.
Três experiências concebidas e implementadas por organizações da sociedade civil e movimentos sociais, de base comunitária. Promovem o desenvolvimento sustentável construindo novas relações entre homens, mulheres, suas comunidades e a natureza que os cerca. Têm também em comum o fato de serem apoiadas pelo Ministério do Meio Ambiente por meio do Programa de Projetos Demonstrativos (PDA).
Os projetos apoiados pelo PDA vêm contribuindo para a promoção do desenvolvimento sustentável mediante a disseminação de práticas socioambientais em comunidades e organizações parceiras pautadas em princípios como: empoderamento das famílias e comunidades; eqüidade no uso e distribuição dos recursos; respeito à capacidade de regeneração dos ecossistemas; enfoques sensíveis às especificidades de gêneros e gerações; transparência, descentralização e compartilhamento dos processos decisórios entre os envolvidos; fortalecimento de valores humanos, éticos e ambientais e valorização da cultura e sociobiodiversidade local.
O PROGRAMA
Assim como os três exemplos apresentados, mais de trezentas experiências, desenvolvidas na Amazônia, na Mata Atlântica e em seus ecossistemas asso- ciados, recebem ou já receberam apoio do PDA.
O programa, implementado no âmbito do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais (PPG7), é financiado principalmente pela Cooperação Técnica e Financeira Alemã e tem como meta central demonstrar, por meio de experiências inovadoras, a possibilidade efetiva de construção, em bases comunitárias, de estratégias de promoção do desenvolvimento sustentável. Além disso, a partir dos aprendizados gerados por essas experiências, visa estimular a formulação de políticas públicas que contribuam para a difusão, adaptação e incorporação dessas estratégias por outras comunidades, organizações e instituições governamentais.
Cabe ressaltar que o termo “experiências” se refere a ações concretas de organizações sociais colocadas em prática por produtores e produtoras rurais. Essas ações ainda têm merecido pouco apoio de políticas públicas, por não serem sistemas de produção consolidados, nem baseados em processos formais de pesquisa. O PDA foi concebido como incentivo ao agricultor(a)/pesquisador(a), que no seu dia-a-dia testa e descobre novas formas de produzir, interagindo de maneira sustentável com a fonte de recursos naturais que utiliza.
Com esse espírito de valorização do conhecimento gerado a partir da prática, o PDA foi criado em 1995, entrando em operação em 1996. A sua formulação resultou de um processo de negociação envolvendo governo brasileiro, organismos de cooperação internacionais e organizações da sociedade civil brasileira, articuladas pelas redes de ONGs e Movimentos Sociais da Amazônia (Grupo de Trabalho Amazônico –GTA) e Mata Atlântica (Rede de ONGs da Mata Atlântica – RMA).
O PDA nasce, portanto, com uma característica marcante: a centralidade do papel das organizações da sociedade civil. Esse aspecto do programa o diferencia de grande parte das ações do Estado, que em geral atribui às esferas econômica e governamental a responsabilidade pelas ações de promoção do desenvolvimento. O PDA tem como fundamento de sua concepção o entendimento de que é na esfera da sociedade civil que está parte significativa do campo de inovações socioambientais, base para a construção de processos de desenvolvimento pautados em novos paradigmas.
RESULTADOS, AVANÇOS E LIMITES
A partir do acúmulo gerado nesse período, grande parte das organizações parceiras, assim como a própria Secretaria Técnica, reconhecem os avanços que o “mecanismo” PDA, ou seja, o conjunto de normas e procedimentos que o compõem, representa. Já por ocasião de sua constituição, o PDA criou um mecanismo de gestão que permite compatibilizar o desafio de estabelecer normas administrativas transparentes e seguras e a necessidade de abrir espaço para a flexibilização de processos de execução física dos projetos apoiados, de acordo com as suas respectivas evoluções. Para tanto, instituiu uma Comissão Executiva, composta paritariamente por representantes do go- verno e das redes de ONGs e movimentos sociais da Amazônia e Mata Atlântica. Cabe a essa comissão a análise e julgamento dos projetos submetidos ao programa. Além disso, foi criado um mecanismo flexível de gestão financeira e de prestação de contas, contribuindo para a adaptação da gestão dos processos, facilitando repasses aos projetos e garantindo fluxos constantes de recursos, o que resultou em baixíssimos índices de desvio de finalidade.
Há um consenso também no que se refere aos impactos positivos, gerados pelos projetos apoia- dos pelo PDA, no fortalecimento institucional das organizações parceiras. Porém, da mesma forma, é quase consensual que o PDA ainda precisa cumprir a sua missão estratégica, parte central do seu objetivo, relacionada com a gestão do conhecimento produzido a partir das experiências apoiadas e da formulação de políticas públicas baseadas nesses conhecimentos.
