Eduardo Magalhães Ribeiro, Flávia Maria Galizoni, Ana Paula Gomes de Melo, Paulo Sérgio Lopes, Ernane Martins e Dalton Pereira
O RURAL E O URBANO
Depois das grandes migrações que conduziram um terço da população brasileira para as cidades nos anos 1960 e 1970, as metrópoles cresceram, a população rural estagnou e o campo ficou ao mesmo tempo mais perto e mais longe das cidades. Ficou mais perto porque, no imaginário dos brasileiros, o mundo rural se converteu num refúgio para aplacar o cansaço e as mazelas da vida urbana, ou seja, virou um lugar desejado para descanso, lazer e aventura. Mas ficou também mais longe, porque a vida no campo – o que as pessoas fazem no dia a dia, como produzem, como se relacionam – tornou-se um mistério para a maioria dos brasileiros.
Pessoas da cidade, em geral, têm uma vaga ideia do que é viver no campo. Costumam imaginar roceiros perdidos em lugares remotos, escondidos, bem longe dos shoppings; ou pensam nas áreas do interior como paraísos na terra, com uma natureza exuberante e farta, bem ali, à disposição. Se isso é verdade para a maioria da população urbana, mais verdade ainda é para as crianças urbanas, que não chegaram a ter vivência do rural, que conhecem o campo pela memória remota dos avós, muitas vezes associada a muito trabalho e à educação rigorosa, ou à abundância e à vida alegre e fácil de um tempo que já se foi.
Professores contam histórias de crianças que acreditam que o leite é produzido pelo supermercado, enquanto outras crianças querem conhecer uma fábrica de arroz – que deve ser maravilhosa, para fazer tantos grãos assim, tão iguais. Contam, ainda, que muitas delas jamais viram de perto um pé de feijão, milho ou abóbora, nunca encostaram numa vaca e não sabem se melancia é produzida em árvore ou embaixo do chão.
Mas professores de ensino fundamental também lamentam que eles próprios pouco sabem sobre esses assuntos, e que são escassos os recursos de que dispõem para ensinar a crianças urbanas sobre recursos naturais e agricultura. Dizem que sofrem nas aulas de geografia para explicar as diferenças entre costumes e estilos de vida do rural e do urbano. Por isso, costumam descrever para os alunos um rural mezzo folclórico, mezzo sertanejo de TV, porque assim as crianças compreendem, já que são essas as referências que alunos e professores conhecem. Nas aulas de Ciências, descrevem como podem os ciclos naturais, porque raramente têm condições de mostrar como a água se renova na Terra, como as plantas brotam e amadurecem e, principalmente, quais são os efeitos das ações humanas sobre o meio. Assim, as escolas quase sempre mostram o camponês, o campo e a natureza de maneiras muito limitadas, como estereótipos ou como fragmentos de um Brasil remoto, poético e difuso, sempre distante do cotidiano da maioria das pessoas que vivem na cidade.
Foi essa situação que motivou a criação do Sítio de Saluzinho. O sítio –cujo nome técnico é Centro de Referência da Cultura Material da Agricultura Familiar – é uma réplica de uma unidade camponesa que fica no Campus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na cidade de Montes Claros. É um museu vivo da sociedade camponesa norte-mineira, criado para promover o encontro entre as crianças e o mundo rural. Funciona como um programa da UFMG que acompanha o calendário escolar oferecendo, três vezes por semana, oficinas de formação conduzidas por monitores voluntários.
A maioria desses monitores do Sítio de Saluzinho são agricultores (as) urbanos (as) de Montes Claros. Formam um grupo de especialistas: foi assim que o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão definiu os camponeses, que detêm um enorme conhecimento sobre a natureza, as técnicas de produção agrícola, o processamento de alimentos e os recursos naturais. E, no sítio, esses especialistas se transformam em camponeses-docentes, pois lidam com a formação de crianças e recriam no Campus costumes de trabalho, saúde e lazer da família camponesa. Além dos agricultores urbanos, atuam como monitores do sítio duas voluntárias da Pastoral da Criança e estudantes da UFMG, que também oferecem oficinas de formação.
O Sítio de Saluzinho é, portanto, um espaço de vivência rural para crianças urbanas. São dois hectares da UFMG usados para receber essas crianças, enriquecer o conteúdo das aulas das escolas públicas, valorizar os conhecimentos e as técnicas tradicionais, dar ocupação a agricultores (as) urbanos (as). Além disso, o espaço capacita estudantes universitários em atividades de extensão e estimula diálogos entre projetos da universidade.
