Paulo André Niederle
Nos últimos meses, dois alimentos roubaram a cena das commodities agrícolas no noticiário econômico e político nacional. As adulterações na composição do leite e o aumento do preço do tomate evidenciaram duas faces de um mesmo problema: a incapacidade do sistema agroalimentar em garantir segurança e soberania alimentar para a moderna sociedade do consumo.
A fraude no processamento do leite pela adição indevida de formol não foi apenas o resultado da ação criminosa de determinados agentes econômicos. Foi, antes de tudo, consequência da própria incapacidade das empresas, cujos sistemas peritos e mecanismos de rastreabilidade falharam em assegurar o abastecimento regular e a qualidade dos alimentos. O problema é generalizado, sendo o leite apenas a expressão mais recente de uma série de crises que se tornaram cada vez mais recorrentes no ramo alimentar (só este ano, detectou-se detergente industrial nos sucos de soja e carne de cavalo nos hambúrgueres). Entretanto, o que se tornou particularmente perturbador nesses eventos foi o modo como eles foram retirados da agenda pública, não exatamente em virtude da resolução dos crimes, mas pela desresponsabilização dos agentes envolvidos em verdadeiros atentados à saúde pública, cujos piores efeitos ainda serão potencialmente percebidos pelos consumidores dentro de alguns anos. Em nenhum momento a mídia hegemônica foi capaz de discutir as causas mais profundas dessas crises alimentares. Nada foi dito, por exemplo, sobre a inexistência de uma agência pública com capacidade efetiva de regular a produção e a distribuição dos alimentos no Brasil. Mas como falar em regulação estatal em tempos de incessante ataque aos exagerados gastos públicos? Gastos supostamente ainda mais culpados que os tomates pelo descontrole da economia nacional.
Condenado até a alma pela imprensa, o tomate não passou de bode expiatório de uma famigerada campanha que fez do aumento da inflação a principal bandeira de uma guerra contra a política econômica (quiçá a favor dos rentistas).
Obviamente, seria ingênuo desprezar os efeitos do aumento generalizado dos preços sobre a renda da população, sobretudo aquela de menor poder aquisitivo. Igualmente, seria um erro desconsiderar os impactos da elevação do preço dos alimentos na composição dos índices inflacionários no período recente. No entanto, a rigor, essas questões não constituem a raiz dos problemas. São apenas consequências superficiais (embora importantes) dos equívocos de uma política que preteriu a produção de alimentos em prol da exportação de commodities que sustentam nossa balança comercial. Para além da incompreensão das especificidades da agricultura enquanto setor econômico – especialmente no que diz respeito à influência da sazonalidade sobre os preços agrícolas –, o que espantou na crise dos tomates foi a indisposição dos analistas em falar de algumas razões básicas da inflação alimentar, dentre elas, a disparidade entre o montante de recursos concedido para ampliar a produção de commodities, fibras e matérias-primas e aquele destinado ao investimento em sistemas ecologicamente intensivos de produção de alimentos.
Ao mesmo tempo, nenhuma referência incisiva foi feita à irracionalidade dos modernos sistemas de abastecimento e provisão alimentar, responsáveis por volumes alarmantes de perda e desperdício de alimentos (um crime que ocasiona a morte de milhões de pessoas anualmente). Relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) publicado em 2011 sustenta que um terço dos alimentos produzidos no mundo para consumo humano é perdido ou desperdiçado, o que representa 1,3 bilhões de toneladas por ano. Nesse sentido, basta lembrar que, em 2012, vários agricultores do interior de São Paulo viram suas produções de tomate apodrecer nas lavouras e nas caixas porque o preço reduzido não cobria os custos de colheita, transporte e comercialização. A inexistência de po- líticas adequadas para dar destinação ao produto e cobrir os prejuízos da safra desestimulou os produtores, que decidiram diminuir a área plantada e a produção. O aumento considerável do preço era uma tragédia anunciada, que poderia ter sido evitada com o uso de instrumentos simples de política agrícola que garantissem preços adequados e a redução dos custos de produção e beneficiamento dos alimentos.
Na origem de ambos os eventos, envolvendo o leite e o tomate, está um importante fenômeno que se configurou ao longo das últimas décadas, qual seja, uma mudança nos regimes de responsabilização (accountability) no sistema agroalimentar. Resumidamente, a responsabilidade pelo aprovisionamento alimentar, que outrora era das famílias e comunidades, com o processo de urbanização e industrialização foi transferido para o Estado (com suas imensas centrais de abastecimento). Já nos anos 1990, com a ascensão neoliberal, esse encargo passou para as mãos de oligopólios globais controlados pelo capital financeiro.