Estudos realizados pelo Ministério do Meio Ambiente, Banco Mundial e GTZ (cooperação técnica alemã) apontam exemplos de sucesso na formulação de políticas públicas municipais, estaduais e federais a partir dos conhecimentos gerados pelos projetos do PDA. A experiência da Colônia de Pescadores Z-16 de Cametá (PA) proporcionou a implementação de acordos de pesca na região do baixo Tocantins, servindo como referência para a elaboração da Instrução Normativa 29 do Ibama, que reconhece os acordos de pesca em âmbito nacional. A Associação Rural Juinense de Ajuda Mútua (Ajopam), localizada em Juína (MT), em função do Projeto Agroflorestal e Consórcio Adensado (Paca), teve sua proposta incorporada aos programas da prefeitura local, levando à disseminação dos sistemas agroflorestais em várias comunidades rurais daquele município. A Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí (Apremavi), em Santa Catarina, influenciou, com seu projeto apoiado pelo PDA, o órgão ambiental do estado, que desburocratizou o sistema de licenciamento para o uso sustentável de produtos oriundos do manejo de florestas secundárias. O Centro Ecológico e o Movimento das Mulheres Camponesas da região do litoral norte gaúcho estabeleceram importantes parcerias com o governo estadual do Rio Grande do Sul na elaboração de programas de beneficiamento e comercialização da produção agroecológica e de disseminação do uso de espécies fitoterápicas para o tratamento de doenças em comunidades rurais de vários municípios daquele estado.
Os exemplos demonstram que as cadeias de influência que resultam na formulação dessas políticas variam de acordo com as especificidades dos contextos em que se inserem. Em geral, são as organizações proponentes dos projetos, a partir do acúmulo de conhecimento em suas áreas de atuação e da ampliação de sua capacidade de interlocução com redes de atores locais, que mobilizam capital político e social, fazendo com que experiências pontuais de sucesso repercutam e entrem na agenda de movimentos locais e regionais. Assim, pode-se dizer que os processos envolvendo negociação e pressão popular acabam gerando diretrizes, leis, projetos e programas de governo.
Hoje, após dez anos de caminhada, os maiores desafios propostos para o programa estão relacionados com: a ampliação da escala de impacto dos projetos, que na sua grande maioria permanece envolvendo um número pequeno de famílias e/ou comunidades; o aumento da visibilidade das experiências, em nível microrregional e nacional, que na sua maioria não trabalha de forma estratégica a gestão do conhecimento e da informação; e, finalmente, o estabelecimento de canais de comunicação para que esse conhecimento gerado se efetive no aperfeiçoamento e formulação de políticas públicas.
NOVOS HORIZONTES
Considerando esses desafios, o PDA, aqui entendido como a Secretaria Técnica e o conjunto de parceiros envolvidos nos projetos, vem avançando na formulação de novas estratégias. Na perspectiva de ampliar os impactos e a visibilidade dos projetos em nível microrregional, estamos trabalhando para a articulação e integração dos mesmos em “territórios” formados a partir da identificação de áreas onde há concentração de projetos. Esse enfoque será a base para a construção das estratégias de monitoria, articulação com outros programas governamentais e intercâmbio entre as organizações envolvidas. A consolidação do sistema de monitoramento e gestão de conhecimento tem por objetivo facilitar a sistematização e disseminação das informações geradas em meio às redes de organizações da sociedade civil. Além disso, busca estabelecer um processo horizontal de produção e difusão de conhecimento, contribuindo para a concretização, articulação e fortalecimento de ações coletivas de negociação de políticas públicas. Por fim, o aperfeiçoamento contínuo das estratégias de comunicação deve fortalecer os vínculos e a interlocução com outras instâncias de governo.
Porém, para que esses desafios sejam realmente superados, é fundamental que as entidades e os movimentos sociais que participaram do processo de elaboração da proposta do Programa de Projetos Demonstrativos, assim como as organizações que hoje são nossas parceiras na implementação dos projetos, enxerguem-no como um programa estratégico na construção de mudanças no cenário das políticas socioambientais locais, estaduais e nacionais, e não apenas como um mero instrumento de fomento a projetos pontuais.
Anna Cecilia Cortines:
secretária técnica adjunta do PDA
Denise Valeria Lima Pufal:
consultora da Cooperação Técnica Alemã
Klinton Senra; Odair Scatolini; Silvana Bastos e Zaré Augusto Brum Soares:
técnicos da Secretaria do PDA
Referências:
LITTLE, PAUL E. Projetos Demonstrativos – PDA: sua influência na construção do Proambiente. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2005. 63p.
MELUCCI, A. A Invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Secretaria de Coordenação da Amazônia. Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil. Subprograma Projetos Demonstrativos, Experiências PDA nº 04. Estudos da Mata Atlântica: avaliação de doze projetos PDA. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. 80p.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Secretaria de Coordenação da Amazônia. Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil. Subprograma Projetos Demonstrativos, Experiências PDA nº 05. Estudos da Amazônia: avaliação de vinte projetos PDA. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. 80p.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Secretaria de Coordenação da Amazônia. Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil. Subprograma Projetos Demonstrativos, PDA 5 Anos. Uma Trajetória Pioneira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2001. 130p.
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Revista V3N1 – Projetos demonstrativos e políticas públicas: os desafios da invenção do presente