Clara Sales de Moraes, Terezinha Aparecida Borges Dias e Mônica Celeida Rabelo Nogueira
A agrobiodiversidade reúne a diversidade de espécies agrícolas – que se relacionam e interagem dentro dos múltiplos agroecossistemas – e a pluralidade dos conhecimentos tradicionais associados aos processos de cultivo (MACHADO et al., 2008). As sementes crioulas correspondem a variedades de espécies selecionadas, manejadas e cultivadas por agricultores, indígenas e membros de comunidades tradicionais. São, portanto, recursos de inestimável valor para a cultura dos povos.
Atualmente, a preocupação com a extinção das variedades de espécies cultivadas tem motivado um conjunto de estratégias voltadas à conservação da agrobiodiversidade, entre elas a promoção de feiras de trocas de sementes. Além de serem espaços de celebração da cultura camponesa e indígena, as feiras desempenham o papel de incentivar agricultores a resgatar e conservar as sementes tradicionais, assim como realizar o intercâmbio de conhecimentos e estimular a valorização das tradições alimentares.
O SURGIMENTO DAS FEIRAS KRAHÔ DE SEMENTES TRADICIONAIS
O desaparecimento de um grande número de sementes crioulas cultivadas por povos indígenas e comunidades tradicionais é uma realidade no contexto brasileiro. Além de aumentar os níveis de insegurança alimentar e nutricional, a perda de variedades tradicionais leva ao processo de erosão genética de espécies que possuem valor cultural e são tradicionalmente utilizadas em rituais e na alimentação cotidiana.
A etnia Krahô, cujo território está situado no nordeste do estado de Tocantins, pôde observar de perto esse fenômeno. Preocupados com a redução da diversidade de espécies e interessados em recuperar importantes sementes tradicionais de milho que estavam desaparecidas de suas roças, os Krahô foram orientados a buscar auxílio na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen). A partir dessa parceria, recuperaram as sementes tradicionais de milho que estavam conservadas no Banco de Germoplasma (Colbase) da Embrapa.
Motivados a resgatar outras sementes tradicionais e, dessa forma, recuperar e estimular a conservação da agrobiodiversidade, agricultores, lideranças Krahô, indigenistas e esquisadores tiveram a ideia de promover feiras de trocas de sementes. Assim, no ano de 1997, foi realizada a I Feira Krahô de Sementes Tradicionais.
OS PAPÉIS DAS FEIRAS DE SEMENTES NA CONSERVAÇÃO DA AGROBIODIVERSIDADE
Circulação de variedades de sementes crioulas
Na Feira Krahô, as trocas são feitas no pátio central da aldeia. Foram realizadas, desde 1997, dez feiras com periodicidade variável. As sementes, assim como outros produtos e plantas, são organizadas e dispostas pelos participantes em pedaços de tecidos ou esteiras de palha estiradas no chão do pátio.
O principal papel que as feiras de sementes desempenham é o de estimular e promover a recuperação e a conservação da agrobiodiversidade, por meio da circulação de variedades crioulas entre os agricultores que, por sua vez, multiplicam e manejam as sementes em suas roças e as conservam guardando em suas casas. Além disso, esses momentos de troca de sementes em uma feira potencializam a disseminação das variedades, que podem ser multiplicadas e, assim, novamente trocadas entre agricultores locais e de outras regiões.
Troca de saberes e intercâmbio de conhecimentos
O intercâmbio de experiências entre povos indígenas, comunidades tradicionais, agricultores familiares e outros participantes é outro papel desempenhado pelas feiras de sementes.
Esse intercâmbio de saberes ocorre por meio do diálogo entre os agricultores participantes nos momentos de troca de sementes durante o evento. Ocorre também por meio de outras atividades que podem ser oferecidas na programação do encontro, como oficinas, rodas de conversa (mediadas por agricultores e representantes de instituições), mostras de vídeos, apresentações culturais e torneios esportivos.
Essas atividades possuem um caráter socioeducativo e contribuem para o compartilhamento e a difusão de sabe- res tradicionais, científicos e técnicos. Elas também colaboram para a criação, o desenvolvimento e o ensino de tecnologias sociais e para a construção de iniciativas de interesse coletivo.
A participação de representantes de instituições nesses encontros é bastante relevante, ao permitir a articulação entre organizações não governamentais (ONGs), instituições de ensino e pesquisa e os agricultores. As instituições podem oferecer apoio técnico e financeiro para a realização de novas feiras de sementes e outras ações voltadas para a conservação da agrobiodiversidade e para a promoção da soberania alimentar dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.
Uma iniciativa disseminada
A Feira Krahô tem incentivado outras etnias a realizarem feiras de sementes em suas regiões. Ao participar da VIII Feira Krahô, realizada em 2010, um grupo de indígenas da etnia Paresi se sentiu motivado a replicar a experiência. Então, no mesmo ano, os Paresi realizaram em seu território a feira chamada Raiz, Planta e Cultura: intercâmbio de raízes e sementes das roças tradicionais, povo Paresi, MT , que teve edições em 2010, 2011 e 2012 (DIAS et al., 2015). Dessa forma, além de favorecer a trocas de sementes, a feira cumpre um papel demonstrativo, com grande potencial para difundir essas iniciativas em outras regiões do país.
