Dados recentes do IPCC, o Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas, revelam que os setores de energia, indústria, transporte e construção são responsáveis juntos por 79% das emissões de gases de efeito estufa, que contribuem diretamente para a alteração do clima. Essa situação coloca na ordem do dia a busca por fontes energéticas renováveis e menos poluentes, como a solar e a eólica, entre outras.
Já há alguns anos a região nordeste do país vem sendo apontada como grande candidata a produtora de energias limpas em razão da presença de sol e ventos constantes ao longo do ano. Poderia ser uma oportunidade não só de reduzir a dependência do país em relação ao petróleo como também mudar o padrão da matriz energética, projetando um sistema descentralizado e ao mesmo tempo integrado de geração de energia a partir de fontes renováveis. Mas não é bem isso o que está acontecendo.
A região Nordeste é hoje responsável por 86% da produção de energia eólica do Brasil, com destaque para a Caatinga, que abriga 78% de todas as turbinas instaladas no país. São 890 desses parques no Brasil, responsáveis por 13% de toda energia elétrica gerada. Até o fim do ano, a expectativa do setor é chegar a mil usinas. Os parques eólicos e as fazendas solares chegaram ao Semiárido com uma promessa de energia limpa, com retornos ambientais e financeiros para as comunidades. No entanto, os relatos das famílias que receberam torres eólicas em suas áreas ou na redondeza são o extremo oposto.
Famílias agricultoras do agreste pernambucano relatam infertilidade de animais, mortes e desaparição de espécies nativas. “Depois da implantação muitos animais cismaram e fugiram daqui”, declara uma agricultora da região que tem os aerogeradores instalados a apenas 150 metros de sua casa. Devido ao barulho dos aerogeradores, problemas de saúde como insônia, ansiedade, depressão e perda da audição se tornaram comuns entre os agricultores do local. O barulho dos motores é ininterrupto e perturbador. Para muitos, dormir agora só é possível com a ajuda de remédios. “O remédio para dor de cabeça era de 25 miligramas, agora é de 100. O para ansiedade era de 10, agora é de 150. O remédio para dormir era só um, agora são quatro. E, mesmo assim, não consigo dormir”, relata uma agricultora de Caetés, Pernambuco, atingida por um empreendimento eólico. Mesmo casas que não recebem as torres podem ser afetadas pela proximidade das instalações em casas vizinhas. Há casas em Caetés que estão a 150 metros de uma torre eólica. (Para conhecer mais as comunidades de Caetés assista Vento Agreste)
Há ainda situações em que as casas são afetadas e sofrem rachaduras causadas por explosões de pedras que são removidas para a instalação das torres. Moradores relatam que nunca obtiveram retorno das empresas responsáveis. Há também relatos de rachaduras nos solos e nas cisternas e casas dos moradores da região, que em alguns casos levou os agricultores a abandonarem suas casas e se mudarem para a cidade.
Relatório Anual do Desmatamento (RAD), divulgado pelo MapBiomas, revelou que, em 2022, mais de 4 mil hectares da caatinga foram desmatados devido às atividades das usinas de energia eólica e solar, incluindo as linhas de transmissão. Destes, segundo o relatório, os empreendimentos eólicos respondem por 1.087 ha. Em Pedra Lavada, na divisa RN-PB, a instalação do parque eólico da pode desmatar 1.600 ha de Caatinga, afetando a infiltração da água e recarga do lençol freático e aumentando a erosão.
Além da questão dos ruídos que não param, famílias atingidas relatam aumento do rompimento de laços comunitários por conta das negociações com as empresas. A abordagem das empresas é individual e sem dialogar com entidades representativas ou coletivas. A presença de representantes das empresas nos territórios enseja boatos de que um morador ou outro possa já estar negociando o arrendamento ou de que o valor do arrendamento de um terreno seja superior aos demais.
