Esta edição da Revista Agriculturas representa o objeto de uma reflexão que caracteriza um avanço no pensamento agroecológico global. Afinal, é suficiente usar produtos naturais para garantir uma agricultura sustentável? Por diferentes ângulos, alguns dos autores de artigos aqui apresentados defendiam, já há mais de 25 anos, que a resposta é não. É necessário ir além da substituição dos insumos sintéticos pelos de origem biológica. Essa noção é bastante antiga, amplamente disseminada e está associada a cenários socioeconômicos de crise.
Há cerca de 2.300 anos, o Império Romano havia concentrado terras e depauperado recursos após a longa e exaustiva campanha contra os cartagineses. Nessa época, Cato, o Velho, produziu um dos primeiros tratados de agricultura conhecidos, no qual recomendava o uso de árvores como suporte para as videiras, de modo a obter lenha, já um bem de uso escasso na época. Setecentos anos depois, numa Roma que dependia dos grãos do Norte da África, Columela apontava que a culpa pelas baixas produções não era do envelhecimento natural da terra, mas da derrubada das florestas, que por isso não mais fertilizavam os solos com suas folhas.
No início dos anos 1940, os Estados Unidos haviam passado pela Grande Depressão e sofrido com as nuvens de poeira resultantes da erosão eólica, quadro agravado pela seca. Os dias se transformavam em noite, as chuvas traziam lama do céu e os migrantes abandonavam as planícies desnudas e empobrecidas do Arkansas e rumavam para a Califórnia, em busca de empregos. Desse contexto, surgiu The Ploughman ’s Folly (As loucuras do lavrador), obra de Edward H. Faulkner, que apregoava o que seria modernamente conceituado como plantio direto. Seu autor afirmava que os processos naturais de incorporação de matéria orgânica pela ação das minhocas eram muito mais eficientes e inteligentes do que revirar o solo com arados. Também dessa geração é a obra Tree Crops (Cultivos de árvores), de J. Russel Smith, que sugeria uma solução agroflorestal e silvipastoril para a erosão eólica e a degradação de solos na América do Norte e no mundo.
O final da década de 1970 trouxe os efeitos colaterais e os impactos ambientais e econômicos da ideologia da modernização conservadora da agricultura. Entretanto, junto com eles, vieram novas idéias e alternativas. No início dos anos 1980, a teoria da trofobiose, apresentada aqui no artigo da página 16, evidenciou o papel negativo que agrotóxicos e adubos químicos exerciam sobre o metabolismo e a saúde das plantas. As evidências mostravam que, ao desequilibrar processos metabólicos, os produtos químicos aplicados com a finalidade de fertilizar e proteger cultivos podiam gerar ambientes reprodutivos oportunos para insetos e fungos. Da mesma forma, fertilizantes podiam atuar como fitohormônios, assim como os fungicidas podiam agir como fertilizantes foliares. Os resultados variavam desde uma perda completa de safras por reprodução descontrolada de insetos ou fungos fitófagos até implicações inesperadas, como níveis elevados de toxicidade de alguns micronutrientes no solo ou nos tecidos das plantas pulverizadas.
Na mesma época, no campo do controle biológico, a noção inicial de manejar um cultivo agrícola, seus insetos-praga e seus respectivos inimigos biológicos evoluiu para o conceito de auto-regulação biótica no agroecossistema. As relações deixaram de ser concebidas como enfrentamentos entre a espécie predadora e a espécie praga para serem entendidas como relações ecológicas de equilíbrio na cadeia trófica que envolvem clima, plantas, solo e fauna. As ações de controle biológico passaram a ser analisadas em suas implicações e interações em diferentes níveis, desde a paisagem até aspectos genéticos das espécies envolvidas. A Agroecologia, como descrita no artigo da página 20, nasceu como ciência da integração de abordagens ecológicas aplicadas à Agronomia e incluiu uma visão da importância da dimensão socioeconômica na concepção da sustentabilidade dos sistemas de produção agrícolas.
De modo convergente a essas abordagens, a Etnoecologia se construiu integrando as ciências humanas e biológicas, assim como os saberes tradicionais e os saberes científicos. Junto com a Etnobiologia, ela forneceu ferramentas metodológicas fundamentais para desvendar o saber ecológico que os agricultores empregavam para manejar seus sistemas de produção, além de incorporar a visão local, etnológica, à resolução de problemas da agricultura. A introdução dessa perspectiva recuperou o fato de que há milhares de anos povos indígenas e populações tradicionais já haviam desenvolvido sistemas de manejo de recursos com base ecológica e de grande relevância para os desafios da sustentabilidade. Ao fazer isso, evidenciou que a sociodiversidade é importante e interligada de maneira vital à biodiversidade e agrobiodiversidade.
Nesse sentido, a erosão cultural pode estar intimamente ligada à erosão da diversidade de espécies e de ecossistemas. O estudo apresentado na página 29 identificou que viticultores que expandiram suas atividades produtivas das terras baixas para as encostas, portanto fora do alcance dos depósitos de aluvião, seguiram contando apenas com a fertilidade natural dos solos. Privados das benesses do rio e sem uma transmissão dos princípios ecológicos que essa proximidade trazia aos vinhedos, esses produtores encontraram problemas. Esse caso exemplifica como a erosão cultural, no caso entre gerações, pode gerar efeitos concretos e imediatos no campo ecológico.
Mas o que é, afinal, sustentável numa perspectiva de “ir além da substituição de insumos”? Um conceito fundamental para avançar nesse debate foi adaptado da engenharia de materiais para a Ecologia por C.S. Holling, em 1973. Chama-se resiliência, ou “a quantidade de distúrbio que um ecossistema pode suportar sem mudanças na estrutura e nos processos auto-organizados (definidos como estados estáveis alternativos)”. Pensemos numa barra de ferro usada como alavanca. Ela poderá entortar (indo para um estado alternativo) em situações extremas, ser endireitada (voltando a um dos estados alternativos estáveis) e novamente usada. Esse processo continuará até que a estrutura da barra sofra uma pequena fissura, que não terá como ser reparada e que aumentará pelo esforço seguido, até que a barra se rompa.
Como isso se dá na agricultura? Assumimos que a agricultura, em suas diferentes formas, é uma modificação que uma determinada organização social imprime num ecossistema para obter produtos e atender seus propósitos vitais, dentro de um determinado contexto econômico e cultural.
Essas modificações (ou distúrbios, no conceito de resiliência) afetam principalmente a estrutura e os processos dos ecossistemas. Em outras palavras, afetam primeiro a quantidade, a qualidade e o arranjo espacial e temporal dos componentes de um ecossistema. Espécies são eliminadas e substituídas, e os múltiplos andares e mosaicos de uma floresta ou de uma pastagem nativa são reduzidos ou eliminados.
A modificação da estrutura, por sua vez, afeta processos ecológicos, como Columela observou há 1.700 anos. Ao evitar a regeneração natural, por exemplo, eliminando os componentes considerados inúteis dos ecossistemas, o agricultor impede que diferentes processos auto-regulados ocorram. Entre outros, aqueles responsáveis por renovar a disponibilidade de nutrientes e conservar a umidade do ambiente. As plantas ou animais excluídos podem também ser recicladores de nutrientes específicos, ou ainda fazerem parte de complexas redes de predadores e pragas. Essas espécies podem exercer funções-chave no gerenciamento de um determinado ponto do equilíbrio ecológico daquele sistema. Assim, sua eliminação afetará estrutura e processos num efeito em cadeia.
O impacto indesejado ou colateral dessas perdas de estrutura e de processos é a redução da capacidade de auto-regulação. Com ela, vem o aumento da instabilidade e, conseqüentemente, o aumento do risco. Numa determinada magnitude do distúrbio, que será variável para diferentes ecossistemas, a instabilidade pode ser tanta que o sistema (ou o agroecossistema) será levado a condições irreversíveis. Nesses estados, ele não mais se estabilizará, mas sim seguirá em franca degradação. Em outras palavras, a perda da resiliência foi além de um patamar sustentável alternativo ao sistema original, que simplesmente entrou em colapso.
Então, como a humanidade logrou praticar agricultura durante tanto tempo, se a tendência é aumentarmos cada vez mais a magnitude dos distúrbios? A resposta foi adaptabilidade, ou seja, mudança comportamental: ler o ambiente, monitorar seus sinais vitais e mudar práticas e atitudes antes de o sistema entrar numa dinâmica de colapso. A capacidade de incorporar novos conhecimentos e visões é, portanto, a chave para a adaptatividade e a resiliência.
A primeira lição desse aprendizado é que não se trata apenas de desenvolver melhores adubos, insetos amigos, manejos florestais ou consórcios agroflorestais ecologicamente perfeitos. Fosse assim, as técnicas apregoadas por Cato, o Velho, e Columela teriam se tornado políticas oficiais do Império Romano, e não foi esse o caso. A questão é que as sociedades humanas estabeleceram uma rede complexa de relações entre si ao longo de milhares de anos e nem sempre prestaram atenção aos sinais da natureza que apontam a necessidade de mudar comportamentos. O resultado é que essas sociedades têm modificado ecossistemas em grande escala já há milênios e, nos últimos 150 anos, vem fazendo isso de forma dramática a ponto de influenciar o clima do planeta.
Como, então, aumentar a resiliência hoje? A chave é buscar entender tanto os sistemas naturais quanto as redes sociais e econômicas em suas interações. Primeiro, devemos compreender os princípios ecológicos envolvidos que ajudarão a desenvolver aplicações adequadas aos diferentes níveis e diferentes formas de modificações nos ecossistemas. Nesse sentido, o fato a encarar é que limites biofísicos são reais e imutáveis, enquanto que os limites políticos ou econômicos são realidades comportamentais mutáveis, embora complexas e delicadas. O ponto crítico é, portanto, harmonizar a diversidade e a manutenção da funcionalidade ecológica sem ignorar as determinações sociais, econômicas e políticas que imprimem distúrbios e condicionam sua magnitude. Mais além, devemos entender a origem dessas determinações na própria concepção de organização socio-econômica e como ela se materializa na agricultura. Afinal, a natureza do comportamento coletivo e das prioridades políticas de cada povo é expressão dessas concepções sociais, econômicas, culturais e, por que não, psicológicas.
Os artigos publicados nesta edição trazem exemplos locais e abordagens criativas para enfrentar esses desafios, tanto do ponto de vista biológico como social. E quais as nossas chances de uma agricultura sustentável? Do ponto de vista biológico, a resposta está em entender as redes ecológicas, suas estruturas e processos, desde o nível mais reduzido e micro, como os que ocorrem na biota do solo (como abordados nos artigos das páginas 7 e 11), até a visão de paisagem (como relatado nos textos das páginas 20, 24 e 29). Ao mesmo tempo, é preciso apreender a diversidade das organizações humanas, suas formas de aprendizado sobre as modificações que realiza nos ambientes, seus impactos e suas estratégias de adaptação.
Em última análise, parte da solução está nas redes de aprendizado e informação, em sua imensa diversidade de visões e de soluções locais, que devem interagir com a visão planetária e global emergente, o que pode dar direção e um futuro real às ações humanas. Finalmente, esse é o desafio: implementar formas de agricultura compatíveis com os processos ecológicos e biofísicos do planeta, num momento em que as mudanças climáticas são um fato a ser encarado e que colocarão à prova a resiliência social e ecológica das sociedades humanas.
Esta revista abre assim uma janela para algumas experiências locais relevantes e espera prestar sua humilde contribuição para essa tão necessária rede de reflexão e ação.
Jorge Luiz Vivan
consultor em manejo e conservação de recursos florestais, agroflorestais e desenvolvimento rural sustentável.
doutorando em recursos genéticos vegetais pela UFSC
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Revista V4N1 – Agricultura para um planeta em crise: processos ecológicos em ação