Daniela Oliveira
Ipê e Antônio Prado são municípios da Serra Gaúcha, região com forte predominância da agricultura familiar. Formadas principalmente por descendentes de imigrantes italianos que chegaram a partir de 1870, as famílias rurais desses municípios possuem propriedades de 20 hectares em média. Suas principais atividades econômicas são a fruticultura – uva, pêssego, maçã –, a horticultura e a criação de frangos em sistema de integração com agroindústrias. A produção de gêneros processados – vinho, queijos, salames, doces e sucos –, seja destinada à comercialização ou ao consumo das famílias, também faz parte da tradição da agricultura local.
A modernização da agricultura na região teve início nos primeiros anos da década de 1980. Até então as unidades produtivas caracterizavam-se pelo baixo uso de agroquímicos, pelo plantio de trigo, soja e uva, pela criação de suínos e gado de corte e pela produção de alimentos para o consumo das famílias. Frente à queda dos preços dos suínos e às dificuldades na venda do trigo e da soja no final dos anos 1970, as famílias passaram a buscar fontes alternativas de renda. Foi nesse contexto que a modernização foi implantada, juntamente com o cultivo da maçã e, mais tarde, do pêssego, do alho e da cebola, todos baseados no uso intensivo de agroquímicos.
No entanto, a transformação da agricultura colonial numa agricultura modernizada não foi aceita por todas as famílias. Entre os fatores que explicam isso, destaca-se a falta de recursos financeiros para a introdução de novas atividades agrícolas e para a aquisição dos insumos que elas exigiam. Na ausência desses recursos, as famílias tinham como alternativa acessar o crédito rural, que na época era facilitado. No entanto, “o medo que o colono tem do banco”, devido ao risco que uma dívida pode representar à posse da terra, foi um importante obstáculo à modernização. Por último, havia o “medo dos venenos”, ou seja, um certo grau de resistência ao uso desses produtos por parte das famílias.
“[…] Outra coisa é que o pessoal sempre teve muito medo do banco e, pra investir na maçã, tinha que recorrer ao banco. Também é verdade que tem muito colono de Ipê que não gostou de trabalhar com veneno. Ele sabe que o veneno é um risco para a saúde […]” (agricultor entrevistado).
“[…] naquele tempo, em cinco anos, saíram mais de 20 famílias da nossa comunidade. Não tinham mais o que fazer aqui, a terra estava gasta e não tinham pra quem vender os produtos. Tinha família que fez empréstimo e não conseguiu pagar. Aqui na comunidade ficou quem tinha mais dinheiro e foi trabalhar com frutas, com fumo, com chiqueirão, com aviários ou com leite. A gente ouvia falar que tinha gente aqui em Ipê que estava na feira [ecológica] e estava ganhando dinheiro. Nós entramos por dinheiro, se não fosse a ecologia, nós teríamos ido pra cidade. A gente já tinha vendido muita coisa por causa das doenças na família e não dava pra plantar fruta, ter chiqueirão, aviário, essas coisas, porque a gente não tinha dinheiro pra investir e o Nono tinha medo do veneno e do banco […]” (agricultor entrevistado).
Foi nesse contexto que a opção pela transição agroecológica passou a constituir uma alternativa concreta para a agricultura de Ipê e Antônio Prado. Atualmente, ambos os municípios se destacam pelo número de famílias envolvidas na produção ecológica. Segundo informações do Centro Ecológico, ONG que presta assessoria a famílias agricultoras na região, em outubro de 2006 havia cerca de 70 famílias de agricultores ecologistas em Ipê e Antônio Prado, enquanto que nos demais municípios da Serra Gaúcha havia 180, sendo que a maioria delas não utilizava agrotóxicos e adubos químicos há mais de 10 anos.
O caráter inovador das experiências das famílias que ingressaram em trajetórias de transição agroecológica em Ipê e Antônio Prado não se limita ao manejo técnico que prescinde do emprego dos adubos químicos, agrotóxicos e sementes transgênicas. Diretamente associada a esse aspecto está a diversificação do trabalho das famílias com o fortalecimento das atividades de processamento em agroindústrias familiares ou associativas. Essa conjugação do redesenho dos agroecossistemas com as atividades de agroindustrialização em pequena escala proporcionou às famílias mecanismos de agregação de valor aos produtos agrícolas e a constituição de canais alternativos de comercialização.
Em outubro de 2006, existiam cinco agroindústrias familiares ou associativas legalizadas em Ipê e Antônio Prado. Praticamente todas as famílias de agricultores ecologistas levavam pelo menos algum de seus produtos para o processamento nessas unidades. Enquanto a maior parte da produção ecológica é comercializada in natura em feiras de Antônio Prado, Caxias do Sul, Flores da Cunha e Porto Alegre, os produtos processados são comercializados principalmente em lojas de produtos ecológicos em Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo e Rio de Janeiro (Quadro 1).
PLURIATIVIDADE E AGROECOLOGIA: UMA RELAÇÃO DE COMPLEMENTARIDADE
O termo pluriatividade expressa o fenômeno social que se generalizou no mundo rural a partir dos anos 1970 e corresponde à diversificação crescente das fontes de renda e da inserção profissional de membros de uma mesma família de agricultores (Schneider; 2003). Refere-se, portanto, a núcleos familiares que combinam a prática da agricultura com outras atividades, dentro ou fora da unidade produtiva.
Os estudos e debates sobre pluriatividade têm gerado muitas controvérsias. De forma geral, duas posições opostas podem ser identificadas. De um lado, estão aqueles que entendem o fenômeno como uma expressão negativa do desenvolvimento das relações capitalistas no campo e, mais recentemente, da modernização da agricultura. Para estes, as atividades realizadas fora da agricultura representam um incentivo de saída para o mundo urbano. De outro lado, estão os que percebem essa diversificação de ocupações como uma decorrência natural da evolução do mundo rural, que deixa de ser encarado somente como um espaço de produção agrícola. Trata-se, portanto, de uma estratégia das famílias agricultoras para se adaptarem e tirarem partido das novas oportunidades para geração de ocupação e renda.
Ao analisar o contexto da agricultura familiar de Ipê e Antônio Prado, podemos perceber que as famílias que seguiram pelo caminho da produção ecológica vêm se beneficiando mais dessas oportunidades do que aquelas que optaram pela modernização agroquímica. Para realizar essa comparação e entender a importância da pluriatividade para a proposta agroecológica, foram analisados os dados econômicos de dois grupos de famílias: o primeiro foi constituído por sete famílias ecologistas e o segundo por oito famílias que seguem produzindo de forma convencional.
OS COMPONENTES FORMADORES DA RENDA DAS FAMÍLIAS
A primeira conclusão que pode ser tirada da análise dos dados coletados junto às famílias estudadas é que a atividade agrícola permanece como a principal fonte de renda para a agricultura familiar da região. Em seguida, alinham-se as rendas obtidas com a pluriatividade, com os programas públicos de transferência de renda e os aluguéis de imóveis.
Quando comparamos os dois grupos de famílias, identificamos diferenças significativas (Gráfico 1). Podemos verificar, por exemplo, que os rendimentos das famílias ecologistas foram maiores tanto nas atividades agrícolas quanto na pluriatividade. Em 2006, quando os dados foram coletados, a renda líquida média da agricultura das famílias ecologistas era de R$ 20.238,00, enquanto que entre os agricultores convencionais era de R$ 13.277,00. Vários fatores contribuem para essa diferença, entre os quais destacamos os menores custos de produção (consumos intermediários) dos sistemas eco- lógicos quando comparados com os convencionais. Assim, enquanto os últimos tiveram gastos médios de R$ 8.924,00, os ecologistas desembolsaram em média R$ 5.411,00 para a aquisição de insumos.
Quando analisamos as rendas provenientes da pluriatividade, identifica-se que os ecologistas obtiveram um rendimento de R$ 15.852,00 (35% da renda total), valor bastante superior aos rendimentos dos não-ecologistas, que foi de R$ 8.082,00 (27% da renda total).
Portanto, a combinação de melhores rendimentos líquidos na agricultura com as maiores rendas da pluriatividade proporcionou às famílias ecologistas uma renda total superior à dos não-ecologistas.
Diferenças marcantes entre os dois grupos também podem ser observadas quando comparamos a natureza da pluriatividade (Gráfico 2). Três tipos de ocupação pluriativas podem ser identificadas em ambos os grupos: 1) para-agrícolas, ou seja, aquelas atividades diretamente ligadas à produção agrícola, tais como a agroindustrialização de produtos agrícolas; 2) de base agrária, que corresponde às atividades dentro do setor agrícola, mas fora da unidade produtiva da família, tais como a terceirização do transporte de produtos ou outras prestações de serviços em outras propriedades; 3) intersetoriais, ou seja, o trabalho em outros setores da economia local, tais como indústrias ou o setor de serviços.
Entre as famílias que produzem convencionalmente, a atividade pluriativa mais importante na formação da renda é a intersetorial, que gerou um rendimento médio de R$ 4.938,00. Já entre as ecologistas, a pluriatividade mais significativa em termos de geração de renda foi o trabalho nas agroindústrias familiares, sobretudo na produção de suco de uva e molho de tomate ecológico. A renda proveniente do processamento e da comercialização de alimentos foi de R$ 13.592,00 para as famílias ecologistas, enquanto foi de apenas R$ 2.206,00 para as convencionais.
Além de o processamento de alimentos ser o componente relativamente mais importante na formação da renda dos ecologistas, identificamos que a imobilização de capital em instalações destinadas à agroindustrialização de alimentos também é uma estratégia adotada por essas famílias – e exclusivamente por elas. Enquanto elas investiram em média R$ 69.033,00 na aquisição de máquinas, equipamentos e instalações destinadas à industrialização de alimentos (valores acumulados de 2000 a 2005), as famílias que produzem convencionalmente não realizaram investimento algum e continuam utilizando as cozinhas domésticas para o processamento de alimentos para o próprio consumo ou para a venda.
MOTIVAÇÕES PARA A PLURIATIVIDADE EM AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES
Diante dos dados coletados, cabe a pergunta: se em ambos os grupos a pluriatividade para-agrícola (beneficiamento, processamento e comercialização de alimentos) está presente, por que essa prática tem sido mais importante entre as famílias ecologistas?
Quando as próprias famílias ecologistas foram questionadas sobre isso, as respostas mais comuns foram a necessidade de melhorar a renda das famílias e a necessidade de aproveitamento total dos produtos ecológicos. Segundo os depoimentos, embora as feiras tenham se mostrado os principais espaços de comercialização de grande variedade de produtos e alimentos ecológicos in natura, elas não são capazes de escoar grandes volumes e, por isso, as famílias acabam dependendo de canais de venda no atacado. Além disso, como os produtos são perecíveis (frutas, hortaliças, etc.), a transformação em sucos, doces e polpas se mostra indispensável para evitar perda dos produtos não vendidos.
“[…] Nós começamos a trabalhar na ecologia tratando o parreiral, mas só um pedaço, e as framboesas também. No primeiro ano a gente vendeu tudo na feira. Era pouquinho produto, era levar e vendia tudo. Depois a gente foi aumentar o parreiral e resolvemos que, se era pra estar na ecologia, tinha que ser em tudo. Daí falamos com o pai e ele concordou em deixar a propriedade 100% ecológica. Só que daí não vendia mais tudo na feira. Imagina três hectares de uva na feira, não vende. Então a gente foi fazer suco. No começo nem a gente nem os técnicos sabiam de nada sobre fazer suco. A gente só o que conhecia era uma panela pequena que o técnico da Emater de Ipê trouxe aqui em casa. Daí a gente foi fazendo, vendendo e aprendendo”. (agricultor entrevistado)
“[…] Nós começamos com o suco por que a gente via o pessoal da Aecia fazer. A gente tinha uva sobrando, que não vendia na feira, e entregava pra cantina. Mas dava dó produzir na ecologia, cuidar sem veneno e entregar pra fazer vinho na cantina. Foi com aqueles da Aecia que a gente aprendeu. Teve um ano inclusive que a gente fazia o suco com a nossa uva e vendia pra eles venderem no comércio deles”. (agricultor entrevistado)
“[…] Naquele tempo era tudo novo, ninguém sabia nada, a gente tateava tudo. Hoje o cara entra na ecologia e tem aí as agroindústrias, as feiras, as lojinhas, os caminhões que vão pra São Paulo. Hoje é mais fácil”. (agricultor entrevistado)
“[…] Se não fosse a agroindústria a gente não tava mais na ecologia. A gente foi pra feira oito anos, mas quando a agroindústria ficou mais forte a gente largou a feira. Eu tenho prestado atenção e pra mim as famílias que saem da ecologia são aquelas que ficam só com a feira”. (agricultor entrevistado)
Além dessas motivações imediatas de diversificar as fontes de renda e evitar perdas de produção, os depoimentos das famílias ecologistas revelaram que a participação em grupos e associações foi uma condição determinante para que as agroindústrias fossem implantadas.