“É uma estratégia da empresa e isso é preocupante, porque muitas famílias estão sofrendo caladas”, adiciona. “Os que estão recebendo foram recomendados a não dar depoimento. As famílias não querem falar, porque o contrato de reforma assinado com a empresa também indica isso”, revelou um agricultor de Pernambuco ao Brasil de Fato. Os contratos de cessão de uso retiram das famílias agricultoras a autonomia sobre a gestão do uso do seu território. Espécies como coco, manga e caju são proibidas de ser cultivadas para não interferirem na captação dos ventos (confira aqui fotos produzidas pela ONG Conectas de empreendimentos eólicos na Chapada do Araripe).
Também na região, pesquisa com os moradores identificou o caso de uma comunidade que havia ingressado com o pedido para seu reconhecimento enquanto comunidade remanescente de quilombola. Mas representantes das empresas passaram a sugerir que o reconhecimento da comunidade como quilombola poderia atrapalhar no arrendamento dos terrenos. Como resultado, os próprios moradores passaram a evitar seguir com o processo e a suspender o envio da documentação necessária para a emissão do certificado. (Assista a respeito Os donos dos ventos).
A BBC News Brasil teve acesso a dois contratos oferecidos a agricultores por duas empresas diferentes em cidades do Nordeste. Além de autorizar a transferência da terra para outra empresa sem a necessidade do aval do proprietário, um dos documentos afirma que o contrato tem duração de 49 anos e informa que só pode ser rescindido pelo agricultor em “comum acordo” com a companhia. Por outro lado, as empresas têm o direito de quebrar o contrato a qualquer momento, sem custos, se o imóvel tiver algum problema que atrapalhe a produção. Ainda segundo a matéria da BBC, caso o proprietário descumpra obrigações que tenham força para rescindir o contrato, como o pagamento de taxas e impostos, a empresa pode cobrar uma multa de 30 vezes o valor recebido por ano pela energia gerada.
Isso tem acontecido porque como os empreendedores do setor geralmente não possuem terras no Brasil rural, o arrendamento por longos períodos é a forma mais comum de acesso aos territórios para a instalação das turbinas. Os territórios tradicionais nunca regularizados pelo poder público passaram então a ser alvo dessas empresas. Um mapeamento realizado pela UFBA identificou 585 associações de fundo de pasto e 1.092 comunidades vinculadas a elas na Bahia, mas o número pode ser muito maior.
Duas questões-chave nesse processo são a desorganização das comunidades e coletivos a partir da chegada das empresas no território e a obrigatoriedade de sigilo absoluto em torno da assinatura dos contratos, o que mantém as famílias isoladas com medo das altas multas contratuais. Na Paraíba, Ministério Público e Defensoria foram acionados pela sociedade civil para interceder contra medida do Conselho de Proteção Ambiental do Estado que derrubou a exigência constitucional de apresentação do estudo de Impacto ambiental e do relatório de impacto ao meio ambiente (EIA/Rima) na fase do requerimento de licença prévia.
Para o MPF, a consulta às comunidades tradicionais sobre licenças concedidas sem estudo de impacto ambiental deve ser feita pelos órgãos competentes e as licenças devem ser suspensas até que uma consulta prévia livre e informada seja realizada. As comunidades tradicionais têm formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Por isso, é fundamental que sejam consultadas previamente sobre projetos que possam impactar suas vidas, como manda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Em março último, pelo segundo ano consecutivo, a Marcha Pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, organizada pelo Polo da Borborema e AS-PTA, na Paraíba, levou milhares de mulheres às ruas para denunciar os impactos causados pelo atual modelo de exploração da energia eólica na região. A Marcha foi mobilizada pelo depoimento de mulheres atingidas pelos empreendimentos de “energia limpa” e pela defesa de um modelo energético que não seja concentrado em grandes obras e nas mãos de um punhado de investidores que fazem uso de financiamento público. A resistência aponta como caminho a produção de energia de forma descentralizada, com placas de captação dos raios do sol instaladas nos telhados das casas dos moradores e a venda do excedente energético. Assim como a água foi descentralizada no Semiárido a partir de ampla mobilização de organizações da sociedade civil e recursos públicos orientados para a implementação de cisternas de captação de água de chuva ao lado de cada casa rural, as famílias da Borborema pleiteiam esse mesmo princípio oriente a política energética e os investimentos na região. (Leia aqui a carta política da 14a. Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia)