Em todo o mundo, proliferam experiências coletivas que demonstram como o enfoque agroecológico para o desenvolvimento dos sistemas agroalimentares é decisivo para a produção de alimentos saudáveis, para proteger o solo, a água e a biodiversidade, para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e para construir comunidades e economias mais resilientes e justas. No entanto, essas mesmas experiências revelam a existência de poderosos obstáculos político-institucionais que impedem a aplicação da perspectiva agroecológica em escalas sociais e geográficas mais amplas.
Paulo Petersen e Markus Arbenz
A oficialização, pelas Nações Unidas, da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável –Transformando Nosso Mundo colocou na ordem do dia da comunidade internacional um conjunto abrangente de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Em que pese a debilidade política desse documento enquanto instrumento vinculante das políticas nacionais, os ODS constituem um valioso marco referencial para orientar o desenho de estratégias para que os profundos desafios socioecológicos das sociedades contemporâneas sejam equacionados.
Esta edição da revista Agriculturas apresenta algumas experiências emblemáticas conduzidas em todos os continentes, apresentando a Agroecologia como uma promissora estratégia para o alcance dos ODS. Ao mesmo tempo em que apresentam as virtudes das iniciativas territorialmente referenciadas para a solução local de desafios que são também globais, os textos aqui publicados deixam claro que as promessas da Agroecologia só serão efetivadas em escalas mais amplas se as causas político-institucionais da crise sistêmica global forem enfrentadas.
UM MUNDO EM CRISE ESTRUTURAL
Segundo o historiador Immanuel Wallerstein, vivemos um tempo de bifurcação histórica. Um tempo que exige a tomada de decisões cruciais face às crises globais que se alimentam reciprocamente, expondo os limites da civilização moderna. Essa crise mostrou-se em cores vivas a partir de 2008, quando verificou-se um notável aumento na instabilidade global, com a intensificação das turbulências econômicas, políticas, sociais, ambientais e climáticas. Diante da convergência e da interconexão das crises ambientais e sociais históricas, já não há dúvida de que vivenciamos uma crise singular, de caráter estrutural. Crises estruturais exigem soluções estruturais.
Está cada vez mais claro que os sistemas agroalimentares despontam como a principal força motriz por trás das transformações biofísicas do planeta, ao mesmo tempo em que se apresentam como o setor econômico mais afetado por essas mesmas transformações. As condições ecológicas para a agricultura (solos férteis, biodiversidade, água limpa, clima estável) estão se deteriorando de maneira alarmante devido ao atual padrão de produção, processamento, distribuição e consumo dos alimentos. Resolver esse paradoxo é urgente.
A SAÍDA PELA AGROECOLOGIA
Segundo o relatório da Avaliação do Papel do Conhecimento, da Ciência e da Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento (IAASTD, na sigla em inglês) publicado em 2008, para que a agricultura deixe de ser um problema e passe a ser uma solução, é necessário que a perspectiva produtivista atualmente dominante dê lugar a uma abordagem que contemple a complexidade dos sistemas agropecuários em seus contextos socioambiencial da ONU pelo Direito à Alimentação, reiterou as conclusões do IAASTD, tendo ainda apontado a Agroecologia como o enfoque adequado para orientar as transformações necessárias nos sistemas agroalimentares. Outros estudos acadêmicos se seguiram, chegando a conclusões semelhantes (uma pequena seleção pode ser encontrada nas páginas 44-45).
De acordo com o Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (Ipes-Food), no lugar da uniformidade imposta pela via dos mercados globalizados, a Agroecologia promove a diversidade (da parcela de cultivo ao prato; do local ao global), restituindo à cidadania maior controle sobre os fluxos que encadeiam a produção ao consumo de alimentos.
Em que pesem as contundentes evidências das virtudes da Agroecologia como estratégia para enfrentar a grave crise socioecológica global, até o presente momento as instituições políticas responsáveis pela governança dos sistemas alimentares não se deixaram influenciar pelas recomendações apresentadas nos documentos oficiais divulgados na última década. Pelo contrário, a evolução recente dos arranjos institucionais globais nesse campo tem favorecido os processos massivos de apropriação privada dos bens da natureza (página 26), além de reiterar e aprofundar a perspectiva científico-tecnológica herdada da Revolução Verde agora apresentada com novas roupagens retóricas, como agricultura climaticamente inteligente e intensificação sustentável.
AS FORÇAS PROPULSORAS DA AGROECOLOGIA
Experiências orientadas pelos princípios da Agroecologia proliferam em todas as regiões do planeta. Muitos delas se expressam como reações ao domínio avassalador exercido pelos grandes conglomerados transnacionais sobre a agricultura. Agricultores familiares no México, por exemplo, estão guardando e produzindo sementes de variedades crioulas como forma de se contrapor à uniformização genética imposta pelo mercado de sementes. Em um contexto completamente diferente, na Holanda, os agricultores familiares organizam-se em cooperativas territoriais e em torno de práticas de manejo ecológico dos solos para fazer frente às regulamentações ambientais que favorecem unicamente os grandes estabelecimentos agrícolas industrializados (página 34).
Outras iniciativas se desdobram como respostas a situações de pobreza rural e/ou insegurança alimentar. Por exemplo, na Índia, novas práticas de produção de arroz foram desenvolvidas em função da necessidade de incremento dos rendimentos do cultivo, embora de- mandem o emprego de menos água, sementes, agrotóxicos e trabalho (página 30). Na Argentina, por sua vez, a crise econômica de 2001 levou os cidadãos de Rosário a transformar terrenos baldios em jardins que produzem legumes e verduras frescas e facilmente acessíveis (página 40). Em entrevista especialmente concedida para esta edição, Million Belay, coordenador da Aliança para a Soberania Alimentar na África (Afsa, pela sigla em inglês), também descreve como a Agroecologia pode contribuir para o enfrentamento da pobreza rural e urbana na África (página 18).
