ELEMENTOS FUNDAMENTAIS PARA O REGIME DE RESPONSABLIDADE POR DANOS OCASIONADOS POR ORGANISMOS VIVOS MODIFICADOS NO CONTEXTO DO PROTOCOLO DE CARTAGENA
O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança entrou em vigor setembro de 2003.
Em 2004, foi criado um Grupo de Trabalho com o mandato de estabelecer um regime de responsabilidade por danos ocasionados pelo transporte, manipulação e uso de organismos vivos modificados.
O mandato deste Grupo de Trabalho termina no próximo Encontro de Partes do Protocolo, em maio de 2008.
O estabelecimento de um regime de responsabilidade é fundamental e urgente, para que o Protocolo cumpra seu objetivo, de “contribuir para assegurar um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde humana”.
Necessidade de Estabelecimento de um Regime de Responsabilidade Internacional.
Ainda é grande a incerteza relacionada à segurança ambiental e à saúde dos organismos vivos modificados, mesmo daqueles que estão disponíveis no mercado. Prova disto, é que as agências regulatórias têm frequentemente exposto publicamente suas dúvidas sobre a segurança destes produtos e, em alguns casos, revisto suas decisões.
Como exemplo, podemos citar os seguintes casos, ocorridos em 2007:
· No Brasil, os milhos transgênicos MON 810 (Monsanto) e Liberty Link (Bayer) receberam a aprovação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, mas o Ministério da Saúde e do Meio Ambiente manifestaram-se contra as liberações comerciais;
· Na Áustria, Hungria e França estas variedades de milho transgênico anteriormente aprovadas foram proibidas após a realização de estudos independentes que comprovaram a existência de riscos à saúde humana e ao meio ambiente.
· Nos EUA, país que tem uma legislação “flexível” em matéria de biossegurança foi proibida, em 2007, a comercialização de alfafa geneticamente modificada (autorizada em 2004), graças aos prejuízos ocasionados aos produtores orgânicos, e determinada a realização de estudos de impacto ambiental.
Além das questões referentes à segurança ambiental e à saúde, também crescem os casos de contaminação e disseminação ilegal de organismos transgênicos, em descumprimento às normas do Protocolo de Cartagena.
Na ausência de um regime de responsabilidade, as transnacionais seguem aproveitando a impunidade para utilizar a contaminação e autorizações obtidas sob análises de risco frágeis para disseminar o cultivo de transgênicos no mundo.
Assim, somente um regime de responsabilidade vinculante, com regras claras pode efetivamente operacionalizar o cumprimento do princípio da precaução.
ELEMENTOS DO REGIME DE RESPONSABILIDADE
· Âmbito do Regime de Responsabilidade:
O regime de responsabilidade deve ser amplo e incluir todos os danos decorrentes do transporte, uso e manipulação de organismos vivos modificados e também produtos do mesmo, atendendo assim, ao escopo do Protocolo de Cartagena. (art. 4º) O regime de responsabilidade deverá ser aplicado nos casos de movimentos transfronteiriços legais, ilegais ou involuntários.
As normas e procedimentos a respeito da responsabilidade por danos decorrentes do transporte, uso, manipulação de organismos vivos modificados devem aplicar-se imediatamente e sua aplicação deve abranger os danos cujos efeitos continuam a ocorrer, mesmo que tenham sido iniciados antes da entrada em vigor do Protocolo, principalmente em se tratando de danos de efeitos permanentes.
Em relação ao âmbito geográfico, o regime de responsabilidade deve ser aplicado a danos ocorridos em partes, não partes ou em zonas fora da jurisidição nacional.
Definição
Danos são conceituados como a ofensa a bens juridicamente protegidos.
Considerando o objetivo do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança “de contribuir para assegurar um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde humana”, o regime de responsabilidade deverá incidir sobre todos os danos à saúde humana, à saúde pública e à diversidade biológica.
Atendendo ao disposto no art. 8 (j) da CDB, com a qual deve o protocolo ser coerente, o Regime de Responsabilidade também deverá incluir os danos relacionados à ofensas aos conhecimentos, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas relacionadas à biodiversidade.
Ressalte-se que os danos devem ser mensurados a partir da observação do impacto do pacote tecnológico associado à introdução do OVM, já que, a maior parte dos OVM liberados no meio ambiente atualmente modificam também a forma de utilização de agroquímicos.
Assim, o Regime de Responsabilidade deve considerar como danos:
· os danos à saúde e à saúde pública, que podem ser considerados como:
a) a perda da qualidade de vida e todos os prejuízos à saúde;
b) a perda de segurança alimentar.
