A agrobiodiversidade pode ser entendida como a diversidade de espécies criadas, cultivadas, selecionadas e melhoradas nos sistemas agrícolas. As raças nativas e caipiras são hoje perdidas a taxas maiores do que as sementes crioulas. Apesar dessa situação crítica, o tema ainda não recebe a atenção necessária dada sua importância na segurança alimentar e na renda da agricultura familiar. Para contribuir com esse debate, a matéria especial deste Boletim destaca uma experiência de resgate da raça de porco Piau. Conversamos com Filipe Russo, guardião da raça de porco Piau, sítio Girassol, Goianá, MG, cuja íntegra da entrevista você lê a seguir.
O que é uma raça caipira e qual sua relação com as sementes crioulas?
Filipe Russo (FR) – A raça caipira pode ser também chamada de raça crioula ou autóctone, termo usado na Europa, que indica se tratar de uma raça que é daquele lugar. Quando a gente fala da raça crioula, estamos falando de uma raça que foi selecionada a partir de um sistema de produção. Essa seleção envolve um aspecto cultural que tem a ver com o jeito de produzir, com a história daquele agricultor e daquela comunidade e daquela região. Soma-se aí a alimentação dos animais. Isso significa que é possível ter uma raça crioula ou nativa sendo produzida no sistema industrial, mas aí não será caipira, já que o caipira é um sistema de produção. Portanto entendo que é melhor trabalhar com o conceito de sistema de produção caipira do que de raça caipira. A gente tem se dedicado esse sistema de produção caipira.
As sementes crioulas já têm uma narrativa e uma construção sistematizada. Então trabalhamos a ideia de raça crioula porque os conceitos são muito parecidos. Quando falamos de agrobiodiversidade não estamos falando só da biodiversidade vegetal uma vez que os animais são a base dos sistemas agroecológicos. É a partir dos animais que temos a produção de esterco, o reaproveitamento da produção vegetal e da produção de proteína para a família agricultora. Dessa forma, o sistema de produção caipira faz a ligação da produção animal com as demais produções de alimentos do agroecossistema, como feijão, batata-doce, inhame etc. As sobras dessas produções do sistema camponês são transformadas em proteína animal. O porco cumpre esse papel ambiental de contribuir na ciclagem de nutrientes dentro do sistema. O esterco é uma fonte de nutrientes para a produção vegetal e isso se integra com as demais produções do sítio. Essa integração traz a viabilidade econômica, ambiental, cultural, política e social. Do contrário, temos um agronegocinho, um sistema isolado só com o porco na propriedade. Quando a raça crioula se desconecta do sistema de produção caipira, temos uma mercadoria e não mais um produto que guarda aspectos culturais. É essa produção integrada que estamos chamando de sistema de produção caipira. O sociólogo Carlos Dória trabalha a ideia da função social do porco no sítio. O sistema caipira é conectado com a produção de banha, que durante muito tempo de nossa história foi uma fonte de energia, por mais que isso seja pouco discutido. Tem a ver também com a produção de torresmo, da carne, da carne conservada na banha. Se a gente for pegar o dia a dia do trabalhador rural, especialmente na Zona da Mata mineira, veremos que o porco está muito presente. Além disso tem a feijoada e as festas. Nesse período de final de ano é muito marcante as encomendas de leitões e do pernil de Natal. O Brasil consome muita carne de porco.
Conte um pouco como você iniciou o trabalho com o porco piau e como ele tem sido desenvolvido até os dias de hoje.