Outro aspecto a ser considerado é a importância do estímulo à organização de feiras em âmbito regional. Segundo Dias et al. (2014), ações regionalizadas se tornam mais eficientes porque promovem interações entre agricultores que possuem variedades de espécies e técnicas agrícolas similares. Garantem, portanto, uma maior adaptabilidade das sementes aos ambientes de cultivo e incentivam a produção e a valorização de alimentos que com- põem a cultura alimentar local.
UM ESPAÇO PARA PROMOVER A SOBERANIA ALIMENTAR
A conservação das espécies crioulas cultivadas pelos povos indígenas e comunidades tradicionais é fundamental para a continuidade de práticas e costumes associados às suas identidades culturais. A soberania alimentar e os hábitos de alimentação desses povos e comunidades são fatores que estão diretamente relacionados à diversidade de variedades cultivadas em suas roças.
Quando o agricultor possui a semente, podendo multiplicá-la e conservá-la em seu território ou propriedade, ele deixa de depender das sementes comercializadas, muitas vezes transgênicas, que podem não ser adequadas à sua realidade local. É nesse aspecto que as feiras de sementes contribuem para a soberania alimentar dos agricultores, que passam a dispor de uma maior diversidade de espécies para serem cultivadas, além da autonomia para selecionar, manejar, reproduzir e conservar esses recursos genéticos.
Para além da troca de sementes, as feiras criam um ambiente de diálogo que possibilita levantar debates sobre políticas públicas, direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais e saberes ligados à agricultura e à Agroecologia. Temas como meio ambiente, educação, saúde, entre outros, também são abordados, por serem reconhecidos como de interesse comum do público presente nas feiras. Trabalhar esses elementos é fundamental para a construção e a difusão do conceito de soberania alimentar.
A principal ferramenta de monitoramento das feiras é o levantamento e o registro dos participantes, das espécies e das variedades trocadas pelos agricultores. Dias et al . (2014) informam sobre o número de variedades, de povos indígenas e dos demais participantes de três grandes Feiras de Sementes Krahô. A partir desses dados, observa-se com mais clareza o fluxo das sementes crioulas e dos participantes, o que permite verificar se houve um aumento de espécies e variedades em circulação, assim como analisar o perfil e se houve o crescimento do número de participantes ao longo das edições realizadas. O monitoramento contínuo auxilia os organizadores a dimensionar a real contribuição das feiras de sementes para a conservação da agrobiodiversidade.
A experiência das Feiras Krahô de Sementes Tradicionais vem desempenhando, assim, o importante papel de resgatar e fortalecer parte da rica sociobiodiversidade de povos indígenas brasileiros e de países vizinhos, ao construir novos modos de bem viver; unir saberes, expressões artísticas e culturais; promover a conservação da diversidade de sementes tradicionais; valorizar os produtos da sociobiodiversidade e os alimentos tradicionalmente cultivados e consumidos; e aproximar indivíduos para pensar e agir em favor da segurança e soberania alimentar dos povos indígenas.
Clara Sales de Moraes
bacharel em Gestão Ambiental pela Universidade de Brasília (UnB)
[email protected]
Terezinha Aparecida Borges Dias
pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia
[email protected]
Mônica Celeida Rabelo Nogueira
professora Adjunta da Universidade de Brasília – Faculdade UnB Planaltina
[email protected]
Referências bibliográficas:
BORGES, J.C. Feira Krahô de Sementes Tradicionais: cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança alimentar. 2014. 346 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, DF.
DIAS, T.; MORAES, C.S.; CASTRO, L.R.; MACIEL, M. Feiras de sementes em terras indígenas brasileiras. Memorias del Congreso Latinoamericano de Agroecología, 5. Argentina, La Plata, 2015.
DIAS, T.A.B.; HAVERROTH, M.; FREITAS, F.O.; ANTUNES, I.F.; MACIEL, M.R.A.; MING, L.C.; FEIJÓ, C.T. Agrobiodiversidade indígena: Feira, guardiões e outros movimentos.
In: SANTILLI, J. et al. Coleção Transição Agroecológica, v.2, p. 193-221. Brasília, DF, Embrapa Informação Tecnológica, 2015.
DIAS, T.A.B.; PIOVEZAN, U.; SANTOS, N.R.; ARATANHA, V.; SILVA, E, O. Sementes tradicionais Krahô: história, estrela, dinâmicas e conservação. Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, v.11, n.1, p. 09-14, abr. 2014.
MACHADO, A. T.; SANTILLI, J.; MAGALHÃES, R. A agrobiodiversidade com enfoque agroecológico: implicações conceituais e jurídicas. Brasília, DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2008.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Agrobiodiversidade e diversidade cultural. Brasília: MMA/SBF, 2006. (Série Biodiversidade, 20).