“[…] As nossas panelas, o jeito de fazer, tudo a gente aprendeu com as outras famílias”. (agricultor entrevistado)
“[…] Se eu não fosse da ecologia eu não me arriscava com agroindústria. Nós aqui trabalhamos no grupo, fazemos curso, tem a central de comercialização. Sem estas coisas como é que o colono vai saber como começar um negócio desse?” (agricultor entrevistado)
No grupo dos não-ecologistas os motivos principais para o processamento – nas cozinhas das famílias – e a comercialização de alimentos são a necessidade de melhorar a renda das famílias e a tradição familiar. No entanto, quando foram questionadas sobre um eventual investimento em agroindústrias, esse tipo de estratégia pareceu bastante distante do seu universo de possibilidades.
“[…] a gente nunca pensou nisto […]” (agricultor entrevistado)
“[…] a gente sabe que os ecologistas trabalham com as fábricas, mas a gente não sabe nem por onde começar […]” (agricultor entrevistado)
“[…] é muito gasto e parece que demora pra ganhar dinheiro. Eu tentei me informar um pouco, mas ninguém que eu perguntei sabia me dizer muita coisa direito […]” (agricultor entrevistado)
“[…] assim a gente faz o queijo e vende. Na verdade o gasto é só do leite. Numa agroindústria tem o gasto da fábrica, das máquinas, a firma que tem que abrir. Daí tem que produzir mais queijo e vai vender aonde? Os ecologistas fazem porque eles tão na feira, têm as lojas, tem lá no Ipê a Central deles, nós não temos estas coisas. Eu tentei me informar um pouco, mas ninguém que eu perguntei sabia me dizer muita coisa direito”. (agricultor entrevistado)
A realidade observada revela que ambos os grupos têm motivações para transformar os alimentos que produzem, mas somente as famílias ecologistas têm aproveitado as facilidades e oportunidades que a inserção na rede de produção agroecológica oferece, tais como: a experiência e o conhecimento acumulado pelas famílias, a assistência técnica e o acesso às redes de comercialização nas quais os produtos são vendidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência de Ipê e Antônio Prado (RS) mostra que a diversificação das fontes de renda é uma estratégia adotada tanto por famílias ecologistas como por não-ecologistas. Observamos ainda que a agroindustrialização e a comercialização de produtos agrícolas são os principais tipos de pluriatividade praticados por ambos os grupos. No entanto, vimos que a agroindustrialização é mais importante na formação da renda das famílias ecologistas e tem exigido maiores investimentos em suas unidades produtivas.
Além disso, a pluriatividade em agroindústrias familiares revela-se um mecanismo valioso de apoio à prática da agricultura ecológica, já que, à medida que as famílias avançam no processo de transição agroecológica, as feiras locais tornam-se insuficientes para o escoamento dos volumes produzidos.
Por sua vez, as famílias não-ecologistas, embora também possuam motivações para agroindustrializar seus produtos, não avançam nesse caminho por não terem acesso aos canais de intercâmbio, apoio e comercialização proporcionados pela rede de produção agroecológica.
Finalmente, podemos dizer que a principal conclusão que se tira dessa realidade é que a pluriatividade é uma estratégia importante para o fortalecimento da agricultura familiar como um todo. Entretanto, ela tem sido mais valorizada e aproveita- da pelas famílias que têm construído alternativas econômicas baseadas em estratégias de produção ecológica e que se asso- ciam para transformar e comercializar os seus produtos.
Daniela Oliveira
Eng. agrônoma, mestre em desenvolvimento rural e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural/ UFRGS.
[email protected]
Referências Bibliográficas:
MEIRELLES, L. B. Agricultura ecológica e agricultura familiar. 2007. Disponível em: <http://www.centroecologico.org.br>. Acesso em: 05 mai. 2006.
SCHNEIDER, S.; CONTERATO, Marcelo Antônio. Transformações agrárias, tipos de pluriatividade e desenvolvimento rural: considerações a partir do Brasil. In: NEIMAN, Guillermo; CRAVIOTTI, Clara. (Org.). Entre el campo y la ciudad: desafíos y estrategias de la pluriactividad en el agro. Buenos Aires: Ciccus, 2006.
SCHNEIDER, S. A pluriatividade na agricultura familiar. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. 254 p.
Baixe o artigo completo:
Revista V6N3 – A pluriatividade na transição agroecológica: a experiência dos agricultores ecologistas de Ipê (RS)