A PROPOSTA DO SÍTIO DE SALUZINHO
Salustiano Gomes Ferreira, o Saluzinho, nasceu em 1917, em Varzelândia, Minas Gerais, e faleceu em 1990, em Itacarambi, outra cidade mineira. Foi um camponês do norte mineiro que, no tempo da ditadura, enfrentou fazendeiros que queriam tomar sua terra. Em dezembro de 1967, acuado numa gruta por policiais e jagunços, Saluzinho resistiu sozinho durante cinco dias. Entregou-se à Polícia Militar, foi preso, torturado e passou quatro anos em prisões de Montes Claros e Belo Horizonte. Nesse meio tempo, Saluzinho ficou sem esposa e filhos, que morreram em consequência de torturas. Ao sair da prisão, já havia perdido o sítio. Sem família, morou de favor em áreas rurais de Januária e Itacarambi, no Norte de Minas Gerais, mas até o fim da vida reclamou seu direito à terra. A tenacidade da sua resistência transformou Saluzinho num símbolo da luta do agricultor norte-mineiro pela sua terra e pelos seus valores. Para que a história e a luta de Saluzinho não sejam esquecidas, a UFMG prestou-lhe homenagem ao batizar o sítio.
Além de prezar pela memória de Salustiano, o Sítio de Saluzinho tem a missão de valorizar o conhecimento e a experiência de agricultores, reunindo num mesmo espaço três personagens, cada um com um papel importante nas atividades desenvolvidas.
Em primeiro lugar, os docentes-agricultores urbanos. Todos eles são de origem rural, urbanizados nos anos 1960/1970 e praticam uma agricultura tradicional, agroecológica e territorializada, com raízes assentadas no acervo de conhecimentos e técnicas materiais da agricultura familiar norte-mineira. São pessoas que dispõem de um conhecimento enciclopédico sobre o mundo rural e que gostam de se lembrar de histórias, contar casos e criar técnicas. No sítio, encontram uma boa ocasião para multiplicar seus ensinamentos e conselhos – aqueles mesmos que gostam de dar para seus netos. A diferença é que, no sítio, lidam com as informações de maneira sistemática, organizando conteúdos específicos que transformam em oficinas de 30 minutos de duração. Nestas, reúnem histórias, técnicas e experiências agrícolas, temperando tudo com muita sabedoria e prática.
O outro personagem é o Instituto de Ciências Agrárias (ICA) da UFMG, que fica em Montes Claros. O ICA reúne boa parte do ensino e da pesquisa do rural e agrícola da universidade e, como toda instituição pública de ensino, deve dar um retorno para a sociedade –e não apenas para os estudantes que frequentam seus cursos –sob a forma de conhecimentos adaptados e inovadores das ações de extensão. O Sítio de Saluzinho proporciona ao ICA/UFMG uma presença mais ativa na sociedade que o abriga, diversifica sua rede de forma- dores, ao incluir agricultores urbanos, e expande seu público de trabalho por meio das parcerias com as escolas de ensino fundamental. Dessa forma, o sítio possibilita à UFMG inovar nas atividades de extensão, nas relações com a sociedade urbana e na valorização da diversidade cultural norte-geralista e camponesa de Minas Gerais.
Por fim, em terceiro lugar, estão as crianças do ensino fundamental das escolas públicas. Essas crianças, como foi visto, recebem em geral informações muito superficiais sobre o mundo rural, as práticas agrícolas costumeiras, o ambiente e os recursos naturais. No Sítio de Saluzinho, esses assuntos são tratados na toada própria dos agricultores, que oferecem, junto com as oficinas, o sotaque, os gostos, os costumes e as técnicas do lugar. É por isso que, encontrando docentes camponeses no sítio, as crianças muitas vezes se sentem em casa, pois se reme- tem à sabedoria dos avós, reavaliando assim, noutra perspectiva, a sabedoria doméstica, que agora passa a ser validada tanto pelo agricultor como pela escola e pela universidade, que dedicam ao assunto todo um horário que é formalmente destinado ao aprendizado.