Para quem tem alguma dúvida a esse respeito, basta observar a expansão dos impérios do setor de varejo alimentar: em 2013, a rede Wal-Mart alcançou o segundo lugar no ranking das maiores empresas do mundo, publicado pela Revista Fortune. As consequências desse fenômeno são diversas, afetando não só o aumento da volatilidade dos preços dos alimentos, mas também questões como soberania e segurança alimentar; saúde pública, sanidade e qualidade nutricional; sociobiodiversidade e preservação do patrimônio natural e cultural; e sobrevivência dos agricultores familiares e das comunidades rurais, com suas práticas, costumes e saberes alimentares tradicionais.
Em oposição aos processos de desterritorialização, artificialização, padronização e oligopolização da produção e do consumo alimentar, uma série de movimentos sociais se constituiu nos últimos anos. Apesar dos diversos matizes políticos, esses movimentos compartilham a reivindicação por mudanças mais ou menos radicais nos sistemas de aprovisionamento alimentar. A construção de redes alternativas passou a ser o foco privilegiado da atenção de grupos sociais propondo que as pessoas, as famílias, as comunidades, os territórios e o próprio Estado reassumam a responsabilidade pelas práticas de produção, distribuição e consumo. Atualmente, o crescimento de um conjunto de novos mercados é a expressão das estratégias que permitem a esses grupos retomar o direito de decisão soberana sobre o tipo de alimentação e de vida que valorizam. É isso, afinal, que diferentes movimentos têm proposto sob o signo de distintos mecanismos de requalificação dos alimentos (agroecológicos, orgânicos, naturais, tradicionais, caseiros, coloniais, de origem, comércio justo e solidário, da reforma agrária, da agricultura urbana, etc.): retomar para si a responsabilidade pela alimentação enquanto prática sociocultural, desenvolvendo formas inovadoras de produção e consumo mais adequadas às aspirações de uma nova relação sociedade-natureza.
Ao mesmo tempo, esses movi- mentos sabem que é preciso cobrar do Estado um papel mais ativo na garantia desse direito. Primeiramente, são necessárias políticas que regulamentem o funcionamento dos mercados alimentares. Isso envolve desde a coerção a fraudes e adulterações no processa- mento alimentar até o controle de certas práticas abusivas de empresas que se apropriam de valores sociais para vender alimentos caseiros e coloniais produzidos em gigantescas estruturas industriais. É importante haver também um controle mais efetivo sobre o começo da cadeia produtiva, a agricultura. Neste caso, a agenda de reivindicações recai sobre o uso indiscriminado de agrotóxicos e os riscos ecológicos e sociais da transgenia, associados ainda aos índices assustadores de erosão genética e perda de biodiversidade global ocasionada pela agricultura industrial (NODARI et al., 2011). Em segundo lugar, o Estado deve garantir as condições para que esses grupos e movimentos construam seus próprios projetos de vida. Para tanto, são necessárias políticas públicas que incentivem sistemas alternativos de produção e consumo alimentar. A construção da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) caminha apenas timidamente nesse sentido, uma vez que, mesmo reconhecendo a contribuição estratégica da Agroecologia à segurança e soberania alimentar, acaba ratificando um enfoque voltado primeiramente à ampliação de um segmento econômico emergente, a agricultura orgânica. Finalmente, o Estado pode agir de maneira proativa por meio da ampliação dos mercados institucionais para produtos da agricultura familiar, incorporando de forma mais efetiva alimentos agroecológicos, da sociobiodiversidade, regionais e tradicionais em programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Pro- grama Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) e na própria Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) (SCHMITT; GRISA, 2013).
A partir de diferentes abordagens, essas questões estão ilustradas no conjunto de artigos que compõe esta edição da Revista Agriculturas, dedicada ao tema da construção social de mercados. O foco recai sobre uma gama de iniciativas que promovem a aproximação entre produtores e consumidores por meio da revitalização de redes alimentares alternativas, as quais têm se revelado mecanismos importantes para a realização econômica dos sistemas agroecológicos de produção, ao mesmo tempo em que favorecem a reprodução das culturas alimentares regionais. Mediadores da emergência de novos padrões de produção e consumo, esses mercados têm merecido crescente atenção por parte dos movimentos sociais, pesquisadores e formuladores de políticas públicas.
A redação dos artigos para esta edição foi orientada por algumas questões centrais: Quais estratégias estão sendo desenvolvidas pelas famílias agricultoras e suas organizações para enfrentar os novos desafios impostos pela dominação dos mercados agrícolas por grandes corporações? O que os agricultores fazem para se tornar mais resilientes às ameaças decorrentes da flutuação dos preços, das mudanças climáticas e da ação de instituições hostis aos seus modos de produção? Como o desenvolvimento de mercados locais e circuitos curtos de comercialização pode catalisar a construção de meios de vida sustentáveis para os agricultores familiares? Como a construção de novos mercados pode fortalecer a autonomia dos agricultores familiares? Qual papel o Estado vem desempenhando nesse contexto de mudanças nos circuitos de produção e consumo alimentar?
Inicialmente, o texto assinado por Moacir Darolt, Claire Lamine e Alfio Brandenburg discute a proliferação de distintos formatos de circuitos curtos de comercialização de alimentos ecológicos. A partir de evidências buscadas em casos do Brasil e da França, os autores demonstram como esses novos mercados convergem para uma transformação das relações de poder no âmbito dos sistemas alimentares, conferindo um maior peso e participação de consumidores e produtores. Nesses termos, demonstram como o processo de construção de mercados favorece o aprendizado de novas práticas democráticas que se tornam fontes de empoderamento e formação de consumidores politizados.
Em seguida, Marcio Gomes da Silva e Paulo César Gomes Amorim Júnior analisam uma das experiências mais exitosas de construção social e política de circuitos de comercialização para a agricultura familiar no Brasil, a saber, os chamados mercados institucionais . A partir do caso da Cooperativa da Agricultura Familiar Solidária de Espera Feliz (Coofeliz), em Minas Gerais, os autores discutem as mudanças organizacionais necessárias para promover um intrinca- do processo de intercompreensão entre diferentes agentes envolvidos na dinâmica do mercado: agricultores, técnicos, professores, nutricionistas, gestores públicos. O primeiro exemplo analisado refere-se à construção de ambientes de interação agroecológica como espaços de troca de conheci- mentos entre os agentes do mercado acerca das práticas de manejo agroecológico, qualidade do produto e formas de armazenamento. Trata-se de um modelo singular de diálogo que busca estabelecer entendimentos e compromissos comuns entre os atores sociais com vistas a viabilizar a expansão do mercado. O segundo exemplo é do vale solidário, uma moeda social implementada pela cooperativa em parceria com estabelecimentos comerciais locais. Inicialmente criado como solução para os atrasos no pagamento das compras governamentais, o sistema produziu uma importante dinâmica de desenvolvimento local com efeitos que envolvem desde a redinamização do pequeno varejo local até o fortalecimento das relações sociais de confiança.
Outro texto que explora as interfaces entre a produção agroecológica e a construção dos mercados institucionais é aquele assinado por Cláudio Becker, Fabiana da Silva Anderson e Paulo Mielke de Medeiros. A partir do caso da Cooperativa Sul Ecológica, no Rio Grande do Sul, os autores discutem as inovações institucionais e organizacionais necessárias para a operação de programas como o PAA e o PNAE. Um dos aspectos abordados diz respeito à certificação da produção orgânica por meio da formalização de uma Organização de Controle Social (OCS). Trata-se de um dispositivo legalmente constituído que permite aos agricultores familiares atuar de maneira proativa na construção do mercado ou, mais especificamente, nos processos de avaliação da conformidade e garantia da qualidade orgânica. Como definem os autores, o sistema participativo de certificação institucionaliza a confiança estabelecida entre os produtores e destes com os consumidores. Ao mesmo tempo, o artigo não se furta a analisar as inúmeras dificuldades para os agricultores familiares atuarem nos mercados institucionais: Este mercado, ora em construção, desafia a capacidade organizativa e de articulação com os demais segmentos sociais envolvidos, visando consolidar esta via singular de abastecimento e consumo.