FR – Essa paixão na minha vida vem muito da relação e da memória afetiva do meu avô e da minha avó. Eles eram queijeiros e aqui em Minas geralmente o queijeiro produz porco também porque o soro é usado para tratar os porcos. Em Minas Gerais isso é muito presente. Eu tive muito contato com os meus avós na minha infância e me entusiasmava muito aquela fartura que o porco gerava para a família. Quando fui para o Norte de Minas, onde passei uma parte da minha vida, eu levei para lá uma porca Piau que havia ganhado do meu pai e lá comecei o resgate da raça. Esse trabalho despertou o interesse de outros agricultores e a gente começou a fazer esse trabalho. Algum tempo depois a UFMG começou a apoiar a prospecção para resgate da raça. Quando eu volto para a Zona da Mata, para o local de onde veio a família Russo, o trabalho começa a ganhar maior expressão. Tudo isso sempre foi inspirado no trabalho com as sementes crioulas. Fomos percebendo essa relação dos guardiões com as casas de sementes no semiárido, que aqui na Zona da Mata são os paióis, com as variedades de abóbora, com o inhame rosa, que é aqui é muito cultivado pelos imigrantes italianos, e como tudo isso está conectado com o sistema de produção caipira.
Como é o interesse de outros agricultores pelo porco piau?
FR – Nós tivemos um momento na história que a banha de porco foi condenada para dar lugar ao óleo de soja. O resgate da banha na alimentação está nos mostrando que essa campanha não vingou, assim como não vingou a revolução verde. A sabedoria popular é o que tem dado uma perspectiva de bem viver e de saúde para essa população que consome a banha de porco e carne de porco, mas o animal produzido de maneira ecológica, conectado com a sombra, com a terra e que come os alimentos da propriedade e da região. Muitos agricultores mostram interesse em ter um animal para a despesa da casa, para sua segurança alimentar. Isso acontece quando eles veem que a gente tem o Piau como era antigamente e que estamos fazendo esse resgate. Isso é importante para a conservação da raça. Tem produtor que não quer comercializar para uma charcutaria ou para um empório, ele quer ter esse porco para comer. Muitos agricultores nos procuram porque têm interesse em criar um ou dois leitões para engordar e tê-los para sua despesa, não querem criar. É um animal que vai consumir o excedente da produção vegetal da propriedade e que vai garantir para aquela família uma carne de qualidade e de sabor diferenciado.
Como está o mercado e as opções de comercialização hoje?
FR – Para além dessa produção da banha e da carne de lata, estamos buscando a charcutaria e a salumeria. Existe uma procura para esse tipo de carne maturada, que vem de uma tradição espanhola, portuguesa e italiana. As raças crioulas têm sido mais procuradas para esse tipo de produto porque garantem uma qualidade que o porco branco não garante. Alguns podem dizer que se trata de nicho de mercado, mas vejo isso mais como uma alternativa para a valorização desse tipo de produção e que ao mesmo tempo abre uma possibilidade para que os agricultores também consumam e tenham acesso a esse tipo de produto mais nobre, como copa e presunto cru.
Como você entende que deveria ser uma política pública de apoio às raças nativas e caipiras?
FR – Hoje há países na Europa que já definiram como lei a importância dessas raças porque essa é uma questão de soberania alimentar, tem a ver com a gente poder escolher o que vai comer. Essas raças foram trazidas de lá e aqui coevoluíram com a nossa cultura – e daí raça crioula – e com as pessoas que de lá vieram. As políticas públicas devem fomentar esse modo de produção, mas a pesquisa deve garantir que a conservação também seja tema do ensino nas escolas técnicas, agrícolas e de veterinária. Os estudantes devem ter contato com isso. A outra perspectiva é que existam fundos de fomento para a pesquisa específica de cada raça. A Embrapa Cenargen precisa de suporte para trabalhar a conservação dessas raças. Essas pesquisas são uma forma de retaguarda e devem ser feitas em conjunto com os criadores. Além disso, é importante dizer que a inspeção sanitária é um desafio. Estamos tentando dialogar com os órgãos competentes sobre a questão dos abatedouros ou do abate nas propriedades acompanhados por responsáveis técnicos da vigilância com a chancela do selo de inspeção municipal. Para isso estamos buscando experiências de outros estados e outros municípios para conseguir avançar. Mas de fato é um grande desafio conseguir legalizar essa produção para que ela chegue em outros mercados e nos centros urbanos.