Sejam quais forem as suas motivações, essas trajetórias de inovação agroecológica correspondem a expressões de lutas de comunidades locais por autonomia e por emancipação frente a realidades sociopolíticas e econômicas asfixiantes. Ao desenvolver novas formas de produção, processamento, distribuição e consumo de alimentos, muitas dessas iniciativas contribuem para a relocalização dos sistemas agroalimentares e para a reapropriação de crescentes porções do poder político e dos valores econômicos expropriados pelos impérios alimentares. A disseminação das Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSAs) e dos mercados camponeses na última década é um testemunho dessa tendência promissora (página 10).
Redes de inovação agroecológica emergem, fomentando ambientes de diálogo de saberes e conhecimentos e contribuindo para a criação de trajetórias de emancipação econômica e política das famílias e comunidades rurais. Um aspecto recorrente e cada vez mais visível nesses processos de transformação social é o papel determinante que as mulheres desempenham ao acionarem seus conhecimentos, habilidades e valores. No território da Borborema, na Paraíba, por exemplo, uma vigorosa rede de agricultoras-experimentadoras tem estabelecido o vínculo direto entre suas experiências em Agroecologia e as reflexões sobre desigualdades de gênero e as diferentes formas de violência a que estão submetidas, com isso imprimindo mudanças significativas na vida material e social de centenas de mulheres (página 22).
Embora quando analisadas individualmente essas experiências emergentes possam parecer irrelevantes ou inofensivas, em conjunto revelam a grande potência do enfoque agroecológico. Retirar essas experiências da invisibilidade e do isolamento constitui, portanto, um dos grandes desafios no atual momento em que a Agroecologia, finalmente, começa a ser oficialmente reconhecida.
Nesse contexto, o movimento global de agricultura orgânica, que tem sua origem ligada aos princípios agroecológicos, apresenta-se como importante força social e política para a transformação dos sistemas agroalimentares. É nesse sentido que os movimentos de Agroecologia e de agricultura orgânica podem atuar de forma sinérgica, contribuindo decisivamente para o alcance dos ODS (página 21).
A NECESSIDADE DE UMA NOVA GERAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Sob a insígnia “localmente enraizada, globalmente conectada”, a Rede AgriCulturas (www.agriculturesnet- work.org) se empenha desde a década de 1980 na identificação, na sistematização e na ampla divulgação de ensinamentos relacionados a iniciativas de Agroecologia que se disseminam mundo afora (página 46). Todas essas décadas de documentação revelam que a Agroecologia é uma construção social movida pelas convergências e disputas entre agentes econômicos e sociopolíticos em espaços territoriais definidos. Isso significa que a propagação das práticas sociais coerentes com o enfoque agroecológico não ocorrerá por meio de iniciativas tecnocráticas concebidas fora dos contextos socioambientais e culturais nas quais serão aplicadas.
Objetivamente, esse fato implica a necessidade de uma nova geração de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam o papel das instituições locais, especialmente das organizações da agricultura familiar, na regulação dos sistemas agroalimentares e no desenvolvimento territorial. Essas novas políticas, que só podem ser formuladas e implementadas em ambientes institucionais democráticos, devem incentivar a conformação e/ou o fortalecimento de redes alimentares alternativas que envolvam agricultores(as) e outros atores locais. Foi exatamente o que ocorreu na cidade de Nova York, particularmente com o desenvolvimento de um arranjo institucional inovador que reconhece e valoriza o papel dos agricultores orgânicos como agentes de proteção das fontes de água saudável para os habitantes da megalópole (página 14). Em sua coluna publicada na página 33, Elizabeth Mpofu, coordenadora geral da Via Campesina, discute aspectos centrais do marco institucional e político necessário para que que a Agroecologia seja promovida em escala, contribuindo para o alcance dos ODS.
RUMO À EFETIVAÇÃO DOS ODS
Trajetórias de inovação agroecológica são orientadas pelo reconhecimento, valorização, recombinação e aperfeiçoamento dos recursos locais, sejam eles materiais ou sociais, gerando respostas combinadas a varia- dos interesses e objetivos estratégicos definidos e negociados nas redes locais. Essas trajetórias desenvolvem o potencial multifuncional da agricultura, gerando resultados positivos em termos econômicos, sociais, ambientais, culturais e políticos. Dessa forma, elas contribuem localmente para a efetivação de vários ODS.
Preparada por ocasião do segundo Simpósio Internacional sobre Agroecologia, organizado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), esta edição especial da revista Agriculturas apresenta uma pequena coletânea de artigos recentemente publicados nas várias revistas regionais e globais editadas pela Rede AgriCulturas. Os artigos selecionados retratam experiências sistematizadas em diferentes continentes nas quais a Agroecologia vem sendo colocada em prática em escalas sociais significativas. Procuramos evidenciar por meio dos exemplos aqui publicados a relevância dessas iniciativas na geração de contribuições consistentes para a Agenda 2030. Reafirmamos assim o grande potencial da Agroecologia, especialmente quando lhe são assegura- das as condições políticas e institucionais para que ganhe escala social e geográfica, contribuindo para que a humanidade enverede pelo caminho mais promissor diante da bifurcação histórica com a qual se depara.
Paulo Petersen
([email protected]) é coordenador-exe- cutivo da AS-PTA (integrante da Rede AgriCulturas) e vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia.
Markus Arbenz
([email protected]) é diretor-executivo da Federação Internacional de Movimentos de Agricultura Orgânica (Ifoam, na sigla em inglês)
Baixe o artigo completo:
Agriculturas V14,N1 – Aumento de escala da Agroecologia: uma questão política