Além disso, a docência camponesa abre outras conexões com a escola, os professores e as disciplinas curriculares. Por exemplo: ilustra, na prática, os processos biológicos que são abordados nas aulas de Ciências quando mostra a brotação da planta que serve como alimento; dá novo sentido às aulas de Artes quando vincula segurança e soberania alimentar à cultura; dá corpo às aulas de Geografia quando permite o convívio direto com lavradores e processos produtivos. E, principalmente, a oficina do agricultor no Sítio de Saluzinho estimula nas crianças a curiosidade interdisciplinar, quando, por exemplo, trata ao mesmo tempo de assuntos como conservação da natureza e produção de alimentos, que envolvem conhecimentos de disciplinas escolares diferentes, mas que são tratados como unidade no enfoque holístico que é característico dos docentes camponeses.
As oficinas de formação abordam a lavoura, o corante, a cana-de-açúcar, as plantas de uso medicinal, a reciclagem. Todas têm, como pano de fundo, a cultura material do rural norte-mineiro, o (a) agricultor (a), a terra, o meio, os recursos, a pauta alimentar local, saudável, segura e soberana relacionada ao território. Ao valorizar os costumes, as técnicas e os alimentos tradicionais, o Sítio de Saluzinho vai além da transmissão de conhecimentos; busca, mesmo, é despertar o sentimento de pertencimento cultural ao território. A cultura se estende –no sentido que Paulo Freire deu ao termo – ao se exercitar. E é por isso que, quando a docência e a disseminação de conhecimentos são conduzidas por camponeses, criam bases para outros conhecimentos, para novos saberes. Mas também desafiam a universidade a repensar seus métodos e a escala de valores que sustenta o conhecimento acadêmico.
Como a principal atividade de formação do Sítio de Saluzinho é a oficina conduzida por agricultores urbanos-docentes, a proposta acaba por criar um nexo novo entre a população urbana, as populações rurais tradicionais e a universidade. Os agricultores se tornam protagonistas no processo de troca de conhecimentos e se apropriam dos recursos didáticos característicos da academia –o direito privilegiado da palavra, o conhecimento apoiado nos títulos, a direção do processo de aprendizado. Em suma, os agricultores assumem o poder de professor na sala de aula e invertem alguns dos termos desse processo, ao estabelecer uma relação inculturadora e doce com as crianças. Eles mesclam a condição de mestres com a condição de discípulos, pois também fazem questão de aprender com as crianças; mesclam a formalidade da postura do professor que conduz uma aula com a irreverência que cabe nas relações entre netos e avós. E essa experiência de docência estimula indagações, novas propostas e novas dinâmicas que realimentam esse jogo entre camponeses urbanos e crianças saudosas do rural.
APRENDIZADOS
A rotina do Sítio de Saluzinho é muito simples: cada criança participa de quatro oficinas de meia hora, no período da manhã ou da tarde, abordando temas diferentes. Depois das duas primeiras, é servida a merenda, com quitandas artesanais e sucos de frutos da região. A curta duração das oficinas foi uma sugestão das crianças que participaram dos testes de rotina em 2013, pois sempre queriam fazer todas as oficinas e, para tanto, não poderiam ser muito longas. A merenda foi uma surpresa: nas oficinas de teste, a equipe percebeu que as crianças, trazendo merenda de casa, produziam meio litro de lixo per capita. Já a merenda artesanal, além de ser muito apreciada, não produz resíduos no sítio.
Merenda, transporte, deslocamento de monitores, tudo isso tem um custo. No caso do Sítio de Saluzinho, a experimentação tem sido financiada por duas agências: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig). Desde o começo dos anos 2000, as agências de fomento à pesquisa, lideradas pelo CNPq, vêm enfatizando a importância das atividades de extensão. Essa ênfase se transformou numa prática e em editais de fomento, e é por meio deles que a proposta se sustenta e tem horizonte de três anos, de 2014 a 2016, para experimentar.
Em 2014 –as atividades regulares começaram em fevereiro –, o Sítio de Saluzinho recebeu 1.680 crianças de seis escolas de ensino fundamental, que participaram de 220 oficinas durante todo o período letivo. Agricultores urbanos e voluntárias da Pastoral da Criança ofereceram a maioria delas; as demais foram conduzidas por estudantes da UFMG. As crianças cursavam principalmente os 3º, 4º e 5º anos, representando 80% de toda a frequência, na faixa de 8 a 10 anos de idade.
