Francileia Paula
O direito humano à Alimentação Adequada e saudável (DHAA), reconhecido no artigo 6º da Constituição Federal brasileira a partir de 2010, deve ser garantido a todas as pessoas por meio do acesso regular, permanente e irrestrito a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às tradições culturais do seu povo e que assegure uma vida livre da fome, digna e plena nas dimensões física e mental, individual e coletiva (CONSEA 2010).
A alimentação brasileira, com suas particularidades regionais, é uma das expressões do processo histórico e de intercâmbio cultural entre os diferentes povos que formaram o país. Por- tanto, é preciso considerar a legitimidade dos saberes oriundos da cultura, da religião e da ciência, respeitar e valorizar as diferentes expressões da identidade e da cultura alimentar da população, reconhecendo e difundindo a riqueza incomensurável dos alimentos, das preparações, das combinações e das práticas alimentares locais e regionais.
O agroextrativismo é uma das práticas promotoras do DHAA, na medida em que contribui com o resgate da cultura alimentar regional/local e vincula a produção de alimentos ao território e às relações sociais que nele se estabelecem.
Na região sudoeste do Mato Grosso, há diversos grupos de mulheres agroextrativistas que trabalham na coleta e no beneficiamento de frutos do cerrado. A região faz fronteira com a Bolívia e vem sendo marcada pelo avanço da monocultura da cana-de-açúcar e da pecuária bovina, fato responsável pelos extensivos processos de desmatamento. Outra característica da região é a coexistência de povos e comunidades tradicionais, que ao longo dos tempos acumularam uma gama de saberes e conhecimentos sobre o manejo sustentável da agrobiodiversidade local, com muitas populações migrantes, que, em geral, desconhecem a dinâmica do bioma cerrado.
O intercâmbio de saberes entre essas populações – migrantes e agricultores (as) tradicionais –sobre agroextrativismo e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), promovido com o apoio e a assessoria da ONG Fase, tem contribuído para o fortalecimento da resistência camponesa ao modelo de produção hegemônico no estado e para a conservação e a valorização dos alimentos da região.
Este artigo tem como objetivos apresentar a experiência da Associação Regional das Produtoras Extrativistas do Pantanal (Arpep) no aproveitamento e beneficiamento de frutos do cerrado e refletir sobre sua contribuição para a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável e o fortalecimento da organização econômica das mulheres extrativistas.
MULHERES EM LUTA
A Arpep reúne 30 mulheres agroextrativistas de três assentamentos rurais e uma comunidade tradicional nos municípios de Cáceres e Mirassol D’Oeste, localizados na região de transição do Cerrado matogrossense com o Pantanal, ao sudoeste do Mato Grosso. Essas mulheres fazem o aproveitamento e o beneficiamento de frutos abundantes na região, como o pequi (Caryocar brasiliense) , o babaçu (Orbignya phalerata ) e o cumbaru ( Dipteryx alata), sendo os produtos comercializados pela associação.
A experiência teve como ponto de partida a participação das mulheres em atividades de mobilização realizadas pela Fase no ano de 2005. A proposta tinha como objetivo promover o debate junto às comunidades sobre a construção de alternativas ao agronegócio e a importância da diversificação da produção, da valorização das mulheres no campo e do manejo sustentável dos agroecossistemas para a garantia da SAN das famílias camponesas da região.
Um dos desdobramentos desse processo foi a formação de grupos agroextrativistas protagonizados pelas mulheres a partir de projetos demonstrativos de manejo e beneficiamento dos frutos do cerrado (pequi, cumbaru e babaçu). Como resultado dessa articulação em rede e dos intercâmbios é que surge a Arpep, uma associação de caráter regional que visa à garantia da autonomia produtiva e econômica de grupos de mulheres rurais por meio do manejo agroecológico dos agroecossistemas para a produção de alimentos saudáveis.
O caminho percorrido até aqui foi difícil e exigiu muita persistência e coragem para vencer a desconfiança inicial e a falta de apoio do poder público e das próprias comunidades, assim como o machismo por parte dos maridos e companheiros, que consideravam que a iniciativa era perda de tempo e que o extrativismo não traria nenhum retorno financeiro.
“No começo não tínhamos apoio nem de nossos maridos, que diziam que isso não ia dar em nada e era perda de tempo. Comercializar os produtos então era muito difícil”. (Érica Sato –Presidente da Arpep)
Não se trata de uma fala isolada, mas de um relato recorrente das demais participantes da Arpep, revelando a enorme desvalorização do trabalho das mulheres. Esse contexto de invisibilidade e desvalorização também foi identificado em diversas experiências sistematizadas pelo Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (GT Mulheres da ANA) (CARDOSO; SCHOTTZ, 2009). Frente a esse cenário, as estratégias adotadas pelas mulheres da Arpep foram o fortalecimento da dinâmica organizativa da associação e a formação política das associadas sobre autonomia econômica.
OS SABERES E SABORES DOS FRUTOS DO CERRADO
Ao analisarem o potencial de consumo e de comercialização de espécies nativas na região, as mulheres identificaram que os mesmos eram pouco vendidos e não faziam parte dos cardápios. Para as extrativistas, um dos principais motivos que explicavam esse cenário era o enorme desconhecimento sobre as práticas extrativistas e sobre o alto valor nutricional característico dos frutos do cerrado, bem como suas diversas formas de uso na culinária.
