Maria do Carmo Couto Teixeira
Porque é de infância, Leonardo, que o mundo tem precisão.
Thiago de Mello
A discussão sobre a importância do protagonismo infanto-juvenil tem como base o questionamento do espaço e do tempo da criança no modelo de desenvolvimento capitalista, industrial e urbano. Nas sociedades pré-industriais, não existiam espaços reservados às crianças. A socialização se dava no conjunto das práticas sociais, tanto de trabalho quanto de lazer, vividas por todos, em conjunto. Com a modernidade, a criança se tornou econômica, social e politicamente marginalizada das vivências sociais, assim como o velho, o doente, o artista, a mulher e o adolescente, que não contam, por serem considerados parcial ou totalmente improdutivos. A atenção dada à criança na sociedade (escola, família e políticas públicas) se resume a atendimentos assistencialistas, ocupando apenas um lugar como preocupação dos adultos e do sistema, no sentido de estar em preparação, de ser receptora dos valores e comportamentos dominantes, de ser imatura, de ser um organismo em formação (REDIN, 2000).
As organizações, entidades e movimentos sociais que atuam no contexto da agricultura familiar têm reconhecido os agricultores e agricultoras como atores sociais importantes na promoção de um novo modelo de desenvolvimento sustentável e inclusivo. No entanto, é raro e ainda recente o reconhecimento da importância da participação das crianças em projetos de desenvolvimento socioambiental. Não se tem uma clareza sobre que contribuição a criança pode dar para o processo de transformação que se almeja e como possibilitar a sua inserção.
Este artigo busca contribuir para a reflexão acerca da necessidade de se incluir a criança como uma categoria social nos planejamentos e ações voltados para o desenvolvimento socioambiental. Relacionando teoria e prática, apresentamos uma experiência no campo da ecopedagogia, cujo foco central é a infância e o meio ambiente: Educação ambiental em escolas do entorno do Parque Estadual da Serra do Brigadeiro (Pesb), do município de Araponga, Minas Gerais. Essa experiência, coordenada pelo grupo de ecopedagogia da Universidade Federal de Viçosa, foi desenvolvida, em parceria com o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA), com a prefeitura e o Sindicato de Trabalhadores Rurais, em 11 escolas municipais de ensino fundamental, envolvendo 46 professores e aproximadamente 350 crianças na faixa dos 7 aos 11 anos de idade.
A EXPERIÊNCIA DESENVOLVIDA: PRINCÍPIOS, METODOLOGIA, ATORES
O Pesb foi criado em 1996 a partir de um inova- dor processo de mobilização social, capitaneado pelos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e pelo CTA. Atualmente, está se estruturando um programa de desenvolvimento territorial no entorno dessa unidade de conservação, que envolve um coletivo de entidades e políticas públicas para apoiar demandas locais das mais variadas ordens, dentre elas a educação ambiental (EA).
Esse trabalho de EA ao redor do Pesb teve início em 1999, no município de Fervedouro (MG), e continuou no período de 2000 a 2003, em Araponga. Buscamos integrar educação formal e não-formal, de modo que a educação escolar pudesse fazer parte de um movimento ainda maior de educação ambiental, articulada com a problemática do Parque e seu entorno e envolvendo questões gerais ligadas à agroecologia e ao desenvolvimento sustentável regional. Assim, procuramos identificar, junto às crianças, familiares, educadoras e lideranças das comunidades, práticas agroecológicas e culturais, relevantes e possíveis de serem trabalhadas nas escolas, possibilitando a socialização das alternativas que as famílias estão encontrando no enfrentamento dos problemas socioambientais. Para isso, em algumas vezes, os(as) agricultores(as) foram às escolas para relatar suas experiências e trocar conhecimentos.
Dentre as metodologias utilizadas em EA, destacamos nessa experiência a pedagogia de projetos, surgida a partir do movimento conhecido como Escola Nova, inspirado em educadores como John Dewey e Célestin Freinet. Segundo essa abordagem, o ponto de partida de todo e qualquer trabalho com projeto pedagógico é a identificação de um problema que constituirá o tema do estudo ou objeto de intervenção (pode ser feito um paralelo com os temas geradores de Paulo Freire). O problema deve ser atual, concreto, de preferência ligado à realidade mais próxima dos participantes, deve também ser do interesse destes, ou seja, necessita ter sentido e significado e promover a interdisciplinaridade.