As oficinas abordam conteúdos diversos, sendo a reciclagem –de plásticos, alimentos e outros produtos de consumo – o tema mais recorrente. Em seguida, mas também com muita frequência, está um tema caro às agricultoras urbanas e aos grupos de pesquisa da UFMG: o uso medicinal das plantas, que foi explorado sob vários aspectos, desde os cuidados com a saúde até a identificação dessas plantas e seu cultivo, mesmo em áreas muito pequenas. Com frequência igualmente elevada, aparecem os temas relacionados à segurança e à soberania alimentar: a lavoura tradicional norte-mineira e os cuidados com a alimentação, incluindo desde os costumes de plantio até o consumo de alimentos naturais e orgânicos, o preparo de temperos domésticos e os perigos do uso de venenos na produção de alimentos. Além disso, é destacada a biodiversidade: sementes, mudas, insetos e animais presentes na natureza e sua influência sobre a saúde, a qualidade de vida e a alimentação humanas. Por fim, há o tema que, de certo modo, resume a proposta do Sítio de Saluzinho: a oficina de brincadeiras tradicionais, que confere ao lugar sua característica de espaço de aprendizado lúdico, coroando as relações muito próximas que marcam as oficinas dos (as) agricultores (as) urbanos (as).
No entanto, a equipe de coordenação, de apoio e os monitores descobriram rapidamente que não conseguem lidar com todo o estímulo ao aprendizado que as oficinas produzem. Tudo depende muito da capacidade dos (as) professores (as) para estimular a multiplicação daqueles saberes no retorno à sala de aula. Embora as oficinas sejam dirigidas às crianças, seus melhores resultados virão da atitude dos professores (as), que podem criar muitas interfaces entre a oficina e a sala. Assim, o ganho em qualidade do aprendizado dependerá mais do empenho do (a) educador (a) do que propriamente dos oficineiros/monitores.
Por isso, tornou-se recomendável que a escola informe com antecedência os temas que estão sendo abordados naquela ocasião, de modo que as oficinas possam ser planejadas para complementar aqueles assuntos, respondendo a demandas das disciplinas de Geografia, Ciências ou Português. Da mesma forma, quando as crianças voltam à sala de aula, os temas das oficinas do Sítio de Saluzinho podem ser retornados e aprofundados. Por outro lado, a participação maior ou menor das crianças nas oficinas depende da maneira como a escola as prepara anteriormente para receber aquela experiência de conhecimento. E passa, também, pela maneira como a família da criança lida com o conhecimento tradicional. Nesse ponto, são recorrentes os exemplos citados por crianças de avós ou tios que vivem ou viveram no campo. Elas relatam que no sítio têm a oportunidade de rememorar essa sabedoria familiar, ao vê-la materializada no agricultor docente, que revela o segredo de mágicas, como a multiplicação da manaíba ou os mil-e-um usos possíveis da cana-de-açúcar. Portanto, validar, valorizar, reconhecer esses conhecimentos tem que ser também uma experiência cultural familiar e curricular. E é nesse sentido que a parceria com a escola e a família deve ser a base.
O Sítio de Saluzinho fornece um complemento, mas esse complemento pode ser decisivo para fortalecer atitudes, valorizar o pertencimento ao lugar. Na avaliação das oficinas feitas por crianças e professores, a visita ao sítio, ainda que sem esses complementos curriculares/familiares, sempre é considerada uma boa experiência. Mas é fundamental que o quadro se complete, para que a experiência densa de convívio com o rural tradicional se encontre com a cultura do território.
Embora possa parecer difícil estabelecer essas relações entre a proposta do Sítio de Saluzinho, a família, a escola e a cultura local, em Montes Claros, na realidade, não é. É um lugar de cultura e dieta locais muito ricas e próprias, com uma culinária baseada nos frutos nativos, nos temperos, no preparo muito particular dos alimentos, e isso se mistura com um sentimento muito forte de lugar específico, que então se combina com a proposta do sítio para fechar um circuito de valorização do rural e do pertencimento, que tem que estar sempre em construção.
Eduardo Magalhães Ribeiro
Flávia Maria Galizoni
Ana Paula Gomes De Melo
Paulo Sérgio Lopes
Ernane Martins
Dalton Pereira
Professores(as) do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG
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Revista V12N2 – Rural e urbano, crianças e agricultores: os encontros no Sítio de Saluzinho