O artigo de Oscar Rover e Felipe Lampa explora a experiência de construção social de mercados pela Rede Ecovida de Agroecologia, um dos exemplos mais complexos de articulação de atores e organizações sociais construído no Brasil meridional ao longo das últimas décadas. Com um foco de ação voltado à transformação dos sistemas de produção e aprovisionamento alimentar, a Ecovida constituiu-se primeiramente a partir das experiências das feiras-livres, as quais se tornaram espaços sociais privilegiados de trocas econômicas e socioculturais. Nos anos recentes, contudo, a Ecovida viu sua ação se expandir para novos circuitos de comércio, em particular os mercados institucionais criados pelo Estado. Nesse artigo, os autores também abordam a emergência de algumas experiências ainda mais recentes e inovadoras, como é o caso do Box de Produtos Orgânicos, inaugurado junto à Ceasa/SC, na Grande Florianópolis. Ao mesmo tempo, apontam para os riscos decorrentes da inserção em mercados mais abrangentes, algumas vezes por meio de atacadistas e varejistas convencionais, os quais podem imprimir uma lógica mercantil corrosiva às relações de reciprocidade que sempre estiveram muito presentes na organização da rede. Assim, segundo Rover e Lampa, se, por um lado, essas iniciativas refletem o pioneirismo da Ecovida em relação à abertura de possibilidades comerciais para o fortalecimento da agricultura familiar agroecológica, por outro, a necessidade de responder às demandas do mercado, […] pressiona a organização na medida em que exige níveis cada vez mais altos de eficiência e coordenação da cadeia.
Esta edição de Agriculturas traz ainda dois artigos relatando experiências internacionais de construção social de mercados. Ross Mary Borja e colaboradores discutem a constituição de sistemas agroalimentares localizados na Serra Central do Equador. O artigo analisa o processo de construção das cestas comunitárias enquanto mecanismos de compra coletiva por meio dos quais se produz uma importante reconexão entre produtores e consumidores. Segundo os autores, a criação das cestas permitiu fortalecer as organizações comunitárias, estabilizar o mercado, reduzir custos de produção e definir preços justos. Mas há efeitos ainda mais importantes decorrentes do aprendizado dinâmico que se estabeleceu a partir das interações entre produtores e consumidores, provocando inovações em direção a modelos mais sustentáveis de agricultura. Exemplo disso é a diversificação e a introdução de variedades tradicionais de alimentos nas cestas comunitárias.
Finalmente, o artigo de Katrien van’t Hooft demonstra que as mudanças em curso no Brasil e na América Latina no que diz respeito à emergência de redes alimentares alternativas encontram congêneres na agricultura europeia. A partir do caso holandês, a autora apresenta o potencial inovador dos mercados diretos para produtos de qualidade diferenciada, como orgânicos ou variedades e raças tradicionais. Esses produtos têm atraído crescente atenção de novos grupos de consumidores politizados adeptos do local e do sustentável. Como descrito pela autora, local for local é a nova tendência de um modelo emergente que incentiva as pessoas a consumir alimentos produzidos nas suas próprias regiões.
Todas essas experiências compartilham a crítica ao modelo agroalimentar predominante, mas também o anseio de diferentes grupos sociais em construir novas redes de produção e consumo, retomando para si mesmos (e para o Estado) a responsabilidade (e o direito) de fazer as escolhas alimentares que definem seus modos de vida. Se tais experiências têm condições de confluir para uma mudança radical no modo como a sociedade contemporânea se relaciona com a comida, com a natureza e com os mercados, somente o tempo poderá responder. Contudo, a cada nova crise que desponta, seja inflacionária ou sanitária, restam menos dúvidas de que a quebra de paradigmas é uma precondição para nosso futuro comum.
Paulo André Niederle
doutor em Ciências Sociais, professor do PPGMADE/URPR
[email protected]
Referências Bibliográficas:
FRIEDMANN, H. Feeding the Empire: the pathologies of globalized agriculture. In: MILIBAND, R. (Ed.). The socialist register. London: Merlin Press, 2004. p. 124-143.
McMICHEL, P. A food regime genealogy. Journal of Peasant Studies, v. 36, n. 1, p. 139-169, 2009.
NODARI, R. O. ; TENFEN, S.Z.A. ; DONAZZOLO, J. Biodiversidade: ameaças e contaminação por transgenes. Revista Internacional de Direito e Cidadania, Biodiversidade, p. 1-13, 2011. Edição Especial.
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Global food losses and food waste: extent, causes and prevent. Roma: FAO, 2011. Disponível em: <http://www.fao.org/docrep/014/mb060e/mb060e00.pdf>. Acesso em: 30 de junho 2013.
PLOEG, J.D. van der. Camponeses e Impérios Alimenta- res: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: UFRGS, 2008.
SCHMITT, C.; GRISA, C. Agroecologia, mercados e políticas públicas: uma análise a partir dos instrumentos de ação governamental. In: NIEDERLE, P.; ALMEIDA, L.; VEZZANI, F.M. (Org.). Agroecologia : práticas, mercados e políticas para uma nova agricultura. Curitiba: Kairós, 2013. p. 215-265.
Baixe o artigo completo:
Revista V10N2 – Construção social de mercados e novos regimes de responsabilização no sistema agroalimentar