Os projetos, desenvolvidos por meio de oficinas ecopedagógicas na perspectiva da ação-reflexão-ação, se diferenciaram nos temas e nas dinâmicas, em função das diferentes realidades e necessidades. As oficinas tinham o lúdico como referência, e este, embora seja um elemento significativo nas vivências culturais, vem se dicotomizando cada vez mais das experiências infantis, principalmente no tocante ao universo psicossocial da criança proveniente do meio economicamente desfavorecido.
O meio ambiente foi abordado em diferentes contextos, considerando as inter-relações possíveis entre as temáticas ambientais e os conteúdos escolares. A abordagem interdisciplinar possibilitou incluir os vários olhares sobre as questões propostas. Seguindo essa sistemática, alguns temas desenvolvidos nas escolas foram: fauna e flora local, histórias das comunidades, lixo, alimentação, solos (erosão e degradação), plantas medicinais, corpo humano, animais em extinção, espaços vividos (escola, comunidade e Pesb), criação de abelhas, árvore, água, brinquedos e brincadeiras, índios, negros, café, agricultura, história da ocupação da região, milho, folclore, hortas, quintais.
A maior parte dos temas foi desenvolvida através de “estudos do meio”: a partir da observação, comparação, identificação de semelhanças e diferenças, mudanças e permanências, e utilizando os sentidos e os conhecimentos empíricos, vivenciamos diversas atividades em ambientes diversificados.
Nos arredores das escolas, verificamos o estado de conservação das águas (nascentes, córregos, lagos, cachoeiras) e das matas; observamos o ambiente, enfocando o lixo; observamos e coletamos diferentes perfis de solo; observamos as casas e construções, os lugares mais importantes nas comunidades do ponto de vista das crianças, e os elementos do ambiente (lavouras, pontes, estra- das, relevo etc). Nas propriedades dos(as) agricultores(as), pais e mães das crianças, reconhecemos experiências agroecológicas com plantas medicinais; utilização de uri- na de vaca como biofertilizante; um alambique e uma olaria como atividades produtivas nas comunidades. No Par- que e em outras regiões de floresta, entramos em contato com a mata preservada, fizemos caminhadas, natação, assistimos filmes sobre temas ecológicos e realizamos jogos e brincadeiras. Na sede do município, reconhecemos e refletimos sobre o espaço urbano. Em todos esses espaços e momentos procuramos estabelecer comparações entre “a vida na mata e a vida no entorno da mata”.
Antes de sairmos das escolas, discutíamos com as crianças o que iríamos fazer, levantando uma série de questões a serem observadas. Na volta, eram feitas uma avaliação em grupo e a sistematização das aprendizagens e descobertas.
Outras atividades pontuais foram desenvolvidas, tais como gincanas ecológicas em ruas de lazer, encerrando períodos letivos com brincadeiras cantadas, jogos tradicionais, populares e cooperativos, apresentação de quadrilhas pelas crianças, desafios e repentes, além de exposição de trabalhos e fotografias, buscando integrar as diferentes escolas do município e os diferentes atores sociais envolvidos no conjunto da parceria.
LIÇÕES E APRENDIZAGENS
Esse trabalho reforçou a nossa percepção de que as crianças, quando estimuladas e valorizadas, sentem prazer em participar e interagir com os adultos: A gente gosta do pessoal de Viçosa, porque eles gostam de tudo que a gente faz. A presença e a participação nas oficinas, os desenhos e pinturas, a confecção de painéis e brinquedos, os debates, a construção de maquetes e mapas reproduzindo o ambiente percebido, as músicas, as histórias contadas e recontadas, as dramatizações, os textos produzidos, as falas, as observações e os exemplos dados, as posturas diante do grupo e, ainda, os depoimentos de alguns familiares e professores sobre situações nas quais as crianças se afirmaram como sujeitos, são indicadores do interesse e da capacidade das crianças de conhecer, representar e transformar o seu meio. Os níveis de conhecimento, de representação e de percepção do ambiente vivido são diversificados. Também foram variadas as opiniões sobre o que gostavam, o que não gostavam, como gostariam que fossem – a escola, a casa, a comunidade, o município, a região, a mata, o planeta Terra –, bem como as propostas de práticas envolvendo o cuidado com o ambiente nas suas várias dimensões. Isso significa que as crianças têm sensibilidade para apontar os problemas socioambientais vinculados a sua realidade mais próxima e capacidade para propor soluções criativas.
