Naidison de Quintella Baptista
Na sociedade capitalista de nossos dias, pouco se fala/trabalha/ propugna no que concerne ao protagonismo infanto-juvenil. Constata-se a existência de muitas ações e projetos pensados pelos adultos para os jovens. Poucos, no entanto, construídos e conduzidos por eles próprios, mesmo que assessorados por adultos. Isso se deve a alguns fatores:
a) de um lado, o fato de que, do ponto de vista econômico/produtivo – o que mais interessa ao capitalismo –, a criança e o jovem são considerados parcial ou totalmente improdutivos, como o são os doentes, os idosos;
b) de outro, porque aquilo que nós, os adultos, mais observamos nos jovens é a sua “imaturidade”, qualidade esta aliada à imprudência e outros qualificativos afins, cuja análise revela uma postura de desconfiança da sociedade em relação aos jovens e crianças;
c) de outro ainda, talvez em decorrência dos fatores já delineados acima, porque sempre enxergamos as crianças e os jovens como “a geração do futuro”, o “futuro da nação”. Não lhes reconhecemos, por conseguinte, o direito à palavra, à presença, a uma voz ativa, a participar nas definições de processos e políticas, nem mesmo quando lhes dizem diretamente respeito. Via de regra, seguimos à risca o famoso ditado “em assuntos de adultos crianças e jovens não metem o bico”, que os proíbe de se imiscuírem em questões que supostamente envolvem só os mais velhos. E, curiosamente, consideramos que a vida dos próprios jovens e crianças é um assunto apenas de adultos.
A escola lhes apresenta tudo pronto, conteúdos e metodologias de anos e anos atrás, mudando apenas técnicas e modos de apresentação, e lhes cobra a devolução, verbalisticamente, do que foi repassado, sob ameaça de reprovação; as famílias, por vezes, atuam no mesmo esquema, tendo dificuldades de assumir valores novos e valorizar a habilidade/criatividade e os sonhos das crianças e jovens; o mundo do trabalho os explora como mão-de-obra barata e sem direitos sociais, e não assimila seus anseios e pontos de vista de como construir uma sociedade mais justa e nem confia nas suas capacidades; os espaços representativos de construção de políticas não os incluem, reiterando a concepção de que são incapazes para isso e que têm o futuro pela frente para essa experiência. Devem, pois, aguardar.
Esse quadro poderia ser ampliado. Contudo, a dialética existente na história e na própria realidade nos aponta outros vieses em relação à infância e à juventude. E são esses outros vieses que nos interessa analisar neste número da Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, dedicado a refletir o papel das crianças e adolescentes no mundo rural, não apenas como aqueles que serão no futuro, mas como aqueles e aquelas que são, se modificam e serão, também no futuro, como todas as pessoas. Nosso enfoque, por conseguinte, é aquele no qual crianças e jovens são cidadãos, sujeitos de direito e têm uma palavra a pronunciar.
E O QUE SE DESCORTINA?
Aparecem os jovens que se organizam em coletivos para debater seus problemas e conhecer sua realidade sob o ângulo bem concreto do protagonismo juvenil. E, a partir do debate, se descobrem, ora questionando as organizações da agricultura familiar a que seus pais pertencem ora querendo um lugar nelas ora buscando seus espaços na formulação da política nacional e regional, preocupados com o recorte de juventude, mas integrados com outros atores. São os jovens que se descobrem atores políticos e exigem o respeito a esse direito.
Aparecem os jovens que, refletindo a prática da agricultura química, oriunda da Revolução Verde, destruidora da terra, dos mananciais e da própria vida daqueles que consomem seus produtos, descobrem a agroecologia, disputam até mesmo com suas famílias o direito de praticá-la nas propriedades familiares, tornam-se difusores entusiastas. Diríamos que fundamentam uma resistência que tem ajudado a agricultura familiar e agroecológica a firmar seu lugar na produção e na comercialização.
Aparecem os jovens e as crianças que, pesquisando e produzindo conhecimentos específicos sobre os problemas da realidade concreta das comunidades em que vivem, descobrem pistas de como gerar renda sem agredir a natureza, de como conservar e querer bem à terra de onde tiram seu sustento, de como questionar seus pais e comunidades a respeito da própria concepção de mundo e da agricultura que praticam, apontando práticas e processos diferentes.
Aparecem os jovens e crianças que, juntamente com seus professores, descobrem que a escola formal pode ter um outro papel na comunidade, qual seja aquele de produzir conhecimentos a partir da própria vida das pessoas e grupos que ali vivem, de introduzir transversalmente os conteúdos programáticos e de fazer da escola um instrumento do desenvolvimento sustentável da comunidade e da região. A partir desses processos as escolas se tornam propulsoras de práticas e lições de agroecologia que as crianças e jovens, gradativamente, retrabalham com suas famílias nas respectivas propriedades.
Aparecem os jovens que, em assentamentos da reforma agrária, se inserem em processos diferenciados de escola e aprendizagem, com seus professores e pais, e, na descoberta da agroecologia e biodiversidade, ajudam a viabilizar os assentamentos, em profundo respeito à natureza.
Desse modo, questionando, reinventando, assumindo responsabilidades na formulação e gestão de políticas, construindo conhecimentos importantes para a transformação da realidade e promoção da justiça, sem deixar de lado sua natural irreverência, seus arroubos, e colocando seu senso crítico e sua criatividade a serviço de um mundo mais justo, as crianças e jovens descobrem e ocupam seus espaços.
Ao menos três conclusões se impõem a partir do que foi aqui descrito e dos artigos e relatos de experiências que perpassarão as páginas desta edição.
Uma delas é que as crianças e jovens querem, podem e têm condições de participar. E é urgente que nós, adultos, os ajudemos a conquistar esse direito e, assim, direcionar as ações que envolvem crianças e adolescentes para fora do âmbito do assistencialismo, com o qual a sociedade costuma atender aqueles que ela considera “improdutivos ”e incapazes de dizer a própria palavra.
Outra é que eles não se constituem apenas na geração do futuro. Se for verdade que estarão mais presentes no futuro, é verdade, também, que têm muito a oferecer, hoje, à sociedade, com seu entusiasmo, irreverência, crítica e vontade de fazer acontecer.
Outra ainda é que essa geração de crianças e jovens tem mostrado que pode ser a semente de uma resistência sadia em relação a valores, de práticas saudáveis de tratar a terra, de amor à vida, de justiça e solidariedade.
Estas conclusões desafiam os governos e poderes públicos, desafiam especialmente os agricultores e agricultoras familiares e suas organizações representativas, na perspectiva de repensar suas práticas, seus espaços de reflexão e deliberação, considerando os jovens e crianças como protagonistas de processos.
Com esta edição, queremos contribuir com este debate.
Naidison de Quintella Baptista
coordenador do Movimento de Organização Comunitária – MOC
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Revista V2N1 – Infância e juventude no mundo rural