Com base nesse diagnóstico, as mulheres investiram na sensibilização de gestores(as) públicos(as) e comerciantes locais sobre a importância dessa iniciativa para a valorização dos frutos nativos e o resgate dos hábitos alimentares da região, assim como para a melhoria da qualidade da alimentação das famílias. Foram realizadas mostras culinárias em feiras e outros espaços públicos, palestras e oficinas sobre frutos do cerrado e consumo de alimentos saudáveis e também começaram a comercializar em alguns espaços.
“A população mato-grossense redescobriu o sabor do cerrado. Quando estamos nas feiras locais, a mostra da produção sempre é uma novidade. Tem muita gente que ainda desconhece o aproveitamento dos frutos”. (Lucia Boseli – Grupo Agroextrativista Amigas da Fronteira)
Com o passar dos anos, a estratégia começou a gerar bons resultados. Foram surgindo parcerias e iniciativas de apoio que viabilizaram a construção de quatro unidades de beneficiamento de frutos do cerrado que atendem a três grupos no município de Cáceres –Amigas do Cerrado, Amigas da Fronteira e Frutos da Terra – e um em Mirassol D´Oeste – o Grupo das Margaridas. Esses investimentos impulsionaram a prática agroextrativista na região e ampliaram a capacidade e a diversidade produtiva da Arpep. Além de produzir pães e biscoitos enriquecidos com os frutos do cerrado, a associação passou a produzir e comercializar farinhas, farofas, óleos, rapaduras, doces, castanhas, mesocarpos in natura e licores. Esses alimentos também são destinados ao autoconsumo, o que tem contribuído para a melhoria da qualidade da alimentação das famílias extrativistas.
“Hoje em dia não falta diversidade na nossa mesa, é uma farinha de pequi, um pão de babaçu, é todo santo dia, e tudo daqui da nossa terra”. (Jacira de Souza –Grupo Agroextrativista Frutos da Terra)
É importante destacar que os frutos do cerrado e os produtos que dele resultam são alimentos considerados muito ricos, alguns, inclusive, em mais de um nutriente, podendo contribuir para o enfrentamento de algumas carências nutricionais. De acordo com a publicação Alimentos Regionais Brasileiros, do Ministério da Saúde (2002), o cumbaru possui alto teor proteico e sua amêndoa é rica em cálcio, fósforo e manganês. Já o pequi é um alimento de alto valor energético e proteico, sendo conhecido popularmente como a carne do cerrado, apresentando ainda altíssimas concentrações de vitamina A. O babaçu também tem alto valor energético e, por ser rico em ácido láurico, possui propriedade antimicrobianas e anti-inflamatórias (SANTANA, 2013).
AGROEXTRATIVISMO E RENDA NO CAMPO
Ao se formalizar em 2009, a Arpep passou a comercializar parte de sua produção para o mercado institucional por meio do acesso ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), atendendo anualmente cerca de cinco mil escolares da rede pública de ensino e famílias em situação de insegurança alimentar e nutricional.
Em 2014, uma parceria entre a Arpep e outros grupos de mulheres agroextrativistas elaborou e lançou a marca comercial Do Cerrado, com o objetivo de ampliar os canais de comercialização e conquistar novos consumidores, buscando valorizar e visibilizar o agroextrativismo e o trabalho desenvolvido pelos grupos produtivos de mulheres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dos últimos anos, a Arpep tem se consolidado como referência na produção de alimentos saudáveis no estado do Mato Grosso, sendo, inclusive uma das iniciativas finalistas que receberam, em 2013, o prêmio Mulheres Rurais que Produzem o Brasil Sustentável, promovido pela Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.
A experiência desenvolvida pela associação tem gerado um processo bastante virtuoso, na medida em que está possibilitando o aumento da renda monetária e não monetária, bem como o reconhecimento da importância do trabalho das mulheres e o fortalecimento das suas dinâmicas organizativas. Ao mesmo tempo, essa experiência tem contribuído com a ampliação da oferta de alimentos diversificados e saudáveis para os (as) consumidores (as), especialmente os (as) estudantes da rede pública de ensino, e com o resgate da cultura alimentar dos povos do cerrado a partir da valorização dos seus próprios frutos.
“Antes da associação, do trabalho em grupo e do agroextrativismo, algumas de nós trabalhávamos no corte de cana nas fazendas da região. Ganhávamos pouco e vivíamos mal. Agora somos produtoras de alimentos e temos nossa própria renda”. (Maria Alves –Grupo Agroextrativista Margaridas )
Francileia Paula
Eng. Agrônoma, técnica da Fase, Mestranda em Saúde Pública –Ensp/Fiocruz
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Referências Bibliográficas:
BRASIL. Ministério da Saúde. Alimentos Regionais Brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.
CARDOSO, Elisabeth Maria; RODRIGUES, Vanessa Schottz. Mulheres construindo a Agroecologia no Brasil. Revista Agriculturas, v.6, n.4, dez. 2009.
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
CONSEA. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A segurança alimentar e nutricional e o direito à alimentação adequada no brasil. Indicadores e Monitoramento: da constituição de 1988 aos dias atuais. 2010. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/con- sea/publicacoes>. Acesso em: 5 fev. 2015.
FASE –Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – Arquivos Agroextrativismo FASE/Programa Mato Grosso, 2014.
SANTANA, Auridene Amorim. Obtenção da polpa de pequi e do leite de coco do babaçu microencapsulados através de secagem por aspersão. 2013. Tese (Doutorado) – Faculdade de Engenharia Agrícola, Unicamp, Campinas.
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Revista V11N4 – Cultura alimentar e agroextravismo: saúde na mesa e renda no campo