Por outro lado, o trabalho também mostrou que algumas organizações e entidades envolvidas ainda não se sensibilizaram para a importância da participação infanto-juvenil, e as que já estão sensíveis têm encontrado dificuldades em definir e implementar estratégias para que as crianças sejam inseridas no processo de planejamento das ações dos projetos de desenvolvimento socioambiental. Essa dificuldade envolve questões culturais complexas e a sua solução pressupõe uma transformação profunda nos modos de perceber a criança, o jovem e o adulto, não mais de forma fragmentada, mas numa perspectiva relacional.
No contexto da agricultura familiar, as crianças ocupam um lugar significativo no processo produtivo, envolvendo-se em variados tipos de trabalho agrícola e não-agrícola. E nas outras vivências socioculturais, qual é o espaço que a criança ocupa? Como ela é vista e como ela vê a sua realidade?
É necessário repensar o espaço psicossocial da criança na cultura brasileira hoje. Não significa ter que optar entre o que a criança representava na sociedade pré-capitalista e o que ela representa na modernidade, mas sim indagar sobre quais seriam as relações entre os olhares do passado e as nossas próprias visões de mundo e de educação infantil no cotidiano contemporâneo. É preciso descobrir o valor de uma perspectiva histórica sobre a criança para se construir uma outra visão de infância. Nesse sentido, as organizações e os movimentos sociais que visam a transformação do modelo de desenvolvimento têm um papel fundamental na defesa de um novo espaço conquistado para a criança dentro da sociedade.
Entendendo que a lógica da acumulação capitalista preside hoje os processos de desenvolvimento, afirma-se a necessidade de novos conceitos e de novos valores que obriguem a elaborar instrumentos mais adequados para a construção da sociedade sustentável. A abordagem interdisciplinar pode favorecer a inclusão das crianças como atores sociais nos processos de desenvolvimento, mas isso requer a construção de conhecimentos sobre a especificidade da infância no mundo rural (e em sua relação com o mundo urbano) e sobre metodologias que permitam captar, interpretar e dialogar com as contribuições das crianças.
A concepção de criança presente nessa abordagem deve ser: Ela é alguém hoje, em sua casa, na rua, no trabalho, na escola, construindo-se a partir das relações que estabelece em cada uma dessas instâncias ou em todas elas. Geradas por homens e mulheres que pertencem a classes sociais, têm e produzem laços étnicos e perspectivas diversas segundo seu sexo: as crianças já nascem com uma história. Assim, elas se fazem na cultura, pertencem a uma classe social e vão se fazendo, nessa história, cidadãs de pouca idade que são, muito mais do que exemplos de fases de uma escala de desenvolvimento. (KRAMER, 1992).
Estamos nós, adultos, propiciando o protagonismo das crianças nos processos de desenvolvimento socioambientais que procuramos empreender?
Maria do Carmo Couto Teixeira
pedagoga, mestre em extensão rural, professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa.
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Referências
GUTIÉRREZ, Francisco; PRADO, Cruz R. Ecopedagogia e cidadania planetária. São Paulo: Cortez/ Instituto Paulo Freire, 1999. (Guia da escola cidadã)
KRAMER, S. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. São Paulo: Cortez, 1992.
REDIN, E. O espaço e o tempo da criança: se der tempo a gente brinca. Porto Alegre: Mediação, 1998.
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Revista V2N1 – Educação ambiental na Serra do Brigadeiro: qual é o espaço da criança?