· os danos à diversidade biológica e à sua utilização sustentável, que devem compreender, por exemplo:
a) qualquer mudança significativa ou mensurável em quantidade ou qualidade dos organismos dentro das espécies como tais ou dos ecossistemas;
b) a perda ou redução de ganhos econômicos diretamente originada do interesse econômico em qualquer uso do meio ambiente e da diversidade biológica, prejudicado pela utilização, manipulação, uso ou transporte do OVM.
· os danos decorrentes das ofensas aos conhecimentos e práticas das comunidades locais e populações indígenas, que podem ser:
a) a perda de práticas culturais relacionadas à biodiversidade;
b) o prejuízo econômico às comunidades decorrentes da perda ou impossibilidade de realização de práticas culturais;
c) A perda de segurança alimentar, decorrente da modificação da utilização de práticas de uso sustentável da biodiversidade.
VALORAÇÃO DOS DANOS
A valoração dos danos deverá incluir além da indenização por prejuízos econômicos ou morais decorrentes do dano ocasionado pelo OVM, os custos das medidas de reparação e restauração da situação anterior e de todas as medidas tomadas pelo Estado graças à ocorrência dos danos.
A responsabilidade por danos no Protocolo de Cartagena de Biossegurança fundamenta-se na existência de riscos inerentes à biotecnologia e nos cuidados necessários no uso, manipulação e transporte dos OVM. Assim, o principal responsável por danos ocasionados pelos OVM deverá ser o detentor da patente biotecnológica, que é o responsável pela colocação do produto no mercado.
A responsabilidade no âmbito do Protocolo deverá ser solidária, ou seja, imputável a todos os agentes da cadeia de produção e distribuição do OVM, o que inclui: o detentor da patente da tecnologia, o fabricante, o distribuidor, o transportador, o importador e o exportador.
Ao que sofreu as conseqüências do dano deve ser concedido o direito de demandar qualquer um dos responsáveis, ou a todos eles.
RELAÇÃO DA CAUSALIDADE
A responsabilidade no âmbito do Protocolo de Cartagena deverá ser aplicada sempre que se verifique um nexo causal entre o dano ocorrido e o uso, manipulação e transporte do OVM, independente da existência de culpa por parte do responsável. O ônus da prova deve recair sobre o responsável.
O vínculo causal poderá ser demonstrado por qualquer efeito adverso relacionado ao uso, transporte e manipulação do OVM.
· Regime de Responsabilidade
O regime de responsabilidade deverá ser uma combinação entre a responsabilidade administrativa dos Estados e um sistema de responsabilidade civil internacional que vincule os agentes privados.
Responsabilidade administrativa: o Estado deve exigir do responsável as medidas cabíveis, nos termos do regime definido, para reparar os danos ocasionados. O Estado investigará, dimensionará e avaliará os danos causados, sempre em processos de consulta com comunidades afetadas, que deverão poder estabelecer as prioridades na reparação e/ou restauração dos danos.
Em caso de impossibilidade dos danos serem reparados pelo responsável, o Estado de cidadania do responsável, subsidiariamente, deverá efetivar as medidas de reparação e restauração.
Responsabilidade Civil: o padrão de responsabilidade deve ser a responsabilidade estrita ou objetiva, ou seja, o explorador será responsável pelos danos resultantes do transporte, manipulação ou uso do OVM, exista ou não culpa de sua parte.
O regime de responsabilidade deverá prever mecanismos de resolução de demandas entre Estados, entre Estados e agentes privados e somente entre agentes privados.
As demandas entre os estados poderão ser resolvidas perante a Corte Internacional de Justiça, conforme o estabelecido pelo art. 27 da CDB.
Todavia, o Regime de Responsabilidade, deverá prever um mecanismo de liquidação de demandas entre agentes privados. Neste caso, demandas poderão ser apresentadas perante uma Corte de um país membro do Protocolo. O demandante poderá escolher o foro mais adequado para a propositura da demanda ou execução da sentença, podendo ser: o local da ocorrência do dano; o país sede do explorador.
As demandas deverão poder ser propostas pelos Estados, por pessoas que sofreram os danos ou por associações juridicamente reconhecidas nas legislações nacionais.
· Cobertura da Responsabilidade
O Regime de Responsabilidade deverá prever um mecanismo de garantias financeiras obrigatórias, a ser mantido pelo responsável durante todo o período de vigência da responsabilidade. Este mecanismo poderá ser qualquer garantia financeira que cubra a responsabilidade.
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Texto elaborado por Maria Rita Reis, assessora jurídica da